quinta-feira, 18 de maio de 2023

NA FARMÁCIA DO EVARISTO

Na Farmácia do Evaristo, admirável conto de filosofia política de Fernando Pessoa (1888-1935), é um texto perturbador e incomodativo: está vivo.

E quem o lê, percebe porquê: é que às vezes dói.

Foi escrito em 1925…quase 50 anos antes do ‘25 do 4’.

Fernando António Nogueira Pessoa foi um poeta, filósofo, dramaturgo, ensaísta, tradutor, publicitário, astrólogo, inventor, empresário, correspondente comercial, crítico literário e comentarista político português. Fernando Pessoa é o mais universal poeta português.


SINOPSE

Que ‘Farmácia do Evaristo’ teria Fernando Pessoa escrito sobre o 25 de Abril, com a sua trémula mão dos 85 anos, se ainda estivesse vivo nesse «dia inicial inteiro e limpo» de 1974?

Uma coisa é certa, escreveria. São inúmeros os textos de Fernando Pessoa sobre os acontecimentos políticos a que assistiu.
Na farmácia do Evaristo, encontram-se cidadãos mais ou menos comuns, que, em diálogo, reagem, comentam e dissecam a tentativa de golpe de Estado de 18 de Abril de 1925.

Para além de Evaristo, entram na conversa Mendes, um republicano democrático, o Justino dos coiros, o Canha das barbas, o coronel Bastos e José Gomes, mais conhecido por Gomes Pipa, que passa a dissecar o sistema eleitoral, a organização dos partidos e a condução destes por directórios minoritários.
Se entramos na Farmácia com certezas, saímos dela com dúvidas e perplexidades. Na Farmácia do Evaristo, admirável conto de filosofia política de Fernando Pessoa, é um texto perturbador e incomodativo: está vivo.

E quem o lê percebe porquê: é que às vezes dói.

---------------------------------------------------------------------------------------

NA FARMÁCIA DO EVARISTO

Era uma tarde de domingo. Acabara, na manhã desse dia, o movimento militar de 18 de Abril. Estava restaurada a ordem visível. Em todas as caras se via o aborrecimento e o mal-estar que a imprensa do dia seguinte havia de chamar "a alegria que se lia em todos os rostos", o que é possível num país onde tão pouca gente sabe ler.

A farmácia do Evaristo, que estivera sempre aberta, começou a receber os seus estacionários do costume. A conversa misturou-se, simultânea e prolixa. A voz alta do Mendes, republicano democrático, erguia-se congratulatória. Nisto assomaram à porta os dois habituais que ainda faltavam. Um saudação geral os acolheu.

O José Gomes, mais conhecido por o Gomes Pipa, entrou lentamente na farmácia. Das duas razões da sua alcunha, uma estava à vista no bojo formidável da sua corpulência. A outra, se alguém a quisesse saber, sabê-la-ia logo nas palavras que vinha dizendo, Acompanhava-o o Justino dos coiros. O Gomes vinha limpando a boca.

— Já tenho bebido melhor...

— Pois sim, mas não é mau...

— Não, mau, mau não é... — Aqui este tipo defronte — pena é estar fechado — é que tem um vinho branco...! Então já está tudo sossegado?

—Tudo, disse o Mendes.

— E o amigo Mendes contente com o restabelecimento da ordem, ham?

— Pois é claro...

— E com a conduta das tropas fiéis — isto é, fiéis àquilo a que foram fiéis?...

— Àquilo a que foram fiéis? Ao governo, que é a quem tinham obrigações de ser fiéis. Ao governo, a ordem, à disciplina, às instituições! Portaram-se bem. mas não fizeram senão a sua obrigação.

— Folgo muito, Sr. Mendes, disse o Gomes sentando-se num banco e puxando pela bolsa do tabaco; folgo muito, como amigo da ordem, em vê-lo apreciar devidamente a fidelidade ao dever jurado e à obrigação militar.

— Não vejo razão para folgar tanto! Como não pode haver dúvida que eles fizeram bem cumprindo o seu dever de militares, e até de cidadãos, não é de estranhar que se ache bem que eles o cumprissem...

- Sim, senhor, respondeu o Gomes Pipa. Mas não é só por isso que eu folgo com o seu aplauso a eles e com o seu justo apreço da fé jurada e do dever militar. Folgo sobretudo, como monárquico, com a condenação, que com isso o sr. fez, da revolução e dos revolucionários do 5 de Outubro.

— Hem? O quê? Do 5 de Outubro?

O Gomes enrolou lentamente o seu cigarro vulgar.

— Sim, do 5 de Outubro. Os militares e marinheiros, que no 5 de Outubro se revoltaram, tinham jurado, como estes, manter a ordem e defender as instituições, que eram então as monárquicas. E como estes fizeram bem mantendo-se firmes ao seu juramento e ao seu dever militar, aqueles fizeram mal faltando ao deles. É com esta sua opinião que eu folgo. Estimo-a pela imparcialidade, vindo, como vem, de um republicano.

— Perdão... Não é nada disso... O 5 de Outubro é um caso diferente..

— Diferente? Diferente em quê? — E o Gomes suspendeu calmamente o acendimento do seu cigarro.

— No 5 de Outubro a revolução nasceu de um impulso nacional, correspondeu, por assim dizer, a um mandato imperativo da nação inteira, ou, pelo menos, da sua enorme maioria. Tanto assim que o movimento venceu com facilidade, e com torças aparentemente insuficientes...

— O ter vencido com forças aparentemente insuficientes não é argumento, meu amigo. Num país que não está numa situação brilhante de disciplina e de ordem, corno então acontecia, e com um governo fraco ainda por cima, um movimento revolucionário, desde que passe de uni simples motim, facilmente vencerá, pela repugnância que há em combater compatriotas, e pela falta de hábito em fazê-lo, para que se vença essa repugnância. Deixemos isso da vitória fácil... Ou o sr. pretende basear na facilidade dessa vitória o único argumento a favor do carácter nacional do 5 de Outubro? Se vamos a isso, com muito mais facilidade venceu o chamado "movimento das espadas", com que foi ao poder o Pimenta de Castro, sendo portanto consideravelmente mais nacional.

— O movimento das espadas foi um movimento exclusivamente militar, tomou toda a gente de surpresa...

— Exactamente. É isso que eu digo... Basta tomar de surpresa, apanhar os outros sem preparação condigna para vencer, sem que a vitória representa mais que os outros não estarem prontos...

— Espera lá: não é só isso... O movimento das espadas, repito, foi exclusivamente militar; no 5 de Outubro entraram muitos civis...

— Isso quer dizer simplesmente que havia civis que estavam na conspiração, e, se estavam, é natural que viessem para a revolução também. E quanto a outros quaisquer, logo que os armassem, porque não entrariam?... Mas eu não nego que o partido republicano tivesse em 1910 partidários bastantes para poderem entrar bastantes civis na revolução... O que nego é aquilo em que o sr. pretende basear a sua justificação da traição e da aleivosia dos militares e marinheiros (para não falar nos civis) que entraram na revolução de 5 de Outubro. O sr. diz que essa traição se justifica pelo facto de o 5 de Outubro ser um movimento nacional, uma espécie de mandato imperativo da nação. E o sr. não me citou argumento nenhum que provasse esse carácter nacional do movimento, nenhum argumente pelo qual esse movimento se distinga de qualquer outro movimento em que entrem militares, faltando à sua obrigação e ao seu juramento, e civis, porque estavam combinados para entrar ou foram armados para que entrassem. O próprio facto, que o sr. citou, de o movimento ter tido poucas forças — de aí, diz o sr. o ser de pasmar que ele vencesse, mas eu já lhe expliquei isso —, o próprio facto, repito, de o sr. dizer que o movimento se fez com pouca gente não é com certeza a melhor maneira de provar que ele representasse um mandato imperativo da nação, ou uma aspiração nacional a realizar-se.

— Talvez, Sr. Gomes, eu me exprimisse mal... Exprimi-me mal, com certeza... É atmosfera, o ambiente, do movimento que provaram bem o seu carácter nacional...

- Oh, amigo Mendes, isso não serve... Reduza lá isso das atmosferas e dos ambientes a qualquer coisa mais visível. Há-de haver por força sinais evidentes, distintivos, de se um movimento é nacional ou não. Essa atmosfera, esse ambiente, hão-de reflectir-se em qualquer coisa de concreto, de palpável... Refere-se o sr. por acaso à circunstância, que na verdade se deu, de o movimento ter sido acolhido, em geral, com uma certa simpatia?

— Sim, isso, por exemplo... O que é que isso prova senão que...

— Prova que toda a gente tinha um medo medonho da revolução republicana, julgando, pela falta de prática de revoluções, que caíam este mundo e o outro quando uma revolução viesse... Em comparação com o que as imaginações aterrorizadas se figuravam do que fosse uma revolução, o 5 de Outubro, que realmente foi brando e limpo, foi um alívio, como o é sempre a realidade, ainda que má, quando a imaginação a figurava muito pior.. Essa própria sensação de alívio deve ter despertado em muita gente uma certa hesitação esperançosa... Mas isso tudo, amigo Mendes, são fenómenos posteriores à revolução, ambiente sobrevindo mas não preexistente... Os mandatos, salvo erro, precedem o acto a que compelem... Um ambiente que se segue não é um ambiente que precede... Continuo, pois, a não achar aceitáveis as razões que alega para considerar o 5 de Outubro um movimento nacional...

— É difícil de explicar, realmente, mas...

— Vamos lá a ver se com o meu auxílio o sr. consegue desencaixotar a sua lógica... Vamos a um facto concreto, que realmente pode alegar-se como justificação de se chamar nacional à revolução de 5 de Outubro... Esse facto é o de ter ficado e durado a República...

— Ora exactamente, é isso mesmo.

— Não é, amigo Mendes, não é... A República tem durado, sim; mas tem durado de uma maneira irregular, cortada constantemente por movimentos vários, monárquicos e outros, e em perpétua atitude de sobressalto, de defesa e de confusão. E como esses vários movimentos não têm sido motins vulgares, de rua, mas revoluções em forma, algumas vitoriosas, em que entram regiões inteiras do país (como na restauração monárquica no Norte) e grandes forças do exército e numerosos civis, tem havido, ao que parece, ambiente e atmosfera para os dois lados. De modo que nada autoriza a que afirmemos que o 5 de Outubro teve mais "carácter nacional" que qualquer outra revolução ou revolta. O impulso nacional seria indubitável se, proclamada a República, caíssemos em paz, sem mais agitações nem revoluções, ou, quando muito, com meros pequenos motins, episódicos e incaracterísticos... Mas agora reparo que nos afastámos do nosso caso original... Mesmo que o 5 de Outubro fosse um movimento classificável de "nacional", isso nada tinha com a questão da traição e da deslealdade dos militares e dos marinheiros que o fizeram... É esse, creio eu, o ponto que estávamos discutindo

— Perdão, alguma coisa tem...

— Que coisa?

— A fidelidade ao juramento é realmente uma coisa importante. Mas há casos em que não é a mais importante de todas. Os interesses supremos da Pátria, que são o mais importante de tudo, podem prevalecer, se for preciso, sobre todos os juramentos e sobre todos os compromissos de fidelidade!

— Ah, sim... É verdade: o Sr. foi germanófilo?

— Eu?!... Eu germanófilo?!... Mas a que propósito?...

— É que esse é o argumento de que se serviu von Bethmann Hollweg naquela célebre declaração em que chamou aos tratados "farrapos de papel". Os interesses supremos da Alemanha, sua pátria, estavam, disse ele, acima da fé dos tratados, isto é, do compromisso, ou juramento, escrito que um tratado representa...

— Pois sim, pois sim... Mas um tratado é uma coisa diferente...

