Das 119 empresas públicas que investigámos, quase 50% têm administradores do PS. Bem-vindo ao grande jogo das nomeações, das gigantescas injecções de capital e das contas em falta há anos.
Águas do Tejo Atlântico. Provavelmente só os 400 trabalhadores desta empresa da Grande Lisboa e Oeste saberão o seu nome e o que faz (tratamento de esgotos), e raros saberão quem são os seus administradores. Por exemplo, quem é o vice-presidente.
Trata-se de Hugo Xambre, um nome desconhecido do grande público, mas um homem influente no aparelho do PS. Não por ter sido o presidente da junta de freguesia do Beato (Lisboa), mas, muito mais importante, porque exerceu as funções de mandatário financeiro do partido liderado por António Costa nas Legislativas 2015 e 2019. Foi colocado nesta empresa pelo Governo com o ordenado correspondente, que no caso são €6.109 brutos por mês.
À SÁBADO. Xambre não vê aqui uma componente política: “Desempenho funções de gestão de topo, mas com forte componente técnica (dentro da minha área de formação académica – Licenciatura em Engenharia Química – Área Ciências de Engenharia e Mestrado em Gestão – e profissional) e muito pouco de política. Gostando muito da área do ambiente, tendo efectuado estágio profissional (2007) nesta área, tenho coordenado e desenvolvido trabalho, que considero com sucesso, em áreas como a reutilização de água.”
É preciso correr muito até encontrar este tipo de personalidades como Hugo Xambre, até porque tomar o pulso às empresas que são tuteladas pelo Governo equivale a manusear matrioscas de empresas dentro de outras empresas. No site da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças, por exemplo, não há qualquer referência à Águas do Tejo Atlântico. Não há, aliás, qualquer referência a águas, como se estas não pertencessem ao sector público. Mas a Águas do Tejo Atlântico é uma das 19 empresas que estão dentro da Águas de Portugal (AdP), que pertence à Parpública, que por sua vez detém mais 12 empresas: além da AdP, inclui-se a Efacec (nacionalizada em 2020), a Companhia das Lezírias (presidida por António Sousa, um ex-autarca do PS no Alentejo), ou a SIMAB, que superintende os mercados abastecedores do País.
O mundo do imobiliário e SCML
Há ainda outro colosso dentro da Parpública, a Estamo, que gere mais de mil milhões de ativos imobiliários do Estado e que está na tutela das Finanças. O ministro Fernando Medina nomeou para a Estamo pessoas que conhece bem. O presidente é António Furtado, que passou dez anos (2011/21) em vários cargos de relevo na Câmara Municipal de Lisboa, governada pelo PS nesta altura, incluindo o de diretor municipal de Gestão Patrimonial e administrador de várias empresas municipais (EMEL e SRU).
Quando Medina perdeu a recandidatura à câmara, em 2021, Furtado foi para Almada, outra câmara do PS (presidida por Inês de Medeiros), para ser, durante alguns meses, diretor municipal. A meio de 2022, Medina trouxe-o para liderar a Estamo, com um ordenado mensal de €6.892 brutos. Foi substituir Alexandre Boa-Nova Santos, que estava no cargo desde 2018 e tinha um passado na banca, sem ligações partidárias conhecidas.
Para vice-presidente da Estamo, Medina escolheu Fátima Madureira. Licenciada em História, que foi sua chefe de gabinete, passando agora, com um vencimento mensal de €6.203 brutos, a gerir o imobiliário do Estado. O outro vogal, José Realinho de Matos, é mais um dos homens-fortes da governação empresarial socialista, tendo passado por várias administrações de empresas públicas.
O ministro das Finanças justifica à SÁBADO as nomeações, salientando que “tendo terminado os mandatos da anterior equipa de administração da Estamo, o Governo entendeu oportuno nomear uma nova equipa de gestão; a escolha dos novos gestores teve por base critérios de experiência, rigor e competência, critérios estes que foram confirmados pelo parecer positivo da CRESAP”.
