quarta-feira, 15 de julho de 2020

O Museu a seu dono.

Num país que já merece um Museu dos Tachos, é preciso querer embirrar com o PCP para pegar neste tema. Por mim, tudo bem.

Numa das suas poucas afirmações que estão certas, Marx declarou que a história tende a repetir-se, primeiro como tragédia, depois como farsa. Curiosamente, é também uma das raras citações de Marx que não está na origem de alguns milhões de mortos. Deve ser acaso.

Desta feita, a recorrência deu-se a propósito da nomeação de Rita Rato para dirigir o Museu do Aljube. Mais de 40 anos depois do 25 de Abril, o Estado volta a mandar injustamente um comunista para o Aljube. A diferença é gramatical, só muda o advérbio: em vez de “dentro” do Aljube, agora é “à frente” do Aljube.

Como, neste momento, Portugal se pode dar ao luxo de não enfrentar problemas graves, o tema deu para uma semana de polémica. Rita Rato é Ex-deputada e militante do PCP e isso basta para charivari político. Parece que Rita Rato não tem as qualificações necessárias para dirigir um museu. O que é estranho, uma vez que Rita Rato é mulher e eu sempre achei que dirigir um museu é, sobretudo, dispor objectos por salas. Ou seja, decorar. Mas, segundo me dizem, é um bocadinho mais do que isso, de maneira que não chega ter bom gosto para combinar cores, são necessárias algumas habilitações que Rita Rato, ao que dizem, não possui.

Mesmo assim, num país que já merece um Museu dos Tachos, um país em que Armando Vara foi nomeado para a Administração da CGD com a justificação de que percebia de Banca por ter sido funcionário do balcão da Caixa em Mogadouro (para apenas referir o caso mais emblemático de entre as centenas de políticos do PSD, PS e CDS que ocupam lugares em administrações de empresa apenas por terem ritmo cardíaco, actividade cerebral e um motorista que os leva às reuniões), é preciso querer embirrar com o PCP para pegar neste tema. Por mim, tudo bem.

Detractores da nomeação dizem que Rita Rato só foi escolhida por ser do PCP. Defensores da nomeação dizem que Rita Rato foi escolhida justamente por ser do PCP. Parece que o facto de pertencer à mesma agremiação de pessoas que estiveram presas no Aljube lhe atribui, por osmose, conhecimento e capacidade. É mais ou menos o mesmo que eu, por ter um fígado e ser consócio do Dr. Eduardo Barroso no Sporting, estar capacitado para dirigir a Unidade de Transplantes Renais do Curry Cabral e de até poder tentar a minha sorte com o bisturi.

A razão pela qual ser do PCP habilita alguém para dirigir o Aljube não é esta, é outra. Em 2020, um militante comunista é aquilo que na paleontologia se designa de “fóssil vivo”. Segundo a Wikipédia: “Fóssil vivo é uma expressão utilizada informalmente para qualificar organismos de grupos biológicos atuais que são morfologicamente muito similares a organismos dos quais há conhecimento no registo fóssil. Frequentemente, os “fósseis vivos” pertencem a grupos biológicos que no passado geológico da Terra foram muito mais abundantes e diversificados que atualmente”. Ou seja, entre a múmia de Lenine e Rita Rato, as diferenças são de pormenor. Rita Rato trata-se, portanto, de um interessante exemplar que podia estar na colecção do Museu de História Natural. E é uma óptima ideia, pôr peças de museu à frente das instituições. Depois de Rita Rato a mandar no Aljube, talvez se possa colocar a Custódia de Belém a dirigir o MAAT, ou o Cromeleque dos Almendres à frente de Serralves.

Houve quem quisesse dizer que ser comunista não teve nada que ver com a escolha. Que Rita Rato participou num normal processo de recrutamento e que é injusto acusar a EGEAC de a ter nomeado apenas por ser do PCP, uma vez que Rita Rato, e cito, “até tem um projecto”.  A sério? É óbvio que tem um projecto. Quando é que um membro do PCP faz alguma coisa sem ser orientado por um projecto, um plano, ou um programa, que lhe foi entregue pelo Comité Central? Dizer que um militante do PCP tem um projecto é a mesma coisa que dizer que um gordo tem fome. O que é uma coincidência gira, porque a maior parte dos projectos comunistas costumam acabar com gordos, e não só, a passarem fome.

Mas o argumento mais interessante que ouvi é o de que Rita Rato não deve ser impedida de dirigir o Museu por ser do PCP, mas sim por, há dez anos, ter dado uma entrevista em que disse desconhecer a existência do Gulag. Ou seja, Rita Rato não deve ser prejudicada por ser do PCP, mas deve ser prejudicada por ser do PCP. É isso, não é? É que não se pode ser do PCP ao mesmo tempo que se reconhece o Gulag. São mutuamente exclusivas. Só há um tipo de comunistas que reconhecem o Gulag ou quaisquer outras das atrocidades do género. São os ex-comunistas.

Não é que eles não saibam que existiram. Sabem, claro. Alguns até apreciam. Não podem é reconhecê-lo publicamente. O que sucede é que, quando deu essa entrevista, Rita Rato ainda era uma inexperiente deputada comunista. Sabia o que fora o Gulag e sabia que não o podia dizer. Só não sabia ainda a forma correcta de o não dizer. Lá está, o seu controlador ainda não lhe tinha entregado o projecto com as repostas-padrão a dar neste tipo de situações. É o guião que permite aos membros do PCP saírem airosamente de questões sobre crimes soviéticos, crimes do maoismo, crimes do chavismo, crimes do castrismo, crimes na Europa de Leste, enfim, crimes dos regimes comunistas em geral.

Experimentem perguntar agora a Rita Rato o que ela pensa do Gulag. Passada uma década, aposto que a resposta vai ser diferente. Vai continuar a não reconhecer o Gulag, claro. Mas vai não reconhecê-lo de forma diferente. Uma forma menos absurda, mais aceitável. Uma forma adequada a uma senhora directora de um museu de uma prisão política.

José Diogo Quintela

https://observador.pt/opiniao/o-museu-a-seu-dono/#

Está preparado para a crise que aí vem? Siga estes 5 passos

Uma sugestão interessante  de:  Catarina Melo, no ECO de  13-07-2020.

Portugal prepara-se para mergulhar naquela que será a mais profunda recessão económica dos últimos 100 anos, em resultado da pandemia. Apesar das medidas de apoio por parte do Estado e da União Europeia, são muitas as famílias que enfrentam perdas de rendimento daí resultantes, enquanto outras estão já mesmo no desemprego.

E as perspectivas vão no sentido de a situação de muitas famílias se degradar ainda mais perante a incerteza em torno da evolução da doença e as consequências daí resultantes. Face a esse cenário, esta será a ocasião de as famílias fazerem um check-up às suas finanças pessoais e levar a cabo alguns acertos com vista a preparar a uma espécie de “bóia de salvação” para enfrentar a tempestade que se avizinha. Fique a par de cinco passos que devem ser dados para melhor se preparar.

1. Preparar um “pé-de-meia”

Ter um “pé-de-meia” para fazer face a imprevistos que possam surgir é muito importante, independentemente da ocasião. Mas no atua contexto de imprevisibilidade face ao futuro rumo da economia na crise que se avizinha, tornou-se ainda mais importante.

E esta será uma das altura do ano mais favoráveis à constituição desta reserva financeira. Com muitas famílias a receberem na conta o reembolso do IRS enquanto outras já viram também ser-lhes creditado o subsídio de férias (ou preparam-se para isso), as que disponham de margem para isso devem aproveitar para constituir esse fundo de emergência.

Não há uma medida certa para o que colocar de parte, sendo que a Deco recomenda o equivalente a seis vezes o rendimento mensal. Mas o que é importante é que este fundo de emergência seja facilmente convertível em liquidez de modo a poder ser utilizado para fazer face a despesas imprevistas ou em situações de quebra de rendimentos ou mesmo de desemprego.