— É apenas compromisso, ou juramento, escrito. O sr. naturalmente não vai sustentar a teoria de que é legítimo, por exemplo, a gente negar as dívidas de que se não possa apresentar documento?... Mas, enfim, isto não tem nada para o caso. O seu argumento pode ser germânico e válido: a Alemanha não está proibida, depois da guerra, de ter razão... Vamos ao argumento... Se é legitimo faltar ao juramento e é obrigação em favor e defesa dos interesses supremos da Pátria — e por interesses supremos da Pátria entende o sr. sem dúvida aquilo que os revolucionários pensavam ser os interesses supremos da Pátria porque não é legítimo nos actuais revoltosos, e em todos os outros que se têm revoltado durante a República, invocar o mesmo argumento? O sr. vê neste movimento, por exemplo, homens sérios e que se mantiveram sempre fiéis à defesa da ordem e do cumprimento da disciplina. Sirva de exemplo o tenente coronel Raúl Esteves. Para ele ter entrado neste movimento, tendo-se recusado sempre a entrar em qualquer outro dos vários para que constantemente o convidavam, o que sem dúvida pensou que a isso o compeliam os superiores interesses da Pátria. Não há, pelo menos, o direito de pensar o contrário, porque então se pode pensar o mesmo contrário dos revolucionários do 5 de Outubro. Não dou o argumento como legítimo para mim — para mim nada pode prevalecer sobre o juramento prestado —, mas dou-o como legítimo para si, visto que o emprega para defender os revolucionários do 5 de Outubro, pessoas de muito menos categoria e prestígio, aliás, que os chefes desta última revolta.

— Perdão, sr. Gomes... Eu não nego, nem preciso negar, que pudesse ser boa a intenção dos chefes desta revolta. O que afirmo é que, se a sua intenção era boa, era ao mesmo tempo errada. E tanto era errada, tanto o movimento não correspondia a uma aspiração nacional, que se deu com ele, apesar de bem planeado, uma coisa que eu ia ainda agora objectar-lhe, mas que guardei para depois para o não interromper... É que este movimento foi sufocado; falhou... E a verdadeira prova da falta de ambiente é essa: falhar...

— Tem graça: outro argumento germânico!

— Outro argumento germânico?

— Sim. Foi o filósofo alemão Hegel que inventou o argumento de que a própria vitória é a justificação da vitória, e que quem vence é que tinha direito a vencer, por isso mesmo que vence. É um argumento que andou muito em uso nos escritores militares e militaristas da Alemanha, e que tem um certo parentesco moral com aquilo de "a força supera o direito" que o (...) disse, atacando Bismarck, que podia ser a divisa dele. Mas enfim, aqui estamos no mesmo caso de ainda há pouco. Um argumento pode ser de Hegel e ser valido. O caso principal é outro. A vitória é que prova a legitimidade, o "ambiente" de um movimento? Está bem... Ora o Sidónio venceu...

— E quanto tempo durou a situação do Sidónio, Sr. Gomes?

— Durou até ao fim, como todas as coisas. Durou enquanto durou. Não durou tão pouco que isso pese como argumento, nem acabou senão porque, estando concentrada num só homem, uma simples bala, isto é, um só homem pode terminá-la. Mas, afinal, em que é que ficamos? O Sr. tinha-me dito que a vitória de uma revolta é que provava o seu ambiente. Eu já respondi em parte a isso quando respondi à sua alusão à facilidade com que o 5 de Outubro vencera; agora respondo de novo com a vitória do Sidónio. Mas o sr. fala-me agora, já não em simples vitória, mas em duração da situação criada pela vitória, o que é uma coisa diferente... Quanto tempo é que uma situação tem que durar para o sr. a considerar legítima?

— Não é o durar, meu caro senhor, é e maneira de durar...

— Também já respondi a isso... Já lhe disse que se a vida da República tivesse sido de inteira paz, se a vinda da República tivesse eliminado as dissenções importantes, se poderia com efeito considerar de carácter nacional o movimento que a implantou. Mas, como não sucede isso, mas exactamente o contrário. não vejo a que "maneira de durar" o sr. alude...

O Canha das barbas, que, do lado, sentado contra o balcão, tinha estado a ouvir atentamente o decurso da conversa, interveio de repente, depois de tossir.

— Dá-me licença, ó Gomes, o caso não é esse... Não se trata de maneira de durar nesse sentido. Se aqui o Mendes me dá licença que fale por ele, vou ver se ponho o caso mais a claro... Desde que se implantou a República tem havido, com efeito, vários movimentos revolucionários, de parte a parte, e, dos opostos à chamada "normalidade constitucional", alguns temporariamente vitoriosos. Mas, mais tarde ou mais cedo, tem-se sempre vindo a cair na linha original, isto é, na sucessão legítima dos governos republicanos, saídos de parlamentos que são eleitos, bem ou mal, segundo normas constitucionais assentes, comuns a todos os estados civilizados. Mais tarde ou mais cedo tem-se sempre vindo cair nesta "normalidade" constitucional; por isso se pode afirmar que os movimentos contra essa normalidade constitucional, falhados ou temporariamente vitoriosos, têm sido simples interrupções, sem carácter nacional. E tanto têm sido interrupções, que as situações criadas por eles, mesmo quando plenamente vitoriosos, acabam sempre por se extinguir com uma rapidez espantosa, como a situação dezembrista se sumiu pelo chão abaixo depois da morte do Sidónio. É isto, se me não engano, que o Mendes queria dizer quando se referia à "maneira de durar" dos governos republicanos constitucionalmente legítimos, e à pouca duração do regímen sidonista como prova da sua falta de carácter nacional, em comparação com esses outros governos. É isto ou não é, ó Mendes?

— Exactamente, Sr. Canha, anuiu o Mendes; é isso sem tirar nem pôr. Ainda bem que falou por mim, porque eu não punha as coisas tão certas...

— Está bem, disse o Gomes Pipa. Aquilo a que se chama normalidade governativa, seja ou não constitucional, assenta forçosamente em uma de três coisas ou na continuidade com a governação anterior ou na justificação eleitoral, ou na aceitação espontânea pelo país, haja ou não continuidade e justificação eleitoral. Pode assentar em mais que uma destas três coisas, mas pelo menos em uma tem forçosamente que assentar. E não há quarta coisa em que possa assentar.

Ora agora, meus amigos, vamos lá considerar essas coisas uma a uma. Comecemos pela mais simples, visto que não importa por qual se comece, desde que se considerem todas. A mais simples, para o nosso caso, é a de investigar se há ou não aceitação espontânea, da parte do país, da situação republicana, ou seja dos resultados da revolução do 5 de Outubro. A isso já eu respondi. Se, vinda a República, o país tivesse caído em normalidade constitucional autêntica, isto é, em ausência de revoluções, de contra-revoluções e de pronunciamentos, tão importantes que alguns têm sido vitoriosos, haveria direito a supor a aceitação espontânea, pelo país, da situação republicana. Mas, como se não dá essa circunstância, a aceitação espontânea não só se não pode presumir, mas claramente se vê que não existe. Pode, ainda, alegar-se que esses movimentos vários são golpes de audácia, sem mais sentido que serem golpes de audácia. Para que isso se pudesse alegar com razão era, porém, preciso — primeiro, que essas revoluções e revoltas não fossem constantes, sendo portanto constante o estado de anormalidade, que é o contrário de normalidade, constitucional ou outra; segundo, que essas revoluções não fossem importantes, e muito menos vitoriosas de quando em quando, o que indica que têm consigo a massa ou força suficiente para, pelo menos naquele momento, terem mais massa e força que o governo; terceiro, se se quiser alegar que esses movimentos são simples de audácia felizes, que se não pudesse alegar precisamente a mesma coisa do 5 de Outubro, feito com muito menos forças que a maioria desses outros movimentos. Não há, portanto, aceitação espontânea, pelo país, da situação republicana, nem nada que de longe se pareça com essa aceitação espontânea. Vamos ver, agora, se haverá justificação ou pela continuidade com a situação governativa anterior, ou pela ratificação eleitoral.

Comecemos pela consideração se há ou não justificação eleitoral. Ora as eleições em Portugal ou são uma burla, ou não são uma burla ou são às vezes uma burla e outras vezes não. Se são sempre uma burla, como crê a maioria da gente, desde que não esteja a mentir por obrigação partidária, então não há justificação eleitoral, e o argumento cai pela base. Se não são nunca uma burla, então são tão válidas as eleições do tempo do Sidónio como as dos períodos democráticos, sendo-o especialmente a formidável votação que elegeu o Sidónio, por sufrágio directo, presidente da República, e que foi a maior manifestação eleitoral que tem havido dentro da República. E, neste caso, o povo português é de uma volubilidade extrema e doentia, devendo ter a governá-lo, ou regímen nenhum, para haver correspondência governativa com essa volubilidade, ou um regímen monárquico ou ditatorial absoluto, para a refrear eficazmente. Se as eleições são às vezes uma burla e outras vezes não, como distinguiremos uma coisa da outra? Considerando, não só por observação directa que qualquer de nós pode fazer e tem feito inevitavelmente, mas também pelo número de revoluções de diversos tipos que tem havido, e que têm tido força bastante para se formar e às vezes para vencer, que o país se encontra dividido entre várias correntes políticas, entre as quais algumas bastante fortes, as eleições que foram menos burla serão aquelas em que a representação parlamentar se encontra mais dividida, em que os adversários da situação política se encontrem mais largamente representados, sobretudo se forem adversários do próprio regímen. Ora o único parlamento republicano onde houve uma larga representação monárquica foi o parlamento do Sidónio. Foi portanto esse o parlamento que, sem ser necessariamente eleito com absoluta seriedade, foi o que mais se aproximou dela.

O Canha das barbas interrompeu sacudidamente.

— Ora adeus, ó Gomes! Os monárquicos foram eleitos nessa proporção porque o Sidónio quis...

— Se o Sidónio quis, isso quer dizer que não usou de burlas eleitorais contra eles, e é isso mesmo que eu pretendo provar — que foram essas eleições, sem serem boas, em todo o caso as melhores que tem havido durante a República.

O Mendes interveio, encolhendo os ombros.

— O Sidónio quis, mas não foi por espírito de justiça... Quis porque os monárquicos o apoiavam, e portanto não lhe importava nada que houvesse muitos no parlamento.

— Óptimo, replicou o Gomes. Se os monárquicos não hostilizavam o próprio Sidónio, temos o ideal de um parlamento de "normalidade constitucional", em que ambas as correntes que o formam, embora entre si adversas, dão ambas apoio ao chefe do Estado. É um parlamento como o inglês, em que todas as grandes correntes, que o constituem estão de acordo na obediência e aceitação do Chefe do Estado, que ali é o Rei.

— V. esquece (disse o Canha) que os velhos partidos republicanos se abstiveram de ir às urnas nessa eleição...

— Exactamente como os monárquicos se abstiveram de ir às urnas nas eleições para as Constituintes republicanas, o que, por esse critério, tira todo o valor a essas Constituintes, que são o início "legal" da tal normalidade constitucional.

Do canto da casa, onde sempre se anichava, o coronel Bastos, reformado e matreiro, meteu a voz suave e um pouco rouca no intervalo rápido da conversa.

— Não sei porque é que o Sr. Gomes gasta tanto tempo com esse argumento, a pôr hipóteses e mais hipóteses...

— Com qual argumento, coronel?

— Com o da justificação eleitoral. Ninguém, que esteja falando inteiramente a sério e com lealdade pode apresentar esse argumento como legítimo. Está sabido e ressabido que as eleições em Portugal são sempre uma burla, e uma burla descaradíssima. Se aqui o Sr. Mendes ou o Sr. Canha viessem objectar esse argumento, equivalia a dizer que não tinham argumento nenhum. Compreendo que se queira justificar a existência da República por qualquer dos outros dois argumentos, que o sr. pôs como hipóteses, e uma das quais já refutou, mas pelo da ratificação eleitoral... francamente!...