Noutra empresa da Parpública, a Fundiestamo, que gere fundos imobiliários, um dos administradores, Nuno Filipe, era adjunto da secretária de Estado da Habitação (Marina Gonçalves, hoje ministra). Já a Cruz Vermelha (detida pela Parpública e pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) é outro poiso do PS. O presidente do conselho de administração é um ex-ministro socialista, Adalberto Campos Fernandes, e a até 30 de abril a presidente nacional era outra ex-ministra do PS, Ana Jorge, que foi escolhida para provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), instituição tutelada pelo Governo e tingida das cores do PS
Ana Jorge substituiu no dia 2 Edmundo Martinho, também próximo do PS, sobretudo do círculo do ex-ministro Vieira da Silva e da atual ministra Ana Catarina Mendes (cujo ex-marido, Paulo Pedroso, ex-deputado socialista, foi contratado em 2020 para consultor da SCML por €3.700 brutos/mensais). Um dos administradores da SCML é Sérgio Cintra, homem-forte do aparelho do PS Lisboa (foi o presidente da concelhia até 2022). Outra administradora, Ana Azevedo, passou pelos gabinetes do Secretário de Estado do Turismo do governo de José Sócrates e da Estrutura de Missão Portugal IN, de 2017 a 2019. Também regressou João Correia, ex-chefe de gabinete de Vieira da Silva. A SCML não apresentou ainda as contas de 2021 nem 2022.
Uma nota ainda para Pedro Pinto de Jesus, que está como administrador na Empresa Pública de Águas de Lisboa. Ex-assessor parlamentar do PS, teve depois passagem por gabinetes de vereadores e administração de empresas municipais durante os recentes mandatos do PS na capital. A sua colocação na EPAL segue-se à no MARL, na GEBALIS e na Movijovem. Esta última, que é uma cooperativa do Estado, é um ninho de pessoal partidário. Na atual direção está Miguel Perestrello (irmão de Marcos Perestrello, peso-pesado do PS de Lisboa) e Inês Drummond, vereadora do PS na Câmara de Lisboa, braço-direito de Medina quando era líder do executivo.
Quatro mil/mês em viagens
Outra das empresas que estão no portfólio da Parpública é a Imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM), também sob tutela das Finanças. A empresa é a responsável por fazer o Cartão de Cidadão e o Passaporte de todos os portugueses, além da edição do Diário da República e de cunhar moeda, entre outros serviços. Tem 724 trabalhadores e um volume de negócios de 118 milhões de euros em 2022, mas há quase dois anos que não tem presidente. A empresa remeteu-nos explicações para a Parpública, que já no fecho deste artigo nos enviou um email a comunicar que a vogal Dora Moita passara a presidente.
Sem presidente mantém-se a FlorestGal, empresa de gestão e desenvolvimento florestal nascida após os incêndios de 2017, a NAV, que gere o espaço aéreo, e a Parque Escolar, cujo último relatório e contas é de 2018. A SÁBADO perguntou ao Ministério da Educação o que se passa. Resposta: “As contas de 2019, 2020 e 2021 estão em processo de apreciação pelo Conselho Fiscal da empresa.” Problema: o presidente deste também não está nomeado.
Recorde-se que a empresa, segundo o último relatório (2018), tinha 126 trabalhadores e continua em grande laboração nas escolas: só no mês de abril de 2023 declarou no portal Base 22 empreitadas adjudicadas, num total de €16,7 milhões. Sobre esta empresa não há nenhuma informação financeira e contabilística publicada há cinco anos.
Voltando à Imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM), tem uma particularidade: paga elevadas quantias em viagens aos seus administradores. Em 2022, por exemplo, a então vogal Dora Moita recebeu €48.006 (média mensal de €4.000). Já em 2021, o presidente (que esteve no cargo até novembro passado) custou €46.840 (também uma média superior a €4.000 por mês). Os outros dois vogais custaram cerca de metade: 23 e 29 mil euros em deslocações e viagens. O relatório e contas de 2020 já mostrava o mesmo padrão.
A administração respondeu à SÁBADO, via assessoria, dizendo que tais custos têm a ver com “o processo de internacionalização da INCM”, “que exige e envolve a realização de deslocações ao estrangeiro, seja nas geografias em que já opera, seja junto dos novos mercados e oportunidades que pretende conquistar”. Refere ainda que a INCM está “presente em mercados e geografias tão distintas” como Camarões, São Tomé e Príncipe, Finlândia, Estónia, Colômbia, Grécia, Arménia e Geórgia. A SÁBADO pediu a lista concreta das viagens feitas nos últimos três anos pelos administradores, mas não obteve resposta.
As empresas públicas têm diferentes classificações, em função da sua complexidade e responsabilidade, o que determina em que escalão os gestores são pagos. Daí que uns ganhem mais do que outros , mas nenhum passa o salário do primeiro-ministro (salvo exceções; ver texto principal): os presidentes dos metropolitanos e dos centros hospitalares mais importantes ganham o mesmo (€6.800), mas todos ganham menos que o presidente da RTP (€7.634) e não chegam perto (€8.012) dos presidentes da Parpública, IP, NAV, CP, IGCP, TAP, Águas de Portugal, EPAL e Águas do Norte. De referir que, regra geral, os administradores públicos têm €80 em comunicações, além de carro.