2. Rentabilizar poupanças

Dinheiro parado não rende. Mesmo no atual quadro de incerteza, quem disponha de poupanças deve tentar rentabilizá-las, procurando preservar o capital e também a fácil mobilização, sobretudo quando as quantias possam vir a ser necessárias. Neste quadro sobressaem duas classes de ativos: os depósitos a prazo e os certificados de aforro.

No caso dos depósitos, evite os não mobilizáveis, especialmente de prazos longos pois, em caso de emergência, não poderá aceder ao capital. Em termos de retornos, face ao quadro de juros historicamente baixos, mesmo as melhores propostas dos bancos não serão muito aliciantes, mas sempre será melhor que deixar o dinheiro parado na conta à ordem. Os últimos dados disponíveis, relativos a abril, apontavam para uma taxa de juro média de 0,07% oferecida pelos bancos nas novas aplicações até um ano. Mas há bancos a oferecer retornos mais atrativos nesse prazo sendo que na melhor das hipóteses podem chegar a 1%.

Já os certificados de aforro, oferecem um retorno superior face à média dos juros dos depósitos a prazo. Vão até um máximo de dez anos de aplicação, sendo que os juros capitalizam trimestralmente a uma taxa calculada em função da Euribor a 3 meses. Em julho, a taxa base é de 0,611%. A partir do segundo ano, ao valor da taxa, acresce ainda um prémio de permanência.

Os certificados de aforro apenas não têm liquidez nos primeiros três meses. Após esse período, pode resgatar em qualquer altura. O mínimo de subscrição são 100 euros.

3. Cortar e renegociar custos de serviços

Esta poderá ser ainda a altura ideal para rever o seu quadro de despesas e procurar reduzir algumas. O exemplo mais flagrante são as telecomunicações, mas não é o único. Também pode tentar renegociar a fatura da energia ou até o crédito da casa. Noutros casos, mudar de prestador também pode gerar uma boa poupança.

Nas telecoms, por exemplo, desde que esteja fora do período de fidelização, ou caso este esteja a aproximar-se, tente baixar a fatura a pagar. Nesse caso, a melhor altura para o fazer é cerca de um mês antes de acabar o vínculo contratual.

Seguindo a lógica das telecomunicações, também é recomendável fazer um check-up às suas despesas com energia, nomeadamente eletricidade e gás. Sonde as empresas concorrentes em busca de ofertas mais vantajosas. A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) pode ser uma ajuda. O regulador disponibiliza ao público um conjunto de simuladores com “todas as ofertas do mercado liberalizado em Portugal continental”, tanto para eletricidade como para gás natural e até para a modalidade dual.

Quem está a pagar o crédito da casa também pode ter espaço para poupanças. E, aqui, tem duas vias: a renegociação do spread com o banco ou mesmo a transferência do crédito para outra instituição. Clientes, podem assim procurar tirar partido da quebra dos spreads que se tem observado de forma transversal na banca. Alguns bancos dispõem-se ainda a custear os encargos da transferência, caso seja esta a opção do cliente.

4. Travão ao endividamento

Após a aceleração do recurso ao crédito por parte das famílias nos anos mais recentes, o quadro atual recomenda contenção. As famílias devem assim evitar assumir compromissos com novos créditos que não sejam essenciais, de modo a evitar cair na armadilha do endividamento e em consequência no incumprimento.

Esta missão não será seguramente fácil por duas razões. Não só porque os juros se encontram em torno de mínimos históricos, servindo de convite ao crédito, como os próprios bancos têm apostado em muitas campanhas de promoção das suas soluções de financiamento, sobretudo para consumo.

5. Proteger desemprego com seguros

A crise ditada pela pandemia coloca muitas reticências às famílias portuguesas sobre a manutenção dos seus postos de trabalho. Caso percam o emprego, muitas vão ter dificuldade em conseguir cumprir os seus compromissos financeiros ou mesmo garantir a sobrevivência dos respetivos agregados.

Há, contudo, forma de minimizar esses receios, através de soluções financeiras disponibilizadas pelas seguradoras. Estas permitem, em concreto, a quem possa vir a ficar sem emprego no futuro, garantir o pagamento de parte do salário. Estão em causa Planos de Proteção de Pagamentos que surgem com diferentes designações específicas consoante as seguradoras.

Por exemplo, a Ocidental disponibiliza o Plano de Proteção Vencimento que indemniza 30% (para trabalhadores por conta de outrem) ou 40% (para trabalhadores por conta própria) do vencimento líquido da pessoa segura, desde que tenha conta domiciliada no Millennium bcp, até ao limite de 700 euros se a pessoa segura se encontrar em situação de desemprego involuntário, incapacitada temporariamente por doença ou acidente, hospitalização, morte ou invalidez permanente. A GNB é outra seguradoras que disponibiliza um produto com estas características — o seguro “proteção Salário” — que indemniza 55% do valor da remuneração mensal bruta.

As seguradoras têm ainda ofertas para quem queira garantir o pagamento das prestações da casa caso fique sem emprego. É o caso da Fidelidade, por exemplo, que disponibiliza um produto que garante o pagamento da prestação da casa, em caso de doença ou desemprego.

Para dirigir o Museu do Traje proponho um nudista

Pôr uma comunista à frente de um museu que celebra a liberdade e a democracia é mais ou menos como colocar um celíaco a dirigir o Museu do Pão. Ou a Greta Thunberg no Museu da Revolução Industrial.

Tumba! E eis que temos polémica no mundo da museologia! Para desenjoar das controvérsias da política e do futebol, um cheirinho de sarrafusca em torno da nomeação de directores de museus. Trata-se de bruaá bem justificado, diga-se. É que a ex-deputada do Partido Comunista, Rita Rato, foi nomeada directora do Museu do Aljube, um espaço “dedicado à história e à memória do combate à ditadura e ao reconhecimento da resistência em prol da liberdade e da democracia”. Ora, pôr uma comunista à frente de um museu que celebra a liberdade e a democracia é mais ou menos como colocar um celíaco a dirigir o Museu do Pão. Ou a Greta Thunberg a chefiar o Museu da Revolução Industrial. Ou um nudista a comandar o Museu do Traje. Ou um pré-adolescente a administrar o Museu da Água. Ou um golden retriever a gerir o Museu do Chocolate. Enfim, creio que dá para ter uma ideia do despautério.

Boa parte da controvérsia em torno desta nomeação deve-se ao facto de Rita Rato ter afirmado, em tempos, que desconhecia o que era o Gulag. No entanto, e por isso mesmo, creio que esta escolha poderá revelar-se até bastante didática. Uma vez que a ex-deputada comunista ignora o horror dos campos de concentração da União Soviética de Estaline, onde morreram milhões de pessoas, no Aljube começa com um projecto mais modesto, para se ir familiarizando com este tipo de sistemas de terror. E, daqui a um tempo, quando já tiver a tripa bem calejada, pode, então sim, começar a investigar as maravilhas do Gulag. Sucedendo tal, todos iremos dizer “Irra, resolveu-se a repugnante renitência em rejeitar o regime repressivo russo revelada reiteradamente pela Rita Rato”. Se calhar não diremos todos. Dirá quem conseguir, vá.