O Gomes sorriu e voltou-se para o coronel interruptor.

- Bem vê, coronel, o dever do argumentador é expor e considerar todas as hipóteses, sejam ou não plausíveis. Se não são plausíveis, o argumento o demonstrará. É claro que estou de acordo consigo e que ninguém admite como legítimas as eleições que se fazem em Portugal. A minha obrigação de argumentador era, porém, supor que alguém as pudesse admitir a sério como legítimas e refutar esse hipotético alguém. De resto, deixe-me dizer-lhe, o argumento da justificação eleitoral e refutável de outras maneiras...

— Por exemplo?... perguntou o Evaristo.

— Por exemplo, este... Uma eleição é, ou pretende ser, uma expressão de opinião. Para que uma eleição seja, portanto, válida como expressão de opinião, é preciso que a opinião a reconheça como expressão de opinião. Ora ninguém em Portugal acredita nas eleições políticas como expressão de opinião, ou nos resultados delas como manifestando de alguma maneira a opinião, excepto no caso de alguns deputados das oposições, que têm realmente que ter consigo alguma opinião e apoio legítimo para poderem romper as malhas da rede eleitoral do governo. Ora se as eleições são tidas pela opinião de todos como não representando a opinião de todos, as eleições não são eleições e não há justificação eleitoral porque não há realmente facto eleitoral. E o constante apelo para as revoluções e para os pronunciamentos confirma isto decisivamente. Que querem dizer essas revoluções e esses pronunciamentos, no fundo, senão a falta de confiança na legitimidade dos resultados eleitorais, o reconhecimento, por toda a gente, que esses resultados eleitorais não são realmente válidos? E quando não queiram dizer isso, mas signifiquem simplesmente a vontade de saltar por cima dos resultados eleitorais, que quer isso dizer senão que não há respeito orgânico pelos resultados eleitorais; e que portanto um regímen ou situação política, para se justificar perante todos e ser tido geralmente por válido, tem que buscar outro apoio que não seja o das eleições?

— Não há dúvida, disse o Evaristo.

— Tudo isto, porém, continuou o Gomes, todos estes argumentos são dispensáveis. O verdadeiro argumento contra a justificação eleitoral por eleições das que caracterizam os regimens liberais é que essas eleições, mesmo quando feitas com seriedade moral, são organicamente uma burla política.

— Ora essa! — exclamou o Mendes. — E porquê?

— Em toda a parte, em todos os países civilizados, como disse ali o sr. Canha, as eleições, que custam muito dinheiro, que necessitam de uma propaganda insistente e hábil, de uma organização especializada, só podem ser efectuadas por organismos partidários para isso preparados, para isso habilitados, e dispondo dos fundos para isso. Assim é em Inglaterra, por exemplo, onde as eleições são, ao que dizem, moralmente limpas, e onde há uma antiga tradição representativa.. E se assim é em Inglaterra, onde as eleições são tão moralmente limpas quanto podem ser, em todos os outros países são de aí para pior. O facto é, porém, que, à parte um outro deputado independente, que, em geral, por uma questão de influência local — que pode, aliás, ser puro caciquismo, como se costuma dizer —, só os partidos organizados é que fazem as eleições e elegem os candidatos, dispondo assim, por fim, não da maioria, mas da enorme maioria ou quase totalidade da assembleia representativa resultante. O eleitor não escolhe o candidato; escolhe entre candidatos que lhe apresentam os partidos e, se embirra com todos, não vota, e os partidos ganham da mesma maneira. Ora os partidos são dirigidos e orientados por directórios, ou como quer que se lhes chame, nos quais prepondera a opinião de três ou quatro indivíduos, o máximo, e por vezes de um indivíduo só. No fundo, pois, o resultado de uma eleição política no regímen liberal — mesmo sendo essa eleição séria e moralmente limpa — é a imposição hipócrita da vontade de meia dúzia de indivíduos a uma nação inteira, que por vezes, em casos extremos de auto-sugestão, como na Inglaterra, chega a acreditar que tem vontade própria. E a assembleia "representativa", uma vez eleita, passa a funcionar sem fiscalização directa da própria "opinião" que a "elegeu", e a fazer, muitas vezes, exactamente o contrário do que prometeu nos comícios, e, outras vezes, coisas que, se não são esse contrário, são coisas que, pelo menos, o eleitorado não sancionaria, se as levassem perante ele. É em virtude disso que os conservadores ingleses — os conservadores, reparem! — chegaram a propor, para o caso de certas medidas graves, surgindo inesperadas, e que não haviam sido objecto das declarações nos comícios, o estabelecimento do princípio, aparentemente tão pouco conservador, do referendum.

O Gomes parou um pouco, e aproveitou a própria paragem para puxar de novo pela bolsa do tabaco.

— Os indivíduos — a tal meia dúzia ou dúzia de indivíduos, se não forem menos — que preponderam nos organismos partidários, e que portanto verdadeiramente governam o país, têm a sua responsabilidade nas situações políticas coberta e dispersa pela massa do partido a que pertencem, do eleitorado que compeliram a votar neles através do partido, e da assembleia "representativa" "eleita" por esse eleitorado. Exercendo realmente uma ditadura, exercem-na hipócrita e cobardemente, cobertos por uma massa partidária que, como é anónima, vem a ser praticamente ninguém; contraem portanto, com a índole despótica do ditador, a obliquidade moral que vem do sentimento da impunidade e alguns, se não todos os vícios que provêm do exercício constante do disfarce e da hipocrisia. E quando a isto se acrescenta que, para subirem nesses partidos até à situação de preponderância que neles têm, esses homens tiveram que servir os ditadores hipócritas que os precederam na direcção real desses mesmos partidos, vê-se que a índole hipócrita e a obliquidade moral, que seria natural que contraíssem no mero exercício da sua ditadura velada, já as haviam realmente adquirido antes, no serviço dessa mesma ditadura, pelo qual conseguiram chegar, por sua vez, a ser ditadores.

Estes factos indubitáveis (continuou o Gomes, com uma certa animação) sofrem um certo paliativo nas nações mais instruídas e educadas, porque a própria hipocrisia do ditador velado lhe impõe limites nas doutrinas e processos que empregue; a relativa lucidez e atenção do espírito público espontaneamente se revoltariam se os ditadores velados quisessem pôr em prática medidas de profunda corrupção — sobretudo de corrupção visível — ou normas de onde derivasse um manifesto perigo para a nação ou para os seus componentes. O hipócrita tem que contemporizar. E de aqui resulta que aquelas vantagens que se costumam atribuir aos regimens liberais — citando a sua acção em países como a Inglaterra — não provêm realmente dos regimens liberais, mas da educação e instrução do povo, do seu activo orgulho nacional, da sua moral social relativamente elevada. A mesma educação, a mesma instrução, o mesmo orgulho e senso moral operariam do mesmo modo qualquer Que fosse o regímen, e não poderia pensar em ir contra ele um rei mais do que um ditador velado, considerando sobretudo que num caso a responsabilidade é directa e visível, no outro dispersa e ocultada.

— Mas essa educação e esse orgulho nacionais, interveio o Canha, não serão, pelo menos em parte, produzidas por esse regímen liberal?

— Não, respondeu o Gomes. Quanto à instrução, ela nasce e desenvolve-se com o desenvolvimento da civilização, que por sua vez promove; qualquer regímen, que reja uma nação civilizada, tem forçosamente que estimular e desenvolver a educação; porque o espírito público assim o exige e espera. Quanto à moral social, nenhum regímen a cria, porque não é essa a esfera de acção dos regimens políticos; a moral social, criam-na a família os indivíduos no seu simples trato social, as influências morais e religiosas. E quanto ao orgulho nacional, cria-o, em parte, o ser uma nação grande; o sentimento da independência, cria-o o ser uma nação ou ameaçada ou constantemente agredida, e assim por aí adiante... Mas, enfim, isto são notas à margem. Voltemos ao seu argumento primitivo. Creio ter demonstrado que, se não há justificação da nossa República pelo assentimento espontâneo do país, também a não há pela ratificação eleitoral.

— Está bem, provou, concedeu o Canha. Mas ainda havia uma outra hipótese, se me não engano...

— Havia... A terceira hipótese, que é a que falta considerar, é de que a República possa ter uma justificação da sua existência na continuidade com o sistema governativo anterior...

O coronel Bastos desatou o riso.

— Aí não é preciso argumento, disse. Se o que estava antes era a Monarquia, basta a República não ser Monarquia para não haver essa continuidade.

— Sem dúvida, coronel... Mas um argumentador hábil complicaria um pouco mais a questão; e o meu dever é pôr as objecções, quando as ponho eu a mim mesmo, como se elas fossem postas por quem soubesse pô-las. A essência do regímen liberal — de qualquer regímen liberal — é a limitação do poder do Chefe do Estado, ou, antes, a sobreposição ao poder do Chefe do Estado, por uma assembleia emanada directamente (por aquele lindo processo que já expus) de um certo número de indivíduos inscritos em cadernos eleitorais, a que, não sei porquê, se chama "a nação". Dizendo melhor, a essência do regímen liberal é a transferência do poder para a tal "a nação", quer ela aceite o Chefe do Estado (que é quando, sendo rei, não é eleito por ela), quer ela eleja directamente o Chefe do Estado como no regímen republicano presidencialista, e assim nele delegue esse tal poder que em ela reside, quer eleja uma assembleia qualquer em quem delegue esse seu poder, e que depois, por sua vez, eleja o Chefe do Estado. Ora a República Portuguesa — a tal da normalidade constitucional — pode alegar em seu favor, isto é, em favor do seu carácter nacional, que realmente está em linha de continuidade com a essência do regímen liberal, salvo num pormenor — a chefia do Estado desse regímen. Mas, infelizmente para a República, este argumento também não serve.

O Gomes Pipa parou um pouco, e enrolou o cigarro de cujo pensamento a lógica o afastara.

— O regímen liberal, continuou sem acender o cigarro, é já uma quebra de continuidade governativa. Até 1820, e quaisquer que fossem as vicissitudes da nossa política interna, uma coisa permaneceu firme e contínua — o facto de que o poder todo residia essencialmente no Rei. O regímen liberal manteve o Rei, mas transferiu o poder para a tal "nação". Propriamente falando isto não é manter o rei, nem manter continuidade nenhuma, pois o Rei não é separável do seu poder, e, não o sendo, não há continuidade desde que se faça a separação. Mas, enfim, isso agora não importa, e é um outro assunto... O regímen liberal, repito, manteve o Rei, e assim, na linha de argumento que nós estamos considerando, poderia alegar como manutenção de continuidade a manutenção da Monarquia. A revolta republicana o que fez? Manteve continuidade com o regímen liberal naquilo que nele, perante este argumento de continuidade (que é o que estamos considerando, e não outro), representa ruptura de continuidade. Como a continuidade tem que ser contínua, para que possa ser invocada como continuidade e chamada continuidade, vem isto a dar em que a República continuou o liberalismo naquele ponto em que ele não continuou nada, Isto é, em que, perante o argumento da continuidade, era ilegítimo. Em outras palavras, a República, perante este argumento da continuidade, não é senão o regímen liberal elevado à injustificação absoluta.

— Bravo! — exclamou o coronel Bastos, quase caindo do seu banco. Isso é que é argumentar!

O Gomes acendeu finalmente o seu cigarro adiado.

Depois voltou-se para o Mendes, e um momento lhe passou nos olhos uma luz subtil de manha irónica.