Embora os salários dos administradores públicos estejam limitados ao salário do primeiro-ministro, há exceções nas empresas em regime de concorrência no mercado. Nestes casos, os administradores podem ter o vencimento de origem (média dos últimos três anos).
Era o caso de Christine Ourmières-Widener, CEO da TAP, agora demitida, que ganhava €504 mil anuais (média de €36.000), fora bónus. Segundo o relatório e contas, os administradores da TAP têm “seguro de vida, seguro de saúde, seguro de acidentes pessoais e utilização de um telemóvel em serviço. A CEO “tem também um subsídio de residência anual de até €30.000”, tal como a vogal Silvia Mosquera Gonzalez. Esta tem ainda “subsídio anual de frequência escolar até €15.000”.
Outro exemplo de quem recebe acima do primeiro-ministro é Celeste Hagatong, presidente do Banco de Fomento, que ganhará €21.428, um valor que a SÁBADO apresenta depois de ter dividido por 14 o número (€300 mil) avançado pelo Eco em 2022. O jornal digital dizia que “o Ministério da Economia recusa-se a revelar oficialmente os salários da presidente e da CEO do Banco de Fomento”. A SÁBADO também perguntou ao ministério e obteve como resposta: “As questões devem ser colocadas diretamente ao Banco Português de Fomento.” O banco nunca nos respondeu. Só será possível saber os valores exatos quando sair o relatório e contas de 2022, algures ao longo deste ano.
Gestores com cartão partidário
A 12 de abril, Carlos Guimarães Pinto, deputado da IL, dizia no hemiciclo que a atenção mediática estava focada na TAP e que pouco ou nada se sabia do resto: “Que favores se pagam nessas empresas? Como são escolhidos os seus gestores? Como é que a tutela interfere nas decisões aí tomadas? Quanto dinheiro dos contribuintes é enterrado em más decisões que nunca iremos saber como foram tomadas?” O deputado reforçava a tese dos gestores, “que são muitas vezes nomeados, não pelas suas competências, mas pela confiança política, ou pelo cartão do partido, não faltam exemplos”.
Um deles é o da Infraestruturas de Portugal (IP), “que recebeu mais injeções de capital nos últimos três anos do que a TAP”, referiu o deputado. O presidente é Miguel Cruz, que fora até 2021 secretário de Estado do Tesouro. Foi substituir António Laranjo, que saiu em 2021 - a IP disse à SÁBADO que foi “uma renúncia, a pedido do próprio, e não houve pagamento de qualquer indemnização”.
O presidente da IP está no topo dos gestores mais bem pagos (€8.012). A vice-presidente de Miguel Cruz é Maria Amália Almeida, que era a sua chefe de gabinete no anterior governo de António Costa. O outro vice-presidente da IP é Carlos Fernandes, que em 2002 (governo António Guterres) foi adjunto de Vieira da Silva, na altura secretário de Estado das Obras Públicas e o pai da atual ministra Mariana Vieira da Silva. Cada um dos vice-presidentes ganha por mês €7.181 brutos.
Das três vogais da IP (salário mensal de €6.409), uma delas, Ana Coelho, foi adjunta de Fernando Medina entre 2006 e 2009 (governo liderado por José Sócrates), quando era secretário de Estado do Emprego (o ministro era Vieira da Silva).
A saga dos chefes de gabinete atravessa o setor (como podemos ver ao longo deste artigo). Em junho de 2022, dois meses antes de se demitir, a ministra da Saúde, Marta Temido, nomeou a chefe de gabinete, Eva Falcão, para dirigir o IPO Lisboa. Em 2019, Susana Larisma, chefe de gabinete de Mourinho Félix, secretário de Estado das Finanças, foi nomeada para o board da Parvalorem, empresa que ficou com os ativos do BPN.
Algumas empresas que sempre foram poiso de militantes do partido do Governo são hoje lideradas por perfis mais técnicos, como a CP, a RTP, a TAP, ou mesmo a CGD, onde se pode detetar apenas um vogal (Nuno Martins) que veio do Governo, onde era adjunto do secretário de Estado do Tesouro e das Finanças.