Ainda na senda dos governos com ambições totalitárias, o de António Costa já avançou para a monitorização do discurso de ódio online. Na sequência daquela rixa, aqui há dias, na praia do Tamariz em Cascais, o executivo entrou, de imediato, em acção. Os novos burocratas bufos, os bufocratas, recolheram as imagens dos distúrbios que circulam nas redes sociais e estão, neste momento, a investigar se algum daqueles meliantes terá, porventura, enquanto semeava o pânico entre os banhistas incautos, dirigido qualquer tipo de impropério odioso a um bandido do gangue rival. Naifadas, pontapés nas ventas, ou roubos por esticão, tudo bem, o Governo está-se a borrifar para isso. Mas se calha algum daqueles gandins ser apanhado na net a proferir dichotes indecentes a um seu congénere, ui, aí está lixado com o Costa. Ah, pois é, gandulagem, não há cá mais chistes ofensivos para ninguém, meus meninos. Armas brancas ameaçando transeuntes desprevenidos, siga. Agora, remoques chocantes no ciberespaço? É que nem pensar. É desta que estes patifes entram na linha.

E segundo uma notícia do jornal Público, o Governo vai recorrer à ajuda das universidades, convidadas para este autêntico festim de chibaria, no sentido de perscrutar a internet para detectar e punir aqueles que incorram no que ao oráculo socialista convier designar por “discurso de ódio”. É uma soberba medida. Não só se faz desta a geração mais delatada de sempre, como ainda se poupa em material escolar. Sim porque, além de acesso à net, os alunos arregimentados para este projecto só precisarão mesmo de se munir de um lápis azul.

O meu único medo é que esta recém descoberta vocação universitária para silenciar opiniões online venha a retirar tempo precioso a docentes do calibre de um Boaventura Sousa Santos para silenciar opiniões offline. Por agora, num artigo recente subscrito por um grupo de investigadores que inclui Boaventura Sousa Santos, um estudo académico sobre o Chega foi acusado de promover a “normalização, legitimação e branqueamento de um partido racista e com desígnios antidemocráticos”. A propósito disto, constou-me que Boaventura Sousa Santos até compôs uma canção:

Ai chega, chega, chega
Do Chega do Ventura pulha
Afasta-o, afasta-o, afasta-o
Afasta-o da corrida presidencial
Doideira que em mim borbulha
Ó sim, é ver uma Venezuela em Portugal!

Hum. Como cantautor é fraquinho. Já como palermadoutor é fortíssimo.

Tiago Dores

https://observador.pt/opiniao/para-dirigir-o-museu-do-traje-proponho-um-nudista/

As Potências Eléctricas Intermitentes e a Quimera do Hidrogénio.

    Em vez de se flexibilizar o acesso do Sistema Eléctrico português à rede europeia, tivemos muito recentemente em consulta pública uma “Estratégia para o Hidrogénio”.

    As empresas produtoras de bens transaccionáveis, que salvaram em 2012 a economia portuguesa da “espiral recessiva “e conseguiram equilibrar as contas externas portuguesas através do aumento das exportações para 45% do PIB, têm no custo da electricidade um factor que muito condiciona a respectiva competitividade.

    Agora que enfrentamos de novo uma crise económica gravíssima, e se aguarda a próxima aprovação de vultuosos Fundos Europeus destinados a apoiar a nossa estrutura produtiva, convém recordar estes factos para que se possa salvaguardar a competitividade da base energética da economia e do emprego em Portugal.

    A partir de 2005 o Sistema Eléctrico português passou a basear-se em potências intermitentes, a eólica e a solar, tendo o Governo promovido então a respectiva” rentabilização” atribuindo-lhe o benefício das FIT – Feed In Tariffs.

    A partir daí as empresas de bens transaccionáveis foram obrigadas a pagar nas TAR – Tarifas de Acesso à Rede e nas CIEG – Custos de Interesse Económico Geral todos os custos necessários para “encaixar” estas intermitências no sistema. E para além disso, pesa ainda sobre os consumidores de electricidade a Dívida Tarifária, que ascende ainda a 3.000 milhões de euros.

    Como a intermitência eólica e solar não se elimina por Decreto, foram anunciadas ao longo dos últimos 15 anos várias “soluções milagrosas” para a “armazenagem barata de electricidade”.

  • Primeiro, recorreu-se às “barragens reversíveis”, que estão longe de ser baratas e têm óbvias limitações derivada dos ciclos de pluviosidade.

  • Depois anunciaram-se “novas baterias” capazes de armazenar a baixo custo milhares de MWh. Mas os inegáveis avanços tecnológicos ficaram muito longe do eldorado prometido, e as novas minas de lítio, que fazem parte deste processo, ameaçam ficar apenas no papel.

    • Em vez de se flexibilizar o acesso do Sistema Eléctrico português à rede europeia com o reforço das interligações da Península Ibérica com França, conforme decidido na Cimeira de Lisboa em Julho de 2018, entre o Presidente Macron de França e os Primeiros Ministros de Espanha e de Portugal, tivemos muito recentemente em consulta pública uma “Estratégia para o Hidrogénio”.

      Num país que dispõe já de 7.000 MW de potências intermitentes com FIT para um consumo de apenas 3.900 MW no vazio, o hidrogénio é a nova desculpa para se instalarem mais 2.000 MW de novas potências solares intermitentes com FIT. É o mundo ao contrário!

      Em vez de se estancar o problema não atribuindo mais FIT a potências intermitentes, e fazendo com que o mercado se ajuste às disponibilidades de eletricidade aos melhores preços, promovem-se ainda mais potencias intermitentes com FIT para se resolver o problema das FIT através do hidrogénio.

      O hidrogénio é a mais leve das moléculas e não existe na natureza, pelo que tem de ser “fabricada“.

      Mesmo não estando disponível nenhuma tecnologia competitiva para produzir hidrogénio através da eletrólise da água, o documento que esteve em consulta pública aponta desde já para um investimento de 7.000 milhões de euros (!!!), e numa primeira fase este hidrogénio destinar-se-á exclusivamente ao mercado interno.

      Nesse documento, os dados tecnológicos são extremamente vagos, e os dados económicos limitam-se a referir que o projeto não é rentável pelo menos até 2030, e que precisa por isso de subsídios.

      Mas “havendo metas obrigatórias de consumo de hidrogénio”, os consumidores irão ser obrigados a pagar o que for preciso por uma tecnologia que se desconhece a fim de todos os promotores envolvidos poderem ter lucro.

      Pode espantar o leitor, mas é uma técnica que já deu provas de funcionar.

      Em 2008, o Governo Sócrates decretou que os promotores solares que investiram em mais de 500 MW de potências solares tivessem uma FIT de 400 Euros/MWh durante 20 anos.

      E nós continuamos hoje a pagar esse preço, embora estejam já disponíveis novas tecnologias que permitem um preço 20 vezes mais baixo!

      Já nessa altura se confundiram protótipos de desenvolvimento tecnológico, que não deveriam ter mais de 1 MW, com parques solares megalómanos de mais de 100 MW cada, baseados em tecnologias incipientes à custa dos consumidores.

      Como agora se pretende fazer com o hidrogénio.

      Ao “embandeirar em arco” com o hidrogénio, e propondo que o país “derreta” 7.000 milhões de euros em projetos megalómanos sem bases tecnológicas, o documento da EN-H2 revela uma completa omissão relativamente à análise estratégica das inovações tecnológicas que visam resolver o problema da intermitência elétrica.

      A aposta em 2005 num sistema elétrico baseado em potências intermitentes, fez desde então desperdiçar à economia portuguesa mais de 21.000 milhões de euros pelo que a solução terá obrigatoriamente que passar pela redução dos custos criados aos consumidores pelas FIT concedidas a potencias intermitentes. Nunca por os aumentar!

      Até há menos de um ano o Governo punha todas as fichas políticas nas inovações tecnológicas ligadas às baterias, e por isso se viu envolvido em controvérsias ambientais ligadas à exploração de novas minas de lítio e chegou a anunciar novos “projetos de milhares de milhões de euros para que Portugal liderasse o mundo nas novas baterias de lítio”. Só que, agora, a EN-H2 é completamente omissa na vertente das “novas baterias”.