— Quer dizer, amigo Mendes, disse ele sorrindo, ainda há uma espécie de continuidade que os senhores poderiam invocar, e que não é nem a continuidade do regímen aparente, nem a continuidade do regímen real. Os senhores poderiam invocar a continuidade de maneira de governar.. — Será essa que os senhores quererão invocar?...

— "Maneira de governar" como? interrogou o Mendes.

— Da seguinte forma... Os governos monárquicos eram incompetentes e corruptos, o sistema eleitoral monárquico incompetente e corrupto, o governo do país, sob a Monarquia, era uma oligarquia de partidos governando à parte da nação e contra a nação.

(Estou-me servindo de asserções dos senhores, sem as discutir, porque estou argumentando pelos senhores.) Ora os senhores podem alegar que não representam uma quebra de continuidade porque continuam a governar com incompetência e corrupção, que continuam a fazer eleições com competência e corrupção, e que continuam a ser uma oligarquia de partidos (ou de um só, mas não faço caso dessa pequena falha no seu argumento) que governam à parte da nação e contra ela. Não sei se querem que eu considere também este argumento...

O Mendes, num gesto brusco, pôs em meio-risco um vaso tapado com seringas de diversas espécies.

— Isso é uma brincadeira! exclamou irritado.

— Bem: o caso é consigo... Então abdica do argumento?

— O argumento não é meu; não tenho que abdicar dele...

— Não é seu mas é dum argumentador hábil que falasse por si... Em todo o caso, há para ele uma resposta a sério... Vou refutá-lo.

— Homem, para quê? interpôs o Canha.

— Diga, diga, ó Gomes! pediu o coronel puxando por um charuto e por mais contentamento.

— Vou refutá-lo, amigo Canha, por duro dever de raciocinador. Tenho por obrigação pôr todas as hipóteses possíveis, e refutar as que considere falsas, que neste caso das justificações possíveis da República, são todas. Mas isto vai depressa... O caso é este...

— Ora adeus! — exclamou o Mendes, num gesto parado de quem vai a sair.

— É claro, prosseguiu o Gomes Pipa, que uma legitimação pela imoralidade é impossível, e por isso, realmente, o argumento é improcedente e absurdo. Mas, admitindo mesmo que o não seja, é improcedente até na espécie em que se estabelece. Para continuar a imoralidade convém alterar o menos possível as condições de imoralidade; ora fazer uma revolução é, pelo menos, introduzir uma perturbação no estado, perturbação necessariamente seguida, como foi, de diversas outras perturbações. Ora para comer tranquilamente à mesa do orçamento o essencial é essa mesa não estar em riscos de ser arrancada aos comensais. A perturbação é, portanto, incompatível mesmo com o propósito de imoralidade. Dir-se-á que os republicanos não poderiam facilmente apoderar-se do poder, e comer eles só, sem afastar primeiro os outros que lá estavam. Nesse caso, mandava a boa imoralidade que se juntassem a um partido dos outros, que, dada a força que levariam consigo, de bom grado lhes pagaria a adesão. Ou então formassem um partido à parte, dentro da Monarquia, e, valendo-se, para fins de simples ameaça, da força que puseram em prática na revolução, conquistassem efectivamente o poder para eles só e para o jantar em família. E, se se alegar que não tinham força para essa conquista, sem ser pelo processo revolucionário, resulta que a sua força era fictícia, podendo vencer só com o golpe de audácia e de surpresa, de modo que até aqui, e no meio deste triste argumento, se vê bem que o movimento não tinha carácter nacional, nem mesmo imoral, e que nem a continuidade da corrupção e da

incompetência pode ser invocada, apesar de todas as aparências, pelos republicanos.

— Está bem, homem, está bem, disse, irritado, o Mendes. Para que está V. a perder tempo com essa brincadeira?

— Para disfarçar um sofisma, interveio o Canha. O nosso Gomes, não sei se os senhores repararam? sofismou todo este argumento da continuidade, e por isso convém-lhe acabá-lo numa espécie de desvio de brincadeira...

— Sofismei o argumento?

— Sim senhor, sofismou.

— E em que é que o sofismei?

— No seguinte... A continuidade, que se pode exigir à República que invoque para alegar a sua legitimidade, ou a sua normalidade constitucional ou governativa, não é, amigo Gomes, a continuidade com a monarquia, e muito menos com a monarquia absoluta, etc., etc. A continuidade republicana tem que contar-se desde que se estabeleceu a República; é a continuidade do regímen consigo mesmo e adentro de si mesmo, e não com outros regimens, e fora de si... Lá nos outros argumentos, o da aceitação nacional, e o da justificação eleitoral, foi V. muito bem, mas aqui teve que sofismar, que tirar o problema do seu verdadeiro campo, para simular o triunfo...

O Mendes, o Evaristo e até o Justino, em geral atado ao seu silêncio, sorriram ou riram desta objecção oportuna. Mas o Gomes Pipa, ao contrário do que seria de esperar, sorriu também, uni sorriso vasto e contente. O coronel Bastos, que o fitava atento, carregou a expressão de atenção.

— Contra essa objecção, disse o Gomes, esfregando as mãos, há nada menos de cinco respostas. Em primeiro lugar, não se trata de simples continuidade, mas de continuidade como sinal de legitimidade; ora a continuidade de uma coisa consigo mesma não pode determinar, de si, a legitimidade, porque assim tudo neste mundo era legítimo, visto que tudo, enquanto dura, dura, e é pois contínuo consigo mesmo. — Em segundo lugar, não se trata de continuidade como simples duração, mas, como Os senhores mesmos disseram, de maneira de durar. Se se tratasse de continuidade como simples duração, então é essencial que essa continuidade não fosse nunca interrompida, que não tivesse havido nunca movimento revolucionário algum, com carácter vitorioso, a cortar a vida da "república original", em outras palavras, que não houvesse descontinuidade. — Em terceiro lugar, reparem que estávamos considerando a justificação irracional da República; a continuidade de que se trate, pois, para esta justificação, é uma continuidade nacional, e não uma continuidade de regímen ou de partido. Ora, como a nacionalidade não começou em 5 de Outubro de 1910, a continuidade nacional também não começa aí. E se há uma continuidade partidária e não nacional, há uma continuidade partidária e anti-nacional, e esse partido está contra a nação. — Em quarto lugar, trata-se de continuidade governativa, e como a essência do governo é dominar, e uma das condições de dominar é reprimir revoltas e movimentos adversos, desde que haja ou movimentos adversos constantes, ou um só vitorioso, não há continuidade de domínio, não há portanto continuidade de governo. — Em quinto lugar, a continuidade constitucional, que é a de que se trata, é uma continuidade de ordem e a "República Constitucional" nem tem mantido a ordem, nem, quando tem retomado o seu curso, o tem sempre retomado por processos de ordem. E aqui tem, amigo Canha, cinco dedos da mão do argumentador a estrangular a sua objecção...

— Magnífico, magnífico! exclamou o coronel, trincando a ponta do charuto como se ele soubesse a raciocínio. — Quanto mais o apertam, mais V. se desembaraça.

O Gomes apontou o seu corpo prolixo. — Quando me enlaçam, caio em cima deles... disse modestamente.

Fez-se uma pausa ligeira na conversa. Entrara um freguês que se devolveu à rua com uma garrafa de água de Vidago. O coronel Bastos acendeu, sorrindo, o seu charuto. Depois, indo o freguês a sair, voltou-se para o Gomes com uma voz interessada: (...)

Autor: Fernando Pessoa

1925

RELATÓRIO DA OPERAÇÃO ESPECIAL “Computas e vinho verde”

(Por lei) Só escapam à censura a sátira e a paródia

-----------------------------------------------

Missão: Improvável

(mas, com este Governo, nunca se sabe)

A defesa da Nação face ao fascismo implica a defesa de quem a representa, o Governo; e a defesa do Governo face ao fascismo obriga à defesa de quem o sustém, o Partido. Cautela com o fascismo.

02 mai. 2023, José Diogo Quintela, ‘Observador’

Assunto:

RELATÓRIO DA OPERAÇÃO ESPECIAL “Computas e vinho verde”

Prioridade: MÁXIMA Importância: VITAL

Impacto: ALTÍSSIMO Nível: ELEVADO

Categoria: NÃO TEM

Classificação: TOP SECRET CONFIDENCIAL

APENAS PARA OS SEUS LINDOS OLHOS

Operacional: AGENTE XXXX XXXXXX, Nº XXX/37

Às 22:51 do dia 26 de Abril recebi uma mensagem encriptada do Centro de Acção Operacional Superior activando um código Roxo que me fez largar imediatamente o serviço onde me encontrava destacado. Na altura, tratava-se da vigilância ao sujeito de interesse XXXX XXXXXX, o operador de câmara responsável pela captação indevida de conversas sensíveis sobre assuntos de interesse nacional levadas a cabo por Suas Excelências o Senhor Presidente da República, o Senhor Presidente da Assembleia da República e o Senhor Primeiro-Ministro. Da minha perícia inicial, que entretanto passei ao colega Agente XXXXXX XXXXXXX, Nº XXX/28, concluí estarmos perante um perigoso cameraman (são muito usados agora pela extrema-direita) em conluio com um perigoso editor de site (a extrema-direita passou a recrutar nesta categoria profissional) numa típica operação de agitprop de cariz fascista.

Às 22:57 estava na sede do CAOS para receber as minhas instruções orais directamente do Tenente-Coronel XXXXXX XXXXX. A seriedade do Tenente-Coronel (que nem sequer aludiu ao nosso Benfica, nem nada) fez-me compreender a gravidade da situação. O Tenente-Coronel referiu que eu tinha sido escolhido para esta missão pela minha experiência em temas de interesse nacional relacionados com membros do Governo, uma vez que fizera parte da equipa de resposta rápida enviada ao Alentejo para colocar papel higiénico na berma da A6, de modo a fazer parecer que o trabalhador atropelado pelo Ministro Eduardo Cabrita tinha ido fazer cocó ao separador central. Esses “trabalhadores incautos” têm sido muito usados em acções desestabilizadoras levadas a cabo pela extrema-direita. Uma tarefa pela qual recebi dois louvores, uma condecoração e um fim-de-semana com tudo pago (meia-pensão) no Hotel Alcobaça, em Alcobaça.

Segundo o Tenente-Coronel, a missão, urgente e secreta, consistia na recuperação de material informático contendo informação sensível, com impacto na segurança do Estado, obtida de forma ilegal por um agente duplo ao serviço de uma potência estrangeira, que, sob a identidade de “Frederico Pinheiro”, infiltrado no gabinete do Ministro João Galamba, se introduzira nessa noite no Ministério das Infraestruturas, imobilizando 12 agentes nacionais e evadindo-se montado numa bicicleta com que atravessou uma janela de vidro reforçado, lançando-se da varanda do 4º andar. Claramente um operacional treinado e extremamente perigoso, possivelmente um agente adormecido russo, formado na Escola de Minsk do ex-KGB. Um dos colibris do General Palhassov, sem dúvida. Têm sido muito usados pela extrema-direita.

Às 23:11, disfarçado de vendedor de raspadinhas (realizei o pecúlio de 27 euros – nota de entrega em anexo), postei-me à porta da morada do alvo, no número XX da Av. XXXX XXXXX XXXXX, em Lisboa. Às 23:25, enquanto vigiava o perímetro, registei actividade suspeita por parte de um operacional disfarçado de entregador da Glovo, que interceptei e capturei. Era um paquistanês (muito usados agora pela extrema-direita). Interroguei-o durante 15 minutos. Infelizmente, não dispus de mais tempo para o fazer, pois ele ainda tinha uma entrega de raviolis e carbonara para fazer e a comida italiana fria perde a graça. Deixei-o ir, não sem antes ficar com o seu contacto, porque dá jeito ter alguém a quem ligar nos dias mais movimentados, em que o tempo de espera de um McDonalds chega a ser uns absurdos 25 minutos. Fiquei também com a sua mochila e assumi o papel de entregador, para aceder à casa do agente inimigo. Inspeccionei a refeição, o que reforçou a minha ideia de se tratar de um subterfúgio: era de um restaurante vegan. Obviamente, um agente que acaba de desempenhar uma missão fisicamente exigente e que, sem dúvida, deve permanecer em estado de alerta e prontidão imediata, não pode ter uma alimentação à base de tofu e couve chinesa.