€362 para fazer 8 km
Com exceção da CGD (rara empresa pública pujante), as outras empresas do Estado recebem gigantescas injeções de capital para se manterem à tona (tanto dinheiro que até podem dar lucro num determinado ano, como aconteceu agora com a TAP e a IP). Em 2021, a TAP começou a receber um pacote de €3,2 mil milhões. A IP, só em 2021, recebeu quase mil milhões, e mesmo assim tinha uma dívida que passava os quatro mil milhões. A CP recebeu €3,8 mil milhões desde 2015, segundo o Económico, para ajudar a pagar dívidas à banca e a fornecedores.
Como podemos verificar na infografia, o PS está presente em metade das empresas tuteladas pelo Governo. São raros os elementos do PSD que resistem. Além de Paulo Macedo (CEO da CGD), há Ana Paula Martins, recém-nomeada presidente do maior centro hospitalar do País (o Lisboa Norte, que inclui o Santa Maria), Luís Castro Henriques (presidente da AICEP) e Miguel Paiva (no Centro Hospitalar Entre Douro e Vouga). Havia Marina Ferreira, que se demitiu em março da Transtejo depois da polémica dos barcos elétricos comprados sem baterias. Há uma vogal (Paula Pêgo) na administração do Metro do Mondego e alguns vogais nas empresas de águas (que são de âmbito local, onde entram em jogo os partidos que dominam as câmaras).
Algumas empresas do Estado têm mais do que um elemento do PS. Destacamos o caso do Centro Hospitalar do Médio Ave, onde estão o presidente (António Barbosa, ex-vereador na câmara de Famalicão) e os dois vogais (Luís Moniz, ex-vereador em Famalicão também, e Victor Boucinha, da assembleia municipal da Trofa). Sobre este último, segundo o relatório e contas de 2021, salta à vista um valor em despesas de deslocação que não encontrámos em mais nenhuma empresa: €4.351 (cerca de 362/mês).
A administração justifica à SÁBADO: “Victor Boucinha reside na Trofa, mas é a partir da Unidade de Santo Tirso que exerce o seu cargo, onde tem o seu gabinete e o seu domicílio necessário. Não há viatura afeta ao Conselho de Administração, pelo que os valores em causa se referem a todas as deslocações realizadas em serviço pelo senhor administrador.” Ou seja, além do ordenado (€2.985 mais €1.194 em despesas de representação), o vogal do PS recebe €362 mensais por residir a 8 km (Trofa-Santo Tirso) do local de trabalho.
O mesmo tom rosa do PS encontra-se na administração do Centro Hospitalar Lisboa Central: a presidente é Rosa Valente de Matos (ex-secretária de Estado da Saúde), que chegou a ter como vogais os seus dois ex-chefes de gabinete. Até nas unidades locais de saúde há socialistas, como é exemplo a da Guarda, que tinha até há pouco tempo como um dos administradores António Monteirinho, atual deputado e presidente da concelhia do PS Guarda.
Na Marina do Parque das Nações (Lisboa), o presidente é André Fernandes, ex-assessor de Paulo Campos, secretário de Estado dos Transportes no governo Sócrates. Veja-se ainda o caso de André Moz Caldas, quadro do PS/Lisboa. Em 2015 foi nomeado chefe de gabinete de Mário Centeno nas Finanças ao mesmo tempo que era presidente da junta de Alvalade. Em 2019, foi nomeado presidente da OPART (que tutela o Teatro São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado), onde ficou três meses, sendo nomeado secretário de Estado da Presidência, onde se mantém. A sua renúncia ao cargo não motivou o pagamento de indemnização, garantiu à SÁBADO a OPART.
Na Águas de Portugal, dois dos três vogais, Carla Correia e Pedro Vaz, têm também pegada socialista, sendo que este último tinha sido assessor do gabinete de Fernando Medina na câmara de Lisboa. Na Águas de Santo André, os dois vogais (Marcos Sá e Carla Cupido) têm também um passado PS, sendo que Carla Cupido foi assessora de Medina em Lisboa.
Na Administração do Porto de Aveiro, que não tem contas aprovadas, o presidente é um quadro do PS de Aveiro: Eduardo Feio, por nomeação do ministro da altura, Pedro Nuno Santos (deputado eleito por este círculo). Foi vereador da câmara até 2005, altura em que foi para cargos de chefia intermédia no ministério da Administração Interna (governo Sócrates). Com a chegada do governo Passos Coelho foi para o setor privado, até que o regresso do PS ao poder o levou de novo para o Estado central: presidente do Instituto da Mobilidade e dos Transportes. Tal mereceu o júbilo dos camaradas no Facebook: “A concelhia de Aveiro do PS felicita o camarada Eduardo Feio pela sua nomeação, e endereça-lhe os votos de muito sucesso nas suas novas funções.”
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