      Será que o secretário de Estado João Galamba terá entretanto concluído que se tratava duma quimera?

      Ao propor duma forma genérica a utilização deste “Hidrogénio Verde” tanto para queima/produção de eletricidade como também para utilização em células de combustível/veículos rodoviários, o documento está a prejudicar ainda mais uma análise estratégica séria.

      Então os veículos elétricos, e o sistema de distribuição de eletricidade para o respetivo carregamento, vão concorrer diretamente com veículos a hidrogénio e com um delirante sistema de distribuição e carregamento de hidrogénio puro espalhado pelo país?

      E vai fazer isso em regime de mercado, deixando apenas que os consumidores escolham a alternativa mais barata, confortável e segura, de entre todas as disponíveis?

      Ou vai, como já se fez com as FIT das potências intermitentes em 2008, decretar que os consumidores vão ter de pagar em simultâneo duas aventuras economicamente ruinosas que vão competir entre si, quando pesa ainda sobre eles uma Dívida Tarifária de 3.000 milhões de euros?

      Todas as empresas que investiram centenas de milhões de euros na mobilidade elétrica, a começar pela Efacec, como ficam neste novo cenário que agora se anuncia, tendo que enfrentar um setor concorrente que beneficia de subsídios de milhares de milhões de euros?

      A gravidade da incoerência da análise estratégica das inovações tecnológicas, destinadas a ultrapassar as consequências da intermitência elétrica, que a EN-H2 revela, é de facto confrangedora.

      Em termos dos critérios de utilização de milhares de milhões de euros de novos Fundos Europeus, a primeira coisa que se tem que exigir ao governo é uma coerência da análise estratégica das questões tecnológicas em jogo, para que a partir daí se possam equacionar de forma fundamentada as várias opções possíveis, e que estes Fundos sejam utilizados prioritariamente para reforçar a competitividade das empresas de bens transacionáveis.

      Só o reforço da competitividade das empresas de bens transacionáveis pode garantir empregos e fazer com que Portugal retome um ritmo de crescimento robusto como não acontece há 20 anos, em que foi sendo sucessivamente ultrapassado no âmbito da União Europeia por quase todos os países do Centro da Europa, que anteriormente pertenceram ao bloco soviético.

      Imagem de Clemente Pedro Nunes

      • Clemente Pedro Nunes

      • Professor Catedrático do Instituto Superior Técnico

      https://eco.sapo.pt/opiniao/as-potencias-eletricas-intermitentes-e-a-quimera-do-hidrogenio/

      ( O ECO recusou os subsídios do Estado. Contribua e apoie o jornalismo económico independente)

        terça-feira, 14 de julho de 2020

        António Mexia (2ª parte)

        Como Mexia geriu a empresa do lucro de mil milhões num país a empobrecer

        Em cinco mandatos, Mexia lançou uma EDP verde, compensou accionistas e recebeu (muitos) prémios. Sucessos perseguidos pelas rendas excessivas, na política e na justiça. Parte 2 de um perfil essencial.

        Esta é a segunda parte do perfil de António Mexia, sobre os anos da EDP. Leia aqui a primeira parte.

        António Mexia é nomeado presidente executivo da EDP em Abril de 2006, um mês antes de a eléctrica apresentar, pela primeira vez, lucros anuais de mais de mil milhões de euros. O feito ainda é do tempo da gestão de João Talone, e foi alcançada com a ajuda de mais-valias obtidas na venda de participações. Mas colocou a empresa num patamar inédito para um país como Portugal e elevou as expetativas para a nova equipa gestora. A EDP manteve os lucros ao nível do bi —abreviatura do inglês billions (mil milhões), muito usada por Mexia.

        Esta boa performance não foi abalada pela crise económica e financeira que atingiu Portugal a partir do ano de 2010. Nas conferências de imprensa, o CEO da EDP destacava a “resiliência” (uma das expressões mais usadas por António Mexia) da empresa e atribuía a grande fatia dos bons resultados às operações internacionais, desvalorizando o tema incómodo das rendas excessivas.

        O Estado saiu do capital da EDP em 2012. Os chineses entraram de mansinho — para além de manterem a gestão, pouco ou nada falavam publicamente. A ausência de outros acionistas de referência (estratégicos) com dimensão, a presença de investidores financeiros que queriam retorno e não se envolviam na estratégia e a dispersão do capital contribuíram para um certo vazio de poder que foi preenchido pelos executivos. A EDP era cada vez mais uma empresa de António Mexia e da sua equipa de gestores. Perante a realidade nacional de cortes nos rendimentos, aumento do desemprego e empresas e bancos a cair, a EDP parecia demasiado rica para um país pequeno e a empobrecer e que ainda por cima tinha de pagar um dos preços da eletricidade mais altos da Europa. Era um alvo evidente.

        Desde 2010 que subiam de tom os ataques aos prémios de gestão. Houve várias iniciativas políticas para os travar e até o Governo de José Sócrates votou contra o seu pagamento aos gestores da EDP na assembleia geral de 2010, num gesto inédito num momento em que o país começava a apertar o cinto.

        António Mexia tinha um vencimento anual bruto de cerca de 1 milhão de euros por ano, mas em final de mandato tinha direito a bónus da ordem dos 3 milhões de euros. Valores justificados com o que ganhavam os gestores das empresas internacionais com que a EDP concorria. Até estavam aquém dos bónus pagos no passado na banca em Portugal. Mas os tempos eram outros. A crise e as exigências de transparência da regulação davam muito mais visibilidade aos salários “milionários” pagos aos gestores das grandes empresas.

        Em 2010, numa entrevista ao jornal “i”, António Mexia aceitava a criação de um escalão máximo de 45% no IRS para os que mais ganhavam, como ele, mas não foi brando para os que o atacavam por causa do que ganhava. “Não concordo com o ataque aos gestores. A política de redistribuição de rendimentos faz-se mais ao nível dos impostos do que por escolhas demagógicas de alvos aparentemente fáceis. Nunca se deve basear a política na mediocridade nem na inveja, até porque elas tendem a coligar-se. E é um comportamento altamente destrutivo”. Mexia sentia-se um alvo? “O que não gosto é quando escolhem o senhor A ou o setor B. O gestor da grande empresa. Devemos evitar comportamentos demagógicos”.

        Para António Mexia, a assembleia geral da empresa e os órgãos eleitos aí eram soberanos na atribuição das remunerações. Agora, dez anos depois, percebeu que pode não ser assim, quando uma ordem judicial suspendeu as funções dos dois principais administradores da EDP eleitos pelos acionistas. Isto porque o juiz aceitou o argumento de que podiam ser equiparados a gestores públicos, pelo facto do grupo deter a concessão da rede de distribuição de eletricidade. Como conseguiu António Mexia atingir o recorde de permanecer 14 anos à frente da EDP?

        O Action Man e o Ken

        António Mexia sucedeu a João Talone (accionista do Observador) de quem tinha sido rival à frente da Galp na luta pelo gás natural — os dois homens nunca terão sido próximos, mas também não eram inimigos, havia respeito profissional e a noção de que cada um estava a defender os interesses da empresa que geria. Talone admirava, por exemplo, o talento para a comunicação de Mexia, que fez um reposicionamento da marca Galp.

        A EDP era a maior empresa portuguesa e vários dos projetos que iriam a ter a assinatura de Mexia como gestor já estavam em curso. A elétrica estava internacionalizada, no Brasil e em Espanha, e estava a preparar-se para a concorrência no mercado ibérico com o reforço na produção de energia e a tomada de posição nas renováveis. Mexia teve de gerir um legado importante, mas ainda em maturação (João Talone só fizera um mandato).