O sabotador abriu a porta de roupão, mostrando ser um profissional que sabe o valor de armas escondidas. De imediato, confrontei-o com o seu crime. Não o negou. Pelo contrário, de pronto entregou-me o computador, dizendo: “Aqui está, peço desculpa pelo incómodo”. A sua reacção desconcertou-me e, por momentos, perdi a calma. Não resisti a perguntar: “Não tem vergonha de, com a sua infame traição, estar a desvalorizar a TAP, uma empresa tão importante para o país?” Ao que ele respondeu: “Dizer que isto desvaloriza a TAP é o mesmo que estar a vender um chaço todo ferrugento, com os pneus furados, sem amortecedores, com os vidros partidos, motor gripado, e pedir para não fumar lá dentro, porque isso o desvaloriza”.

A inteligência da resposta, juntamente com não haver vestígios de presença feminina no apartamento, fez-me ter a certeza de estar perante um dos brilhantes burocratas do ISCTE, treinados no uso de ferramentas retóricas de controlo neurolinguístico (aquilo que os civis chamam “conversa fiada”).

Para evitar ser subjugado, não o deixei continuar. Disse apenas ter pena que ele não fosse mais como o Inspector-Geral das Finanças que falsificou um parecer porque, como disse com orgulho, antes de auditor, é português. E acusei-o de, por sua causa, a comunicação social só falar nas mentiras do Governo, em vez de nos fantásticos números do PIB.

Às 23.31 estava de volta ao carro com o computador. Numa primeira análise superficial consegui aperceber-me da gravidade da situação que o país enfrenta. Por exemplo, uma avaliação da caixa de e-mail permitiu ver que muitos mails com combinações sobre ocultar documentos à Comissão Parlamentar de Inquérito são enviados através de um Outlook sem licença oficial da Microsoft. É uma vergonha para Portugal quando os seus governantes cometem aldrabices em nome do Estado através de software pirateado.

Às 23.52 voltei ao Centro de Acção Operacional Superior e entreguei o computador, dando a missão como terminada.

NOTA: foi com grande honra e satisfação que levei a cabo esta missão. Por duas razões. A mais pessoal prende-se com o facto de a vítima ter sido o Ministro João Galamba. Não é um facto muito conhecido, mas o Ministro Galamba é um herói na comunidade de inteligência portuguesa, pela intrepidez que demonstrou, há quase dez anos, quando recolheu informação sobre a captura iminente de José Sócrates para o avisar. Para amador, foi um trabalho de excelência.

A outra razão é o amor à Pátria. É a minha modesta contribuição para o esforço de defesa nacional que nos cabe a todos, não só enquanto agentes do Estado, mas como patriotas que cumprem o seu dever. A defesa da Nação face ao fascismo implica a defesa de quem a representa, o Governo; e a defesa do Governo face ao fascismo obriga à defesa de quem o sustém, o Partido. Cautela com o fascismo. Cautela com os traidores do interesse nacional, que atacam Portugal via Governo e via Partido. Não esquecer: nada contra o Estado!

A bem da Nação, Agente XXXX XXXXXX, Nº XXX/37 (assinatura ilegível)

domingo, 14 de maio de 2023

Veículos Eléctricos: Hesitação do Consumidor.

Uma pesquisa é apenas uma pesquisa, e os números sobre as intenções de compra podem mudar de mês para mês, mas a JD Power tem alguns dados interessantes sobre a demanda por veículos elétricos (EVs):

Nem tudo é sol na estrada para o futuro EV. Embora a tendência de longo prazo na participação no mercado de VEs tenha crescido significativamente de 2,6% de todas as vendas de veículos novos em fevereiro de 2020 para 8,5% em fevereiro de 2023, as vendas atingiram um aumento de velocidade em março, com a participação de mercado mensal caindo para 7,3%. Embora seja de se esperar alguma volatilidade mês a mês, uma análise mais detalhada das barreiras à adoção de VEs mostra que muitos compradores de veículos novos estão se tornando mais inflexíveis sobre sua decisão de não considerar um VE em sua próxima compra.

De acordo com novos dados. . . esse aumento constante na porcentagem de consumidores que dizem que é “muito improvável” considerar um EV para a próxima compra de veículo reflete preocupações persistentes sobre infraestrutura de carregamento e preços de veículos.

A partir do relatório deste mês [de maio], 21% dos compradores de veículos novos dizem que é “muito improvável” considerar um EV, acima dos 18,9% em fevereiro e 17,8% em janeiro. Enquanto isso, a porcentagem de compradores de automóveis que dizem que são “muito prováveis” de considerar um EV é de 26,9% e tem se mantido estável nos últimos três meses…

https://www.nationalreview.com/corner/electric-vehicles-consumer-hesitation/?utm_source=recirc-desktop&utm_medium=homepage&utm_campaign=right-rail&utm_content=corner&utm_term=second

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Estado Central: onde estão os boys do PS e quanto ganham

Das 119 empresas públicas que investigámos, quase 50% têm administradores do PS. Bem-vindo ao grande jogo das nomeações, das gigantescas injecções de capital e das contas em falta há anos.

Águas do Tejo Atlântico. Provavelmente só os 400 trabalhadores desta empresa da Grande Lisboa e Oeste saberão o seu nome e o que faz (tratamento de esgotos), e raros saberão quem são os seus administradores. Por exemplo, quem é o vice-presidente.

Trata-se de Hugo Xambre, um nome desconhecido do grande público, mas um homem influente no aparelho do PS. Não por ter sido o presidente da junta de freguesia do Beato (Lisboa), mas, muito mais importante, porque exerceu as funções de mandatário financeiro do partido liderado por António Costa nas Legislativas 2015 e 2019. Foi colocado nesta empresa pelo Governo com o ordenado correspondente, que no caso são €6.109 brutos por mês.


À SÁBADO. Xambre não vê aqui uma componente política: “Desempenho funções de gestão de topo, mas com forte componente técnica (dentro da minha área de formação académica – Licenciatura em Engenharia Química – Área Ciências de Engenharia e Mestrado em Gestão – e profissional) e muito pouco de política. Gostando muito da área do ambiente, tendo efectuado estágio profissional (2007) nesta área, tenho coordenado e desenvolvido trabalho, que considero com sucesso, em áreas como a reutilização de água.”
É preciso correr muito até encontrar este tipo de personalidades como Hugo Xambre, até porque tomar o pulso às empresas que são tuteladas pelo Governo equivale a manusear matrioscas de empresas dentro de outras empresas. No site da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças, por exemplo, não há qualquer referência à Águas do Tejo Atlântico. Não há, aliás, qualquer referência a águas, como se estas não pertencessem ao sector público. Mas a Águas do Tejo Atlântico é uma das 19 empresas que estão dentro da Águas de Portugal (AdP), que pertence à Parpública, que por sua vez detém mais 12 empresas: além da AdP, inclui-se a Efacec (nacionalizada em 2020), a Companhia das Lezírias (presidida por António Sousa, um ex-autarca do PS no Alentejo), ou a SIMAB, que superintende os mercados abastecedores do País.

O mundo do imobiliário e SCML
Há ainda outro colosso dentro da Parpública, a Estamo, que gere mais de mil milhões de ativos imobiliários do Estado e que está na tutela das Finanças. O ministro Fernando Medina nomeou para a Estamo pessoas que conhece bem. O presidente é António Furtado, que passou dez anos (2011/21) em vários cargos de relevo na Câmara Municipal de Lisboa, governada pelo PS nesta altura, incluindo o de diretor municipal de Gestão Patrimonial e administrador de várias empresas municipais (EMEL e SRU).
Quando Medina perdeu a recandidatura à câmara, em 2021, Furtado foi para Almada, outra câmara do PS (presidida por Inês de Medeiros), para ser, durante alguns meses, diretor municipal. A meio de 2022, Medina trouxe-o para liderar a Estamo, com um ordenado mensal de €6.892 brutos. Foi substituir Alexandre Boa-Nova Santos, que estava no cargo desde 2018 e tinha um passado na banca, sem ligações partidárias conhecidas.
Para vice-presidente da Estamo, Medina escolheu Fátima Madureira. Licenciada em História, que foi sua chefe de gabinete, passando agora, com um vencimento mensal de €6.203 brutos, a gerir o imobiliário do Estado. O outro vogal, José Realinho de Matos, é mais um dos homens-fortes da governação empresarial socialista, tendo passado por várias administrações de empresas públicas.
O ministro das Finanças justifica à SÁBADO as nomeações, salientando que “tendo terminado os mandatos da anterior equipa de administração da Estamo, o Governo entendeu oportuno nomear uma nova equipa de gestão; a escolha dos novos gestores teve por base critérios de experiência, rigor e competência, critérios estes que foram confirmados pelo parecer positivo da CRESAP”.
Noutra empresa da Parpública, a Fundiestamo, que gere fundos imobiliários, um dos administradores, Nuno Filipe, era adjunto da secretária de Estado da Habitação (Marina Gonçalves, hoje ministra). Já a Cruz Vermelha (detida pela Parpública e pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) é outro poiso do PS. O presidente do conselho de administração é um ex-ministro socialista, Adalberto Campos Fernandes, e a até 30 de abril a presidente nacional era outra ex-ministra do PS, Ana Jorge, que foi escolhida para provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), instituição tutelada pelo Governo e tingida das cores do PS
Ana Jorge substituiu no dia 2 Edmundo Martinho, também próximo do PS, sobretudo do círculo do ex-ministro Vieira da Silva e da atual ministra Ana Catarina Mendes (cujo ex-marido, Paulo Pedroso, ex-deputado socialista, foi contratado em 2020 para consultor da SCML por €3.700 brutos/mensais). Um dos administradores da SCML é Sérgio Cintra, homem-forte do aparelho do PS Lisboa (foi o presidente da concelhia até 2022). Outra administradora, Ana Azevedo, passou pelos gabinetes do Secretário de Estado do Turismo do governo de José Sócrates e da Estrutura de Missão Portugal IN, de 2017 a 2019. Também regressou João Correia, ex-chefe de gabinete de Vieira da Silva. A SCML não apresentou ainda as contas de 2021 nem 2022.
Uma nota ainda para Pedro Pinto de Jesus, que está como administrador na Empresa Pública de Águas de Lisboa. Ex-assessor parlamentar do PS, teve depois passagem por gabinetes de vereadores e administração de empresas municipais durante os recentes mandatos do PS na capital. A sua colocação na EPAL segue-se à no MARL, na GEBALIS e na Movijovem. Esta última, que é uma cooperativa do Estado, é um ninho de pessoal partidário. Na atual direção está Miguel Perestrello (irmão de Marcos Perestrello, peso-pesado do PS de Lisboa) e Inês Drummond, vereadora do PS na Câmara de Lisboa, braço-direito de Medina quando era líder do executivo.