        Os quadros da elétrica já se tinham habituado à linguagem de João Talone, o primeiro gestor de fora do setor que rompeu uma tradição de presidentes que tinham sido da casa ou gestores públicos. Quando chegava um presidente novo, “vinha cheio de genica e de ideias”, era preciso deixá-los pousar na realidade. Talone fê-lo rapidamente, Mexia demorou mais tempo, relata um quadro que acompanhou de perto o início do mandato. Um dos comentários ouvidos na empresa foi o de que Talone era como o Action Man (boneco de ação), enquanto Mexia era como o Ken (o namorado da Barbie), uma referência ao aspeto físico cuidado do gestor. O novo CEO aparecia sempre impecável, tinha preferência por fatos Hugo Boss e cultivava a boa forma física.

        Apesar de terem em comum a formação na banca (Talone vinha da banca comercial e seguros, Mexia da banca de investimento), os dois tinham postura distintas. João Talone era homem para ir à central elétrica e discutir com os técnicos e operacionais no terreno para perceber a realidade; Mexia cumprimentava-os, mas preferia falar com os diretores ou com as pessoas que nomeava para acompanhar essa realidade.

        A “troika” de Mexia. Do gás para Galp, para o Governo e para a EDP

        A equipa de Mexia vai refletir uma gestão de equilíbrios. Juntou quadros da casa e aliados pessoais, continuidade e competência profissional. É reveladora de uma das maiores qualidades apontadas ao gestor: sabe escolher as pessoas que o rodeiam, sabe cativá-las, conquista a sua confiança, consegue pô-las a trabalhar para o mesmo objetivo e dá-lhes espaço, ainda que no fim possa ficar com os louros.

        Desde os tempos da Gás de Portugal/Transgás que o gestor tinha ligações privilegiadas com alguns colaboradores que levou consigo quando mudou de cargo, como Jorge Borrego, que Mexia contratou para a Gás de Portugal e que foi secretário de Estado dos Transportes durante a sua passagem pelo Governo de Santana Lopes como ministro das Obras Públicas.

        Foi também a primeira empresa que Mexia dirigiu, a Gás de Portugal, a contratar Ana Maria Fernandes, um quadro da banca de investimento que vinha do BPI. Ana Maria Fernandes vai para a Galp, onde fica a liderar a direção de estratégia da empresa, e quando Mexia sai para o Governo sobe à administração. Outro quadro contratado para a GdP por Mexia foi Miguel Setas, que veio da consultora Mckinsey. Formado em engenharia, Miguel Setas destacou-se quando Mexia o colocou como diretor de marketing estratégico da Galp até que, em 2004, o então ministro o vai buscar para a administração da CP.

        Os dois iriam para a EDP em 2006, trazidos pelo novo presidente. Ana Maria Fernandes entra logo para a administração, onde ficará com a área de maior potencial, as renováveis. Tornar-se-ia na primeira mulher que chegou a presidente executiva de uma empresa do PSI 20, a EDP Renováveis.

        Miguel Setas começa como chefe de gabinete do novo presidente, uma espécie de estágio antes de ser nomeado para a administração. Desempenhou vários cargos de direção em empresas do grupo, sobretudo no Brasil, tendo chegado à direção da EDP Brasil em 2014 e em 2015 entra na comissão executiva. Ente os gestores próximos de António Mexia, há quem o aponte como o mais completo para assumir funções de presidente executivo. Mas, para já, o sucessor interino é Miguel Stilwell de Andrade, que exercia funções de administrador financeiro (CFO).

        A completar a “troika” de quadros leais que o acompanharam estava Paulo Campos Costa. O antigo jornalista da RTP trabalhava na agência de comunicação de João Líbano Monteiro quando foi contratado para a comunicação da Galp, tendo-se tornado no braço direito de Mexia para esta área. Campos Costa acompanhou Mexia no Ministério das Obras Públicas e depois foi para a EDP, onde está até hoje. A prática de levar consigo pessoas de confiança e com quem se trabalhou é comum a várias ocupantes de cargos importantes. Mas se para Mexia esta ligação pessoal era importante, não chegava — tinha de haver também competência, refere um antigo colega.

        Os homens da casa e o “Ronaldo da energia”

        A primeira comissão executiva presidida por Mexia promoveu dois diretores-gerais da EDP. Um deles foi António Pita de Abreu, um quadro histórico da empresa que já tinha feito parte de outras administrações. O outro foi o homem que João Talone foi buscar à banca (ao grupo BCP) para montar a sala de mercados da EDP e preparar a empresa para a concorrência nas bolsas de energia. João Manso Neto foi promovido depois de ter conquistado os engenheiros da elétrica com a sua qualidade intelectual e capacidade de trabalho, que Mexia soube logo reconhecer. Não obstante o visual pouco convencional para um gestor — o cabelo comprido, sempre de cigarro na mão  — Manso Neto é invariavelmente descrito como “brilhante” pelos que trabalharam ou se cruzaram profissionalmente com ele. Consegue conquistar até os meios mais conservadores. Na comissão de inquérito parlamentar às rendas da energia, o deputado do CDS Hélder Amaral chamou-lhe o Ronaldo da energia. E mais do que um gestor o aponta como a escolha prioritária na equipa ideal para desenvolver um projeto.

        Será Manso Neto a ocupar-se do delicado e complexo  tema dos CMEC (contratos de manutenção do equilíbrio contratual) e do prolongamento do prazo de concessão das barragens conseguido pela EDP no primeiro Governo de Sócrates. Com o tempo, e após o afastamento de Ana Maria Fernandes da elétrica, por uma combinação de razões pessoais e profissionais, João Manso Neto torna-se no número dois da EDP e assume a presidência da EDP Renováveis. Não obstante as sua qualidades profissionais, Manso Neto é mais um braço-direito do que um potencial rival. Falta-lhe eventualmente a ambição necessária para chegar mais longe.

        Também do lado do BCP, e por indicação deste acionista, foi indicado Nuno Alves para o cargo de administrador financeiro. Tinha em comum com Mexia a linguagem da banca e os dois homens tiveram uma boa relação de trabalho. A equipa ficou completa com Martins da Costa, que Talone já tinha promovido para gerir a EDP no Brasil, e Jorge Cruz de Morais, outro homem da casa.

        Os acionistas aprovaram ainda um novo modelo de governo da empresa, decalcado do BCP (da autoria da Heidrick and Struggles). Para a presidência do conselho geral e de supervisão é apontado António de Almeida, um gestor histórico socialista que no passado já tinha presidido à elétrica. Conhecido pela frontalidade e pelo mau feitio, a relação entre os dois”presidentes” da EDP, António de Almeida e António Mexia, começou com alguns atritos públicos sobre as competências do órgão de supervisão da administração. Mas os dois acabaram por se entender no essencial.

        De poluente à campeã verde e a oportunidade descoberta pelo atual CEO interino

        O novo CEO António Mexia tinha um desafio imediato: redesenhar um plano estratégico depois de a compra dos ativos de gás natural da Galp ter sido chumbada em Bruxelas por razões de concorrência.

        Foi com Mexia que ganhou asas a narrativa de transformar a EDP, a maior poluidora do país, numa empresa verde. Cavalgou a onda criada com a vitória no primeiro grande concurso para a atribuição de potência eólica em Portugal e que resultou de um processo lançado no tempo de Talone. Mas levou-a mais longe. Em 2006, a elétrica protagoniza um negócio que viria a transformar o seu ADN. A compra da americana Horizon, um dos maiores operadores da energia eólica, foi um game changer para a EDP, que passou a projetar-se como um dos maiores grupos mundiais de energias renováveis.

        A oportunidade foi identificada pelo homem que substituiu António Mexia quando este foi suspenso por ordem judicial das funções de presidente executivo. Miguel Stilwell de Andrade, nomeado CEO interino no passado dia 6 de julho, dirigia a área de estratégia e desenvolvimento da EDP desde 2005. Antes de integrar os quadros da empresa em 2000, Stilwell de Andrade tinha trabalhado na banca de investimento internacional e estava muito bem informado sobre o que se passava. Foi trabalhando no dossiê da aquisição e acabou por convencer a comissão executiva. Apesar de na altura se ter dito que a EDP pagou caro pela Horizon — mais de dois mil milhões de euros —, foi um “furo” estratégico para a empresa.

        Mexia colheu os louros desta aquisição, mas também foi aprendendo lições no percurso como gestor. Foi deixando cair o “eu” para falar em “nós”, valorizando a equipa, e ganhou a confiança dos quadros da empresa e injetou entusiasmo com um discurso mobilizador, sobretudo nos primeiros dois mandatos. Habituado a comunicar muito bem, na EDP preocupou-se com o “público interno”, talvez para se afastar de atitudes que teve na Galp e que lhe trouxeram inimigos dispensáveis.

        Um ano depois, a EDP junta os ativos eólicos numa nova empresa, a EDP Renováveis, e arrisca lançar a subsidiária em Bolsa numa oferta que foi um êxito. O timing da operação, em junho de 2008, foi um golpe de sorte: coincidiu com a única e apertada janela temporal que antecedeu a crise financeira. Um mês antes, não teria corrido tão bem; um ou dois meses depois, teria falhado.

        O melhor gestor é o mais bem pago

        Não é surpreendente que António Mexia tenha feito um segundo ou até um terceiro mandato à frente da EDP. Uma das pessoas que trabalhou de perto com ele diz que a sua maior ambição era a de ser o melhor gestor e o mais bem pago. E por isso a presidência da maior empresa portuguesa era o trono que mais lhe convinha. E quanto mais lucros, mais dividendos.

        Entre 2007 e 2020, a empresa distribuiu 8700 milhões de euros pelos acionistas. O valor foi sempre crescendo, mesmo quando a EDP sofreu em 2018 uma queda acentuada dos lucros por causa do impacto de decisões políticas e regulatórias em Portugal. E os dividendos traduzem-se em bónus de dezenas de milhões de euros para os administradores. Na linguagem usada pelo principal executivo, a empresa “tinha uma história que lhe dava visibilidade nos mercados” e estava focada em “entregar” no que toca aos compromissos feitos aos investidores.

        A qualidade de estratega e comunicador que todos lhe reconhecem também se apoiou nos muitos recursos à sua disposição, humanos e financeiros, que só uma grande empresa como a EDP lhe poderia proporcionar. Nesta fase da sua carreira, não estaria disposto a correr grandes riscos sem uma rede de segurança. Apesar de não hesitar na hora decidir, tem o cuidado de se apoiar em pareceres e consultores que sustentem as suas opções, do ponto de vista financeiro e jurídico.

        O único projeto pessoal que foi notícia, em parceria com Diogo Vaz Guedes, a Aquapura Hotels Villas, foi declarada insolvente em 2007.

        Ninguém lhe nega o entusiasmo com que agarra os colaboradores e os motiva para a sua visão e para a convicção da importância do que estão a fazer, como referiu numa entrevista em 2010, quando a propósito do congresso do PSD que elegeu Pedro Passos Coelho lhe perguntaram se se sentia tentado pela política. “Agora tenho a sorte de estar a fazer aquilo que me apetece. O sector da energia é excitante do ponto de vista de mudança de paradigma social e político. A energia está no coração das principais temáticas mundiais. Digo às pessoas da EDP que temos a sorte de estar num sítio que é muito excitante”.

        Também há quem lembre Maquiavel quando o descreve como um homem do Renascimento que percebe o valor da estética e da arte, mas também o poder e o que faz mover as pessoas. Oferece-lhes as condições para darem o seu melhor e espaço para crescerem profissionalmente — mas ainda venha a criar ligações afetivas, também as usa como instrumentos para atingir os seus objetivos. E raramente fazem sombra ao CEO. As duas visões não são necessariamente contraditórias, correm paralelas e cruzam-se por vezes. Já Mexia pouco se terá deixado usar como instrumento dos interesses de terceiros. E se o fez, terá sido porque a finalidade encaixava na sua agenda.

        Para além dos negócios e da gestão, é a arte e o design que mais o mobilizam. Se não tivesse seguido a tradição familiar — o avô foi o embaixador Teixeira Guerra, considerado um dos pioneiros da diplomacia económica e que participou nas negociações para adesão de Portugal à EFTA e mais tarde à Comunidade Económica Europeia; o pai foi quadro do Banco de Portugal — teria talvez sido arquiteto. Além de ser uma empresa industrial e uma eficiente máquina comercial, a EDP de Mexia também tentou sempre jogar nos campos da cultura e da arte.

        Mexia não chegou à presidência da Câmara de Lisboa, que em Portugal é um dos principais palcos para lançar políticos, mas ser  presidente da EDP deu-lhe a oportunidade de promover edifícios de excelência arquitetónica que envolveram investimentos avultados e marcam o perfil da cidade. Desde o MAAT (Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia) à reconversão da central Tejo, passando pela sede da EDP no Cais do Sodré, que foi prémio Valmor em 2017.

        A elétrica tornou-se ainda numa das principais patrocinadoras de eventos culturais e desportivos, desde festivais de música (até tem um festival em nome próprio, o Cool Jazz Fest) a maratonas e outros eventos culturais. Até as barragens ganham prémios de arquitetura, como aconteceu com o projeto de Souto Moura para a central hidroelétrica do Tua em 2019, ou servem de palco improvisado para concertos como sucedeu em 2009 no Alto Lindoso, para assinalar a nova imagem da empresa.

        A comunicação é outra das áreas que Mexia melhor dominou deste o início da sua carreira. Nunca precisou de assessores de imprensa. Sabia muito bem como fazer e quem devia contactar para fazer passar a mensagem. Há quem recorde uma reunião de administração na Galp, com a presença dos representantes da Eni, que Mexia interrompeu durante vários minutos para telefonar a um jornalista que tinha escrito uma notícia com a qual não concordava.

        Não obstante, durante a sua administração a EDP contratou vários jornalistas e até dois ex-diretores de jornais, embora estes tenham trabalhado em outras áreas. Sérgio Figueiredo, ex-diretor do Jornal de Negócios, esteve na direção da Fundação EDP, da qual saiu há poucos anos para desempenhar o cargo do diretor de informação da TVI, de onde saiu agora. Miguel Coutinho, antigo diretor do Diário Económico e do Diário de Notícias, é atualmente o presidente do MAAT.

        O alinhamento com o Governo de Pinho e Sócrates e um inimigo inesperado com Passos Coelho

        Os primeiros mandatos na EDP seguem num clima de afinidade visível entre a empresa, a sua gestão e o poder político. Afastado o risco de a Iberdrola entrar no conselho de administração da elétrica portuguesa, as estratégias do Governo para o setor e da empresa parecerem estar totalmente alinhadas, desde a aposta nas renováveis ao Programa Nacional de Barragens. A aceleração da energia eólica, quando esta tecnologia ainda era muito subsidiada, fez de Portugal um exemplo internacional na política de promoção das renováveis, mas veio a pesar nos preços da eletricidade.

        A EDP ajudou o Governo a travar o aumento de 17% no preço da eletricidade em 2006, negociando uma solução que deu origem ao défice tarifário, e houve decisões políticas favoráveis à empresa, algumas das quais estão no centro das investigações judiciais, como a extensão do prazo de concessão das barragens sem concurso público e o valor pago pela elétrica, que foi anos mais tarde validado pela Comissão Europeia.

        Numa entrevista publicada em 2010, o presidente da EDP respondeu assim à afirmação de que existia uma grande sintonia com Manuel Pinho: “Como a ideia é boa é fácil haver alinhamento. Se tivéssemos de escolher uma área em que Portugal se distinguiu foi na política energética e na capacidade de execução das empresas”.