Quatro mil/mês em viagens
Outra das empresas que estão no portfólio da Parpública é a Imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM), também sob tutela das Finanças. A empresa é a responsável por fazer o Cartão de Cidadão e o Passaporte de todos os portugueses, além da edição do Diário da República e de cunhar moeda, entre outros serviços. Tem 724 trabalhadores e um volume de negócios de 118 milhões de euros em 2022, mas há quase dois anos que não tem presidente. A empresa remeteu-nos explicações para a Parpública, que já no fecho deste artigo nos enviou um email a comunicar que a vogal Dora Moita passara a presidente.
Sem presidente mantém-se a FlorestGal, empresa de gestão e desenvolvimento florestal nascida após os incêndios de 2017, a NAV, que gere o espaço aéreo, e a Parque Escolar, cujo último relatório e contas é de 2018. A SÁBADO perguntou ao Ministério da Educação o que se passa. Resposta: “As contas de 2019, 2020 e 2021 estão em processo de apreciação pelo Conselho Fiscal da empresa.” Problema: o presidente deste também não está nomeado.
Recorde-se que a empresa, segundo o último relatório (2018), tinha 126 trabalhadores e continua em grande laboração nas escolas: só no mês de abril de 2023 declarou no portal Base 22 empreitadas adjudicadas, num total de €16,7 milhões. Sobre esta empresa não há nenhuma informação financeira e contabilística publicada há cinco anos.
Voltando à Imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM), tem uma particularidade: paga elevadas quantias em viagens aos seus administradores. Em 2022, por exemplo, a então vogal Dora Moita recebeu €48.006 (média mensal de €4.000). Já em 2021, o presidente (que esteve no cargo até novembro passado) custou €46.840 (também uma média superior a €4.000 por mês). Os outros dois vogais custaram cerca de metade: 23 e 29 mil euros em deslocações e viagens. O relatório e contas de 2020 já mostrava o mesmo padrão.
A administração respondeu à SÁBADO, via assessoria, dizendo que tais custos têm a ver com “o processo de internacionalização da INCM”, “que exige e envolve a realização de deslocações ao estrangeiro, seja nas geografias em que já opera, seja junto dos novos mercados e oportunidades que pretende conquistar”. Refere ainda que a INCM está “presente em mercados e geografias tão distintas” como Camarões, São Tomé e Príncipe, Finlândia, Estónia, Colômbia, Grécia, Arménia e Geórgia. A SÁBADO pediu a lista concreta das viagens feitas nos últimos três anos pelos administradores, mas não obteve resposta.
As empresas públicas têm diferentes classificações, em função da sua complexidade e responsabilidade, o que determina em que escalão os gestores são pagos. Daí que uns ganhem mais do que outros , mas nenhum passa o salário do primeiro-ministro (salvo exceções; ver texto principal): os presidentes dos metropolitanos e dos centros hospitalares mais importantes ganham o mesmo (€6.800), mas todos ganham menos que o presidente da RTP (€7.634) e não chegam perto (€8.012) dos presidentes da Parpública, IP, NAV, CP, IGCP, TAP, Águas de Portugal, EPAL e Águas do Norte. De referir que, regra geral, os administradores públicos têm €80 em comunicações, além de carro.
Embora os salários dos administradores públicos estejam limitados ao salário do primeiro-ministro, há exceções nas empresas em regime de concorrência no mercado. Nestes casos, os administradores podem ter o vencimento de origem (média dos últimos três anos).
Era o caso de Christine Ourmières-Widener, CEO da TAP, agora demitida, que ganhava €504 mil anuais (média de €36.000), fora bónus. Segundo o relatório e contas, os administradores da TAP têm “seguro de vida, seguro de saúde, seguro de acidentes pessoais e utilização de um telemóvel em serviço. A CEO “tem também um subsídio de residência anual de até €30.000”, tal como a vogal Silvia Mosquera Gonzalez. Esta tem ainda “subsídio anual de frequência escolar até €15.000”.
Outro exemplo de quem recebe acima do primeiro-ministro é Celeste Hagatong, presidente do Banco de Fomento, que ganhará €21.428, um valor que a SÁBADO apresenta depois de ter dividido por 14 o número (€300 mil) avançado pelo Eco em 2022. O jornal digital dizia que “o Ministério da Economia recusa-se a revelar oficialmente os salários da presidente e da CEO do Banco de Fomento”. A SÁBADO também perguntou ao ministério e obteve como resposta: “As questões devem ser colocadas diretamente ao Banco Português de Fomento.” O banco nunca nos respondeu. Só será possível saber os valores exatos quando sair o relatório e contas de 2022, algures ao longo deste ano.

Gestores com cartão partidário
A 12 de abril, Carlos Guimarães Pinto, deputado da IL, dizia no hemiciclo que a atenção mediática estava focada na TAP e que pouco ou nada se sabia do resto: “Que favores se pagam nessas empresas? Como são escolhidos os seus gestores? Como é que a tutela interfere nas decisões aí tomadas? Quanto dinheiro dos contribuintes é enterrado em más decisões que nunca iremos saber como foram tomadas?” O deputado reforçava a tese dos gestores, “que são muitas vezes nomeados, não pelas suas competências, mas pela confiança política, ou pelo cartão do partido, não faltam exemplos”.
Um deles é o da Infraestruturas de Portugal (IP), “que recebeu mais injeções de capital nos últimos três anos do que a TAP”, referiu o deputado. O presidente é Miguel Cruz, que fora até 2021 secretário de Estado do Tesouro. Foi substituir António Laranjo, que saiu em 2021 - a IP disse à SÁBADO que foi “uma renúncia, a pedido do próprio, e não houve pagamento de qualquer indemnização”.
O presidente da IP está no topo dos gestores mais bem pagos (€8.012). A vice-presidente de Miguel Cruz é Maria Amália Almeida, que era a sua chefe de gabinete no anterior governo de António Costa. O outro vice-presidente da IP é Carlos Fernandes, que em 2002 (governo António Guterres) foi adjunto de Vieira da Silva, na altura secretário de Estado das Obras Públicas e o pai da atual ministra Mariana Vieira da Silva. Cada um dos vice-presidentes ganha por mês €7.181 brutos.
Das três vogais da IP (salário mensal de €6.409), uma delas, Ana Coelho, foi adjunta de Fernando Medina entre 2006 e 2009 (governo liderado por José Sócrates), quando era secretário de Estado do Emprego (o ministro era Vieira da Silva).
A saga dos chefes de gabinete atravessa o setor (como podemos ver ao longo deste artigo). Em junho de 2022, dois meses antes de se demitir, a ministra da Saúde, Marta Temido, nomeou a chefe de gabinete, Eva Falcão, para dirigir o IPO Lisboa. Em 2019, Susana Larisma, chefe de gabinete de Mourinho Félix, secretário de Estado das Finanças, foi nomeada para o board da Parvalorem, empresa que ficou com os ativos do BPN.
Algumas empresas que sempre foram poiso de militantes do partido do Governo são hoje lideradas por perfis mais técnicos, como a CP, a RTP, a TAP, ou mesmo a CGD, onde se pode detetar apenas um vogal (Nuno Martins) que veio do Governo, onde era adjunto do secretário de Estado do Tesouro e das Finanças.
€362 para fazer 8 km
Com exceção da CGD (rara empresa pública pujante), as outras empresas do Estado recebem gigantescas injeções de capital para se manterem à tona (tanto dinheiro que até podem dar lucro num determinado ano, como aconteceu agora com a TAP e a IP). Em 2021, a TAP começou a receber um pacote de €3,2 mil milhões. A IP, só em 2021, recebeu quase mil milhões, e mesmo assim tinha uma dívida que passava os quatro mil milhões. A CP recebeu €3,8 mil milhões desde 2015, segundo o Económico, para ajudar a pagar dívidas à banca e a fornecedores.
Como podemos verificar na infografia, o PS está presente em metade das empresas tuteladas pelo Governo. São raros os elementos do PSD que resistem. Além de Paulo Macedo (CEO da CGD), há Ana Paula Martins, recém-nomeada presidente do maior centro hospitalar do País (o Lisboa Norte, que inclui o Santa Maria), Luís Castro Henriques (presidente da AICEP) e Miguel Paiva (no Centro Hospitalar Entre Douro e Vouga). Havia Marina Ferreira, que se demitiu em março da Transtejo depois da polémica dos barcos elétricos comprados sem baterias. Há uma vogal (Paula Pêgo) na administração do Metro do Mondego e alguns vogais nas empresas de águas (que são de âmbito local, onde entram em jogo os partidos que dominam as câmaras).
Algumas empresas do Estado têm mais do que um elemento do PS. Destacamos o caso do Centro Hospitalar do Médio Ave, onde estão o presidente (António Barbosa, ex-vereador na câmara de Famalicão) e os dois vogais (Luís Moniz, ex-vereador em Famalicão também, e Victor Boucinha, da assembleia municipal da Trofa). Sobre este último, segundo o relatório e contas de 2021, salta à vista um valor em despesas de deslocação que não encontrámos em mais nenhuma empresa: €4.351 (cerca de 362/mês).
A administração justifica à SÁBADO: “Victor Boucinha reside na Trofa, mas é a partir da Unidade de Santo Tirso que exerce o seu cargo, onde tem o seu gabinete e o seu domicílio necessário. Não há viatura afeta ao Conselho de Administração, pelo que os valores em causa se referem a todas as deslocações realizadas em serviço pelo senhor administrador.” Ou seja, além do ordenado (€2.985 mais €1.194 em despesas de representação), o vogal do PS recebe €362 mensais por residir a 8 km (Trofa-Santo Tirso) do local de trabalho.
O mesmo tom rosa do PS encontra-se na administração do Centro Hospitalar Lisboa Central: a presidente é Rosa Valente de Matos (ex-secretária de Estado da Saúde), que chegou a ter como vogais os seus dois ex-chefes de gabinete. Até nas unidades locais de saúde há socialistas, como é exemplo a da Guarda, que tinha até há pouco tempo como um dos administradores António Monteirinho, atual deputado e presidente da concelhia do PS Guarda.
Na Marina do Parque das Nações (Lisboa), o presidente é André Fernandes, ex-assessor de Paulo Campos, secretário de Estado dos Transportes no governo Sócrates. Veja-se ainda o caso de André Moz Caldas, quadro do PS/Lisboa. Em 2015 foi nomeado chefe de gabinete de Mário Centeno nas Finanças ao mesmo tempo que era presidente da junta de Alvalade. Em 2019, foi nomeado presidente da OPART (que tutela o Teatro São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado), onde ficou três meses, sendo nomeado secretário de Estado da Presidência, onde se mantém. A sua renúncia ao cargo não motivou o pagamento de indemnização, garantiu à SÁBADO a OPART.
Na Águas de Portugal, dois dos três vogais, Carla Correia e Pedro Vaz, têm também pegada socialista, sendo que este último tinha sido assessor do gabinete de Fernando Medina na câmara de Lisboa. Na Águas de Santo André, os dois vogais (Marcos Sá e Carla Cupido) têm também um passado PS, sendo que Carla Cupido foi assessora de Medina em Lisboa.
Na Administração do Porto de Aveiro, que não tem contas aprovadas, o presidente é um quadro do PS de Aveiro: Eduardo Feio, por nomeação do ministro da altura, Pedro Nuno Santos (deputado eleito por este círculo). Foi vereador da câmara até 2005, altura em que foi para cargos de chefia intermédia no ministério da Administração Interna (governo Sócrates). Com a chegada do governo Passos Coelho foi para o setor privado, até que o regresso do PS ao poder o levou de novo para o Estado central: presidente do Instituto da Mobilidade e dos Transportes. Tal mereceu o júbilo dos camaradas no Facebook: “A concelhia de Aveiro do PS felicita o camarada Eduardo Feio pela sua nomeação, e endereça-lhe os votos de muito sucesso nas suas novas funções.”

Marco Alves

Sábado


terça-feira, 9 de maio de 2023

O PS e o país nunca fizeram a purga necessária.

por Diogo Gil Gagean

Corria o ano de 2014 quando o país foi surpreendido com a detenção de José Sócrates em pleno aeroporto de Lisboa. Para uns foi o culminar de uma serie de suspeições que incidiam sobre o ex-primeiro-ministro, para outros foi uma injustiça do tamanho do mundo.

Cabia à Justiça apurar qual dos dois sentimentos iria prevalecer no fim do denominado processo “Operação Marquês”. Tudo neste processo começou mal, desde a aparente sensação de que José Sócrates apenas foi detido para se investigar as suspeições que pendiam sobre ele, até à criação do muito em voga no nosso sistema judicial da “mega-operação”.

Só o nome “mega-operação” era suficiente para me deixar de pé atrás relativamente ao sucesso do processo judicial. Quando se junta muita coisa no mesmo saco é mais provável o saco romper e deixar cair todo o seu conteúdo. Vem este intróito a propósito da notícia da provável prescrição dos crimes de falsificação imputados a José Sócrates, já em 2024.

O juiz Ivo Rosa já deu indícios de que todo o processo está inquinado desde a sua nascença, quer tenha sido por sede de protagonismo, quer tenha sido por quezílias anteriores com o juiz Carlos Alexandre, a realidade é que Ivo Rosa deixou cair vinte e cinco dos crimes que o ministério público imputava a Sócrates. Aqui chegados temos duas hipóteses, ou confiamos na Justiça portuguesa ou não confiamos.

Por princípio confio sempre na Justiça portuguesa, mas quando sei que Ivo Rosa deixa na sua gaveta um recurso de José Sócrates durante mais de um ano, não perco a confiança na Justiça, mas sim nos homens que tem de a aplicar. O Conselho Superior da Magistratura deveria actuar pelo menos com a abertura de um processo de averiguações que invariavelmente não iria dar em nada, mas daria, pelo menos, a aparência do bom funcionamento das instituições.

Aqui chegados, não sabemos o que é pior: se Sócrates ter cometido os crimes de que é acusado, se é apenas uma perseguição da Justiça em prol de interesses ocultos. O que não pode acontecer é um ex-primeiro-ministro ser detido e depois nunca chegar a julgamento, seja por artimanha do seu poderoso exército de advogados, seja por incúria do ministério público ou por inacção dos magistrados judiciais…

O diabo

O socialismo faz sofrer o pobre

Deus não é socialista. Os homens não foram criados iguais, mas profundamente desiguais. Nada é igual no mundo. Sempre existiram ricos e pobres, cultos e ignorantes, o feio e o belo. Nada foge à realidade das pessoas, das coisas, do pensamento.

O mundo tem evoluído através da história da humanidade. O conhecimento já nos permite saber o que é certo e o que é errado, o que funciona e o que não funciona.

Em tese, concluiu-se que o regime democrático é o melhor entre os disponíveis e o sistema capitalista o que promove o progresso, o mérito e gera riqueza a ser distribuída e a servir aos necessitados. As experiências totalitárias não deram certo e as teses abraçadas pelos antecessores e sucessores do marxismo apresentam inquestionáveis saldos de pobreza, violência, ausência de liberdade política, religiosa e de empreender.

A sabedoria popular descobriu que mesmo os regimes fortes, chamados de direita ou populistas ou nacionalistas, são biodegradáveis. Dificilmente sobrevivem aos seus criadores e líderes e não possuem uma central que os coordene. Ao contrário dos socialistas e comunistas, que dispõem das suas “internacionais”, pois o pensamento é padrão para todos os povos. A direita respeita a propriedade, a livre iniciativa, o direito do ir e vir e alguma liberdade de opinião e de imprensa. Nada parecido com os governos fortes de esquerda tipo Cuba, Venezuela, Nicarágua, etc..

O mundo não se apercebe que o ponto final dos socialistas são regimes em que os povos são prisioneiros, como os cubanos há mais de 60 anos no racionamento de bens essenciais, sem liberdade, sem pão e sem a opção de sair. Milhares já perderam a vida na fuga pelo mar de Caribe. Na Europa foram décadas em que foi preciso construir muros electrificados para reter populações obrigadas ao confinamento. Em pouco tempo as nações cativas do Leste ganharam qualidade de vida, liberdade, prosperidade e podem circular pelo mundo, dando ao turismo um crescimento cuja explicação é justamente a do mercado ter sido acrescido de milhões de famílias que antes não tinham direito nem recursos para o turismo. E a actividade era limitada, contribuindo hoje para o rendimento de todos os países que viviam aprisionados na chamada Cortina de Ferro, tão bem definida por Churchill. Hoje a influência socialista nos países democráticos e com resquícios de capitalismo faz com que estes sofram, com a perda de qualidade de vida e de mercado para os asiáticos, pela legislação contrária ao investimento, à poupança, à geração de bons empregos.

A presença no poder de socialistas tem sido marcada pelo ambiente hostil ao investimento privado, a concentração da economia em poucos grupos e a população com baixos salários e muitos impostos. Os salários baixos pedem assistência estatal, excesso de funcionários, mais impostos para pagar um funcionalismo público pouco produtivo, mas identificado com governos de esquerda que são lenientes na disciplina e generosos nos salários. Antes, as carreiras púbicas eram pouco remuneradas, mas compensadas pela segurança. Hoje, há estabilidade, salários, vantagens, greves a todo o momento, sem desconto dos dias parados.

O uso da democracia clássica, eleitoral, sem controles eficientes por parte da sociedade, é facilitado pela política do “nós e eles”, em que o “nós” é o trabalhador, o funcionário e “eles” são os capitalistas exploradores, os patrões. Nas empresas estatais reinam todo tipo de escândalos, de apadrinhamento e prejuízos cobertos pelos impostos. E há parte da população explorada que acha natural. Quanto custou aos portugueses a “reestatização” da TAP? E quanto vai custar ao Brasil o regresso da intervenção do estado, pelos militantes políticos e sindicais, nas empresas? Na empresa privada o prejuízo é dos accionistas; nas estatais de todos os cidadãos contribuintes.

A busca do voto gera a gestão imprudente e irresponsável, que acaba por custar caro ao povo, aos menos favorecidos. E os políticos adoptam o discurso de prometer pontes onde não há rios. E o povo aceita.

Os exemplos de sucesso são apagados pela repetição de um discurso primário que critica os que ganham muito, desde que não sejam cantores nem jogadores de futebol. Quem investe na agricultura corre riscos, quem gera empregos na indústria, sob a pressão de no final de mês ter de pagar salários e só depois retirar o seu, é hostilizado. Quem presta serviços não merece ganhar; são todos exploradores!

No Brasil, o maior industrial têxtil do século passado, Rodolfo Crespi, foi pioneiro no amparo aos seus trabalhadores, com habitação, assistência médica e actividades recreativas para a família proletária. Em Portugal, Alfredo Silva foi o exemplo da solidariedade cristã na relação com seus empregados, sendo ele o maior empresário do país. Não precisou de leis para tratar com dignidade os seus colaboradores. Estes são os heróis verdadeiros e não os demagogos que afastam empregos e não os criam e querem distribuir o dos outros.

A pergunta que não cala: onde é que o socialismo melhorou a vida do trabalhador? Qual o mal no lucro que gera impostos, investimentos, emprego e faz circular a riqueza? O que justifica empresas do estado sempre mal geridas e com frequentes abusos e casos de corrupção? Deve-se cuidar em dotar o estado de recursos para programas sociais ou apenas punir o investidor, o proprietário, o accionista, o contribuinte?

Os homens não comprometidos com a demagogia de esquerda, que corrói as sociedades, inclusive sob o ponto de vista ético e moral, devem perguntar-se onde erraram e onde estão a errar perante a repetição de frustrantes resultados eleitorais em tantos países. ■

Aristóteles Drummond

O diabo

ABC dos Grandes Números

PORCA MISERIA

-------------------------------------------

O Estado português gastou 404 000 milhões de euros do dinheiro dos outros para chegarmos ao estado em que estamos.

Mas para muitos portugueses o que é mesmo indigno é a indemnização a Alexandra Reis.

07 mai. 2023, João Caetano Dias, ‘Observador’

Conselheiro Nacional da Iniciativa Liberal

A confusão que por vezes se estabelece entre milhões e milhares de milhões em artigos de jornais, em comentários televisivos e nas redes sociais deve-se ao facto de, para muitas pessoas, qualquer número acima de um milhão cair numa categoria de quantidades transcendentes, impossíveis de processar de forma automática. Este artigo tenta clarificar ordens de grandeza de alguns números, apresentando-os de forma crescente, em euros.

· 0,5 milhões – Também conhecido por quinhentos mil, foi o montante negociado pelo governo e pela TAP com a administradora Alexandra Reis e que causou todo o imbróglio das últimas semanas. Como referência, chamemos a este valor de meio milhão de euros um IAR (Indemnização a Alexandra Reis). Servirá de termo de comparação ao longo do artigo, numa apropriação cultural de uma intervenção do Deputado Carlos Guimarães Pinto na Assembleia da República. Apesar de ser o mais pequeno desta lista, é dos números apresentados o que gerou maiores indignações.

· 4 milhões (8 IAR) – foi o valor pelo qual foi anunciada a venda da casa onde José Sócrates residiu, no 16º arrondissement, em Paris. Corresponde a cerca de 70 anos do salário de um primeiro-ministro. Apesar de ser um valor inacessível para a maioria dos portugueses, este magnifico apartamento decorado com gosto e sofisticação estaria facilmente ao alcance da Ex-CEO da TAP. Para o pagar, é possível que Christine Ourmières-Widener nem precisasse recorrer a crédito ou quebrar o porquinho-mealheiro das poupanças acumuladas. A indemnização que os contribuintes lhe atribuirão pelo seu despedimento “com justa causa” deverá ser suficiente.

· 26 milhões (52 IAR) – É o ajuste nas contas da TAP, em 2022, pela utilização de prejuízos fiscais reportáveis, um movimento contabilístico de antecipação de resultados que não foram obtidos nas operações. Se a este valor adicionarmos “várias dezenas de milhões de euros” conseguidos com os cortes salariais e despedimentos, ficaremos próximos do lucro total declarado, que foi de 65,6 milhões. Antecipações de resultados, despedimentos e cortes salariais, são assim as principais componentes de um passo sólido nas perspectivas para o futuro da empresa e para o país.

· 33,5 milhões (67 IAR) – Valor próximo do custo do Túnel do Marquês em Lisboa, a preços actuais, incluindo apenas a construção da infra-estrutura. As indemnizações pagas ao consórcio construtor, “em larga medida como forma de compensação dos atrasos induzidos pela providência cautelar interposta por José Sá Fernandes, actual vereador do BE na equipa de António Costa (2008)”, fez aumentar esse custo em mais 36 IAR (44 IAR a preços actuais).

Na mesma ordem de grandeza estão os lucros do Pingo Doce em 2022, que foram 33 milhões de euros. Era também este o Orçamento Inicial da Casa da Música, no Porto, mas o custo final foi de 111,2 milhões de euros (222 IAR)

· 55 milhões (110 IAR) – Montante que o governo português pagou a David Neeleman, transformando-o no único empresário na área da aviação a ganhar com a pandemia. Para quem se indignou muito com este valor, 110 vezes superior à indemnização recebida por Alexandra Reis, recorde-se que representa apenas 1,7% dos custos do festim que se seguiu.

· 165 milhões (330 IAR) – O TGV, que não saiu do papel, já custou 120 milhões em estudos e projectos (240 IAR), mais 33 milhões para a RAVE (66 IAR) a que se podem adicionar 12,2 milhões de indemnizações de processos que estavam já concluídos em 2015. A valores de hoje aproxima-se de 380 IAR. Em 2022, lia-se no Observador que o “Estado pode ter de pagar 220 milhões de euros por causa do projecto de José Sócrates para o TGV”. São só mais 440 IAR, “que correspondem aos 149,6 milhões que o Estado foi condenado a pagar em 2016, acrescidos de juros”.