        É certo que a comissão parlamentar de inquérito às rendas da energia veio mostrar que os favores do Estado à empresa não começaram com Manuel Pinho, já vinham de trás.

        Segundo um antigo administrador da elétrica, a maior sintonia até foi com o Governo de Durão Barroso, mas foram sobretudo as decisões do primeiro Executivo socialista que fizeram o seu caminho no radar da justiça. E para tal contribuiu muito o curso que o ex-ministro Manuel Pinho deu na Universidade de Columbia nos Estados Unidos, e que foi financiado pela EDP.

        O clima iria mudar com a chegada de Pedro Passos Coelho ao Governo e não apenas por causa da troika. Muito antes de ser nomeado secretário de Estado da Energia de Passos Coelho, de quem era amigo pessoal, Henrique Gomes foi administrador da Gás de Portugal. Quando António Mexia chegou à presidência da empresa em 1998, Gomes já tinha cessado o seu mandato, mas ficou com um cargo de consultor.  O seu contrato foi denunciado três meses depois, sem uma explicação clara, segundo contou na comissão parlamentar de inquérito às rendas da energia em 2018. “Alguma coisa que tivesse feito não terá merecido a confiança”, afirmou. Para Henrique Gomes,  por trás da sua saída prematura terá estado “uma desculpa esfarrapada”.

        Henrique Gomes ficou muito marcado com a atitude de Mexia na Gás de Portugal. E isso terá pesado quando liderou o ataque aos ganhos da EDP já no tempo da troika. Quando foi ao Parlamento, o atual presidente executivo da EDP tentou distanciar-se do caso com uma declaração que pode ter sido sentida como uma alfinetada. “Só me apercebi que era suposto conhecer Henrique Gomes depois de o ter encontrado” (no Governo de Passos Coelho).

        Considerando “peculiar” que o ex-secretário de Estado tenha afirmado que tinha sido despedido por si, António Mexia explicou que, quando chegou à presidência da Gás de Portugal, a empresa tinha poucos empregados. Quando procurou saber quem tinha funções e quem não tinha, foram-lhe apontados alguns assessores, cuja saída justificou com a necessidade de tornar a empresa mais eficiente.

        O episódio ilustra bem como o estilo de gestão de António Mexia não é consensual e pode cair muito mal junto de algumas pessoas. Os que lhe são mais próximos apontam erros de perceção que podem resultar das primeiras abordagens pessoais ao gestor. António Mexia tem uma imagem sofisticada e pouco acessível e num primeiro contacto passa por arrogante. Pode ser brutalmente direto quando ouve algo de que não gosta e não tem grande paciência quando sente que o estão a fazer perder tempo.

        Independentemente de ter uma motivação pessoal, Henrique Gomes era um homem determinado e sustenta a sua posição de que a EDP tem ganhos excessivos (à custa dos consumidores) com o trabalho de um consultor externo. António Mexia ataca publicamente o estudo pedido pela secretaria de Estado, que afirma estar cheio de erros.

        Já depois de ter abandonado o Governo, ao perder a batalha pelos cortes na EDP, o ex-secretário de Estado afirmou que teve de terminar o seu vínculo com a REN (Redes Energéticas Nacionais) em 2012 depois de ter admitido numa entrevista que António Mexia era “um osso duro de roer”. Foi uma entrevista política, mas que “caiu mal na administração da REN”, então liderada por Rui Cartaxo, com quem Mexia tinha tido uma boa relação de trabalho na Galp. A incomodidade gerada resultou num acordo para sair, afirmou ainda no Parlamento.

        Há quem atribua a Henrique Gomes a expressão “rendas excessivas” que apareceu em vários documentos da troika e que viria a perseguir a EDP e a sua gestão durante os anos seguintes, dando nome a uma comissão parlamentar de inquérito aos contratos entre a elétrica e o Estado. Mais e pior, para Mexia: Henrique Gomes e o seu chefe de gabinete encaminharam para a Procuradoria-Geral da República algumas da denúncias que deram origem ao inquérito-crime do chamado caso EDP.

        Vender a EDP ou cortar os preços da luz? Os aliados de Mexia

        O ano de 2011 foi um fim de ciclo para Portugal, com o resgate financeiro e a chegada da troika. A EDP era uma das empresas mais expostas no plano internacional às dificuldades financeiras do país. Quando iam vender a empresa nas grandes praças financeiras mundiais, os gestores da elétrica deparavam-se com perguntas sobre as finanças do país, a divida pública e os PEC (Programas de Estabilidade e Crescimento que traziam medidas de austeridade) do segundo governo de Sócrates.

        A privatização total da EDP até ao final do ano é uma das primeiras exigências dos credores internacionais e uma prioridade absoluta para o Governo de Passos Coelho porque seria o teste à capacidade de atrair investimento. Se Portugal não conseguisse vender a EDP, o resto não tinha hipóteses. E nada pior para este negócio do que o ruído em volta das chamadas rendas excessivas dadas à empresa e que era necessário eliminar para baixar os preços da eletricidade, que tinham subido muito por causa de outra imposição da troika, o aumento do IVA.

        As duas visões coexistem no Governo, mas uma tem muito mais força do que a outra. Henrique Gomes é o secretário de Estado da Energia e, apesar de ser amigo do primeiro-ministro, não tem força política para impor a sua cruzada. O ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira, é solidário, mas tinha acabado de regressar ao país e ia demorar algum tempo a perceber os lobbies que se movimentam de cada vez que se tenta cortar alguma coisa.

        Neste braço-de-ferro, António Mexia tem aliados muito fortes. Eduardo Catroga, o presidente do conselho geral e de supervisão da elétrica, foi o principal conselheiro económico e financeiro do líder do PSD durante a negociação do memorando de assistência. Os dois homens têm uma boa relação profissional, entendem-se ao nível da linguagem e dos valores ideológicos.

        Catroga recusou o cargo de ministro das Finanças oferecido por Passos Coelho, mas terá sugerido o nome de Vítor Gaspar. O novo ministro das Finanças foi o aluno de António Mexia na faculdade a quem este deu uma das notas mais altas. Os dois tratam-se por tu. Ainda nas Finanças, como consultor para as privatizações, está António Borges, um homem que fala a mesma linguagem do presidente da EDP.

        O desfecho desta história é conhecido. Henrique Gomes é impedido de cortar as rendas da EDP para não perturbar a privatização da empresa e a contribuição extraordinária que propõe fica suspensa. Irá sair do Governo meses depois.

        O lado de Mexia ganha, mas não terá sido uma vitória completa. Isto porque o presidente da EDP teria preferido que o comprador fosse outro, o grupo alemão E.On, que segundo notícias então publicadas lhe abriria as portas a uma progressão na carreira que já não poderia ter em Portugal. A China Three Gorges terá manifestado o seu desconforto ao Governo por considerar que o presidente executivo da EDP estaria a favorecer o candidato alemão. No Conselho de Ministros, Vítor Gaspar também defendeu a proposta alemã, mas o dinheiro chinês era irresistível. Ganhou quem pagou mais.

        Tudo muda, mas pouco muda

        A mudança do principal acionista — a China Three Gorges comprou 21,3% do capital da EDP — não alterou o essencial da equipa de gestão. Nem mudou o presidente executivo. Os chineses passaram a ter representantes no conselho geral e de supervisão, cuja composição foi alargada, mas o que se destacou foi a manutenção ou entrada de vários ex-ministros do PS, PSD e até CDS para o órgão. Fiéis ao que tinham prometido durante a corrida, a China Three Gorges pouco interveio na gestão da empresa e António Mexia, que podia ter saído depois da privatização, ficou — mas moderou o estilo.

        A empresa continuava a investir muitos milhões no mercado nacional (na construção das barragens lançadas por Sócrates) e a rodar ativos fora de Portugal (vender negócios maduros, para investir em novos projetos). Mas a expansão travou perante a necessidade de baixar a dívida. A estratégia de comunicação também mudou. Mexia começou a aparecer menos e a empresa cortou nas viagens de jornalistas e em eventos de grande visibilidade.

        A rotina na gestão da empresa foi abalada por uma oferta pública de aquisição (OPA) lançada pelo seu maior acionista, a China Three Gorges. A OPA chinesa de 2018 trouxe ao de cima uma fragilidade pouco visível da EDP, mesmo sem grande intervenção: a presença de capital chinês era mal vista em vários mercados importantes para a empresa, como os Estados Unidos. E, se a OPA fosse para a frente, a EDP como a conhecemos acabava.

        A OPA foi bem recebida pelo poder político — António Costa foi rápido a afirmar que o Governo não tinha nada a opor —, mas deixou os gestores da EDP numa situação delicada: eram contra, só que não podiam hostilizar abertamente o maior acionista. Depois de se arrastar nos reguladores internacionais durante meses, a OPA acaba por morrer e a EDP apresenta uma nova estratégia. Uma das metas não assumidas é reduzir a exposição do grupo a Portugal, porventura excessiva face à dimensão do nosso mercado e que ajudou a tornar a EDP um alvo de ataques.

        António Mexia gosta de desafios e de fazer coisas — quando uma está feita quer avançar para outra. Gosta de comprar e vender, como se faz na banca. E na EDP foi também o que fez: começou a comprar em grande e acabou também a vender em grande. Este ano, a empresa vai fechar a alienação das barragens no rio Douro, por mais de dois mil milhões de euros, e já anunciou a venda de uma central de ciclo combinado em Espanha. Há ainda ativos de energia eólica fora de Portugal que estão no mercado.

        Ainda que estas operações correspondam à concretização do novo plano estratégico, a narrativa que o acompanha soa a mais do mesmo. Ou seja, a EDP mantém a ambição renovável, comum a todas as empresas de energia e em linha com o discurso da sustentabilidade e as metas políticas da descarbonização. E nota-se um cansaço no discurso e uma repetição de slogans.

        Pelo caminho ficaram conversas e abordagens com outras grandes empresas mundiais do setor que poderiam ter alterado o perfil da EDP e dado um oportunidade de ascensão na carreira a António Mexia que já só poderia acontecer, pelos menos como gestor, fora de Portugal.

        As rendas que perseguem a EDP

        O tema das rendas excessivas, sinalizado em relatórios internacionais, não largava a EDP nem os seus gestores. Em 2014, o Governo de Passos Coelho, já com Jorge Moreira da Silva na pasta da Energia, avançou com a contribuição extraordinária sobre o setor energético. Mas o que deveria ter sido uma taxa feita à medida dos ganhos da EDP, e que teria como principal objetivo abater o défice tarifário, foi suavizada depois de uma intervenção do presidente executivo da elétrica que, acompanhado por João Manso Neto, foi ao Parlamento expor ao grupo parlamentar do PSD as suas queixas em relação à contribuição. A versão final seria menos má para a EDP, mas, para não penalizar as contas do Estado, teve de ser estendida a outras empresas, como a Galp.

        A contribuição extraordinária foi o primeiro grande golpe nos ganhos da elétrica no mercado português. Apesar das muitas reclamações, a EDP aceitou pagar, ao contrário do que fez a Galp de Américo Amorim, que sempre a contestou. Só quando a taxa extraordinária se prolongou sem fim à vista é que a elétrica suspendeu o seu pagamento. Voltou a pagar depois de uma negociação com o Governo de António Costa que permitiu baixar o preço da eletricidade em 2019, o que aconteceu após uma remodelação governamental que substituiu um secretário de Estado incómodo. Jorge Seguro Sanches tomou várias decisões contra os interesses da empresa e que foram todas impugnadas judicialmente.

        Uma delas foi anular um despacho do seu antecessor, Artur Trindade, assinado no final de mandato que permitia às elétricas passar uma parte dos custos com a contribuição e a tarifa social para os preços da eletricidade. Este mecanismo, de neutralidade com Espanha, chamado de clawback, tem sido apontado como vantajoso para as empresas e a ligação entre esta decisão e a contratação do pai do ex-secretário de Estado como consultor pela EDP criou uma nova linha de suspeitas. Em funções, Artur Trindade também ordenou uma auditoria a ganhos da EDP nos serviços de sistema que deu origem a uma condenação por abuso de posição dominante por parte da Autoridade da Concorrência.

        A relação com o Governo socialista melhorou — muito porque a nova tutela de Matos Fernandes e João Galamba assume que precisa da empresa para executar as metas para a descarbonização. As conclusões da comissão parlamentar de inquérito à rendas excessivas da energia não tiveram grande impacto material para a EDP, mas ficou o dano reputacional e horas e horas de afirmações negativas contra a empresa inflamaram suspeitas contra os gestores e decisores políticos.

        Na sua intervenção inicial na comissão de inquérito, que demorou mais de uma hora a ler, o presidente executivo da EDP procurou desmontar todas as acusações de ganhos excessivos ou irregulares. Começou com frases fortes: “Chega de manipulação e distorção de factos e números. (…) Não há rendas excessivas na eletricidade. A única coisa que é excessiva é a demagogia e a manipulação.”

        As denúncias de portas giratórias com a transferência de consultores dos gabinetes governamentais para empresas do setor da energia fizeram mossa e deram gás à investigação criminal. Invocando novos factos — e também novas operações suspeitas, como o pagamento de trabalhos a mais na barragem do Baixo Sabor —, o Ministério Público avançou com um pedido de agravamento inédito das medidas de coação aplicadas aos gestores da elétrica ainda durante a fase de inquérito.

        O fim da linha para o sobrevivente?

        Desde 2017 que António Mexia e João Manso Neto, a par de outros atuais e antigos gestores, tinham sido constituídos arguidos na investigação do caso EDP. Mas, ao contrário de outros administradores no passado, estas medidas de coação da justiça não os impediram de se manter nos cargos.

        Quando foram conhecidas as suspeitas, os membros do conselho geral e de supervisão — e, em tese, os principais acionistas da EDP — vieram a público em conferência de imprensa reforçar a sua confiança na equipa de gestão e nos dois membros constituídos arguidos. Essa confiança foi renovada quando deram novo mandato a António Mexia, presume-se que o último para o gestor que tem 63 anos, e a João Manso Neto. E mesmo depois da suspensão do exercício dos cargos e da proibição imposta a contactos com pessoas da EDP, decretadas na semana passada, a reação institucional da empresa é a de que as suspeitas da justiça em relação a ganhos ilegítimos não têm fundamento. “A EDP reafirma que, relativamente às matérias em causa, não houve qualquer irregularidade que lhe possa ser imputada. O enquadramento legal existente desde 2004, as decisões da Comissão Europeia de 2004, 2013 e 2017 com estudos e pareceres independentes sobre estas matérias demonstram que os montantes devidos pela cessação dos CAE (contratos de aquisição de energia) e transição para o regime de CMEC (custos de manutenção contratual) e o montante pago pela extensão da utilização do DPH (domínio público hídrico) foram justos e nos termos das condições de mercado”. O comunicado do conselho geral e de supervisão, órgão liderado por Luís Amado que fiscaliza a gestão executiva, acrescenta foram entregues documentos “que sustentam a posição da EDP quanto à inexistência da obtenção de quaisquer benefícios indevidos”, concluindo que “toda a argumentação associada a actos de favorecimento da EDP não tem fundamento.”

        A tomada de posição parece manter a expetativa de que a suspensão de funções imposta a António Mexia e Manso Neto é temporária. Miguel Stilwell de Andrade foi nomeado CEO interino, “enquanto se verificar o impedimento do Dr. António