· 203 milhões (406 IAR) – Os números vão crescendo e atinge-se agora o montante que, segundo o Tribunal de Contas, representa as poupanças do Estado com as Parcerias Público-Privadas no sector da Saúde. O que nos vale é que já não volta a acontecer. Daqui em diante pagaremos mais milhões por menos saúde, mas jamais alguém poderá voltar a incomodar a Ex-ministra Marta Temido, proclamando que “três hospitais PPP ocupam pódio em Excelência Clínica”, como afirmava a Entidade Reguladora da Saúde.Refira-se que estas poupanças foram sol de pouca dura. Tudo o que se economizou com as PPP da saúde já não é suficiente para suportar os custos da nacionalização da Efacec, que em Fevereiro de 2023 já somavam 408 IAR. E por cada mês que passa, adicionamos 20 IAR.

· 532 milhões (1064 IAR) – Ultrapassámos agora a barreira dos 500 milhões de euros, valor que serviria para indemnizar 1000 Alexandras Reis, mas que será aplicado na construção do Hospital de Todos os Santos, também conhecido por Hospital Oriental de Lisboa. Isto é uma previsão de preço antes de se iniciar a obra. As previsões anteriores eram bem diferentes. Em 2007, quando a obra foi anunciada, estimava-se um custo de 150 milhões de euros. Cada ano que passou, a obra deslizou 50 IAR, sem nunca ter saído do papel. Em 2007 também se estimava que o hospital seria inaugurado em 2012, mas agora já se admite que será em 2027. Estamos apenas com 15 anos de atraso, cerca de 1,7% do tempo que Portugal tem de vida como nação independente. Praticamente nada.

· 760 milhões (1520 IAR) – Foi quanto ganhou o Estado Alemão ao sair da Lufthansa, passada a pandemia. Vendeu os 20% do capital que lhe tinham custado 306 milhões de euros, em 2020, por 1070 milhões de euros em 2022. Teve lucro, algo que é indesejável, como qualquer estudante do Centro de Estudos Sociais bem sabe. Felizmente, temos um Estado pouco ganancioso que prefere os prejuízos.

· 3,2 mil milhões (6400 IAR) – A TAP tinha, em finais de 2021, cerca de 6600 trabalhadores. O montante que Pedro Nuno Santos enterrou na companhia seria suficiente para pagar a todos os trabalhadores uma indemnização equivalente à que foi acordada com Alexandra Reis. Foram 3200 milhões que demonstraram à evidência a visão estratégica e a capacidade de gestão de Pedro Nuno, o homem que percebe de aviação. Os 3,2 mil milhões permitiriam também indemnizar uma Alexandra Reis todos os dias ao longo de 17 anos. Ou pagar 100.000 euros a cada trabalhador e ainda sobravam 2,5 mil milhões (5000 IAR).
Uma curiosidade: ao preço a que o Estado alemão vendeu as suas acções, o Estado português poderia ter comprado 59% da Lufthansa por 3,2 mil milhões de euros, obtendo a maioria do capital da empresa. Mudava-se o hub de Frankfurt para Lisboa e os alemães ficavam com as pernas a tremer. Como é evidente, esta ideia não teria pernas a tremer para andar. O Estado alemão e os restantes accionistas privados nunca aceitariam vender as suas participações a um dono completamente irresponsável.

· 3,3 mil milhões (6600 IAR) – Foi o montante do aumento da Dívida Pública em 2022. Sim, a dívida pública aumentou, em 2022, 3,3 mil milhões de euros. Reduziu em percentagem do PIB, beneficiando da inflação em alta e da recuperação económica pós-pandemia, mas aumentou em valor absoluto, um pouco mais que o valor que o governo injetou na TAP.

· 6,7 mil milhões (13 400 IAR) – Foi o montante que Portugal recebeu com o programa dos Vistos Gold nos primeiros 10 anos. Como é próprio de países bem capitalizados que não necessitam captar investimento estrangeiro, preparamo-nos para acabar com este programa. Não nos faz falta.

· 35 mil milhões (70 000 IAR) – Um grande salto, agora. Segundo relatórios publicados pelo Conselho das Finanças Públicas, entre 2014 e 2021, foram injetados em empresas do Sector Empresarial do Estado, através de dotações de capital e empréstimos, mais de 35 mil milhões de euros. O custo médio anual suportado pelos contribuintes com as empresas públicas neste período (4,44 mil milhões de euros por ano) permitiria reduzir o IRS a todos os portugueses em 27,5%, sem impacto nas contas públicas. (Na verdade poderia reduzir-se bem mais, uma vez que o montante adicional disponível nos bolsos dos contribuintes reverteria parcialmente para o Estado, sob a forma de IVA, impostos sobre o consumo e até IRC, com o aumento dos lucros das empresas gerado pelo incremento da actividade económica)

· 132 mil milhões (264 000 IAR) – Montante total dos Fundos Europeus recebidos por Portugal desde a adesão à União Europeia até finais de 2022. Ainda sem o PRR.

· 272 mil milhões (544 000 IAR) – Dívida Pública portuguesa em finais de 2022.

· 404 mil milhões de euros (808 000 IAR) – Se somarmos os dois valores anteriores, os fundos europeus recebidos por Portugal com a dívida pública acumulada, concluímos que o Estado português gastou 404 000 milhões de euros do dinheiro dos outros, para chegarmos ao estado em que estamos.
Mas para muitos portugueses, o que é mesmo indigno é a indemnização a Alexandra Reis.
Felizmente será devolvida.
Era um escândalo.

A fábula do ESTADO

UMA REFLEXÃO

Talvez a última manifestação permitida da RAÇA BRANCA

Não era suposto sê-lo, mas foi.

Só vi ‘Diversity, Equity and Inclusion’ nos convidados.

Vi ZERO disso na manifestação espontânea do povo.

Que povo?

Era um mar de gente branca.

As tradições das minorias étnicas (em breve serão cada vez mais, maiorias localizadas geograficamente, até se apoderarem pela força do voto – dentro de alguns anos – do PODER total) não contemplam nem colaboram com a ‘tradição’ de mostrarem respeito a uma instituição que, quando existe, define e mantém viva uma NAÇÃO: a MONARQUIA.

E – além de tudo o mais – NUNCA até hoje um país de etnia dominante ‘não branca’, aceitou (ou aceitará) um branco em posição de PODER.

As etnias ‘não brancas’ são incomensuravelmente mais RACISTAS. E, se excluirmos os soviéticos - que são maioritariamente ‘brancos’ (caucasianos) – as etnias ‘não brancas’ são incomensuravelmente mais cruéis e impiedosas.

Quando atingirem o PODER terão como primeira prioridade a destruição das tradições que não são delas, impondo as suas.

Encolhendo os ombros, concluo ‘filosóficamente’, reconhecendo a minha total impotência: Já não é o meu mundo.

----------------------------------------------------
A fábula do ESTADO




por Olympus Mons, em 06.05.23


Neste últimos dias, assistir á coroação do rei Carlos III tem sido, não direi penoso mas uma mistura disto com nostalgia de um mundo que não mais é ou será. Como já tinha acontecido durante o funeral da rainha tudo aquilo é um mar de “whiteness”. Sim, “whiteness”.  E não terão sido pessoas como eu que começaram a conversa nestes moldes, bem mais satisfeitos estariam pessoas como eu em deixar a resolução do novo mundo para uma solução mais “affect” deixando os princípios se adaptarem ao tempo e não esta racionalidade proto-marxista que nos governa endeusando valores que depois nem são particularmente bem definidos. Mas o mundo é como é.

Curioso ver como em alguns dos canais internacionais se acompanha as cerimónias e noutros como a Al-jazerra se dedica um espaço enorme aos protestos anti-monarquia.

E comparem lá este mar de gente contra a quantidade de pessoas em qualquer protesto climático ou político em histriónicos e por vezes violentas manifestações?

Que princípios move esta gente? 

E olhando para o mar de gente, o tal amado povo, que acompanha esta cerimónia não podemos deixar de perguntar, em Londres onde a maioria da população até não é étnica e ancestralmente britânica, onde estão as pessoas todas da “diversity"? -  Diversity, Equity e inclusion vi nos convidados escolhidos a dedo. Vi zero na manifestação espontânea do povo. Que povo?

É um mar de gente branca. Sim, caucasianos. Sim gente descendentes dos Bell Beakers, que se intitularam um dia anglo-saxónicos. Sim, onde está o mar de asiáticos do sul e da Ásia central que hoje em dia já são parte considerável e mesmo o maior grupo étnico de Londres? E os descendentes de Africanos? – Onde está essa gente muitos deles filhos de gente já nada no reino unido? Sim, onde está essa terceira geração de britânicos a celebrar o seu rei? Nada?

Claro que não estão porque mesmo neto de, continua a olhar para uma cerimónia de celebração de uma história que não é a sua. Porque o passado de todos nós conta!
E as tradições representam uma herança que nos assegura um sentimento de continuidade e algo a que determinada pessoa pertence de forma integral. Mas, acima de tudo, as tradições representam soluções encontradas no passado. Assim:

“Tradition is a set of solutions for which we have forgotten the problems. Throw away the solution and you get the problem back.”

E tudo o que eu vi aqui foi tradição milenar. Foi um evento que advém do século XIII e que representa a continuidade de um sentir de algo que aquelas outras entidades não integram como seu intrínseco porque no momento em que elas ocorriam essas etnias e culturas ainda estavam na verdade na idade do ferro ou até da pedra.

Aquela gente que ali se reúne sente “algo” que os outros não sentem, não é? “algo que já em si advém desde a formação da identidade Europeia com os Bell Beakers do 3º milénio AC. De uma formação identitária que era hierárquica, ritual e baseada em “chiefdoms” e que perdura até hoje. É aquilo que somos e curiosamente nem na terceira geração de “outros” se sente esse subconsciente de pertença.
E quando digo, somos, é esse somos que nos une, ou devia, unir a aquela gente. "aquilo" ali resulta de um conjunto de genes, que gerou um temperamento de gente que criou uma cultura que em si própria é europeia. Sim, outra vez, sim, entre aquele mar de gente ali e você português, se o for, que me lê a distância genética é quase de ... primo. 0.005 de Fst (fixation index) que mede a distância genética entre populações é nada, logo tem tendencialmente um temperamento parecido, logo uma cultura similarmente identificável! 

Mas, não se iludam. A nova geração de britânicos tal como os nossos aqui, e o futuro será sempre dos mais novos, a demografia é destino, 78% deles não se revê na Monarquia. – O futuro é tendencialmente marxista, porque o marxismo é em grande medida narcisismo e este reina no mundo de hoje – Alguém que “nasce” meu “superior” é insuportável para um narcisista. E, não nos iludamos, quem nasce para rei nasce “superior” aos restantes porque nasce com constrangimentos impostos pelas tradições milenares, não é?

Por isso uma pessoa (dizia-se um homem) só se deve ajoelhar perante Deus, o monarca (que representa a sua identidade comum) e pessoa que ama. Tudo valores aceitadamente “superiores”.

Enfim, muita gente, especialmente os mais novos, olham para isto tudo e dizem que não se ali alinha com os meus valores. Os “values”.  Os nossos valores, ou por exemplo como muito se gosta de falar hoje em dia os valores das democracias liberais… Pois, é. Mas valores até podem governar os nossos comportamentos mas não são princípios! E se valores governam ou instruem os nossos comportamentos no dia-a-dia, não se iludam, os princípios governam as consequências desses comportamentos!

Aquilo que se assistiu hoje uma das ainda visíveis manifestações de tradições milenares, mas também é muito o crepúsculo dos princípios que nasceram para ser soluções de problemas que já nos esquecemos quais eram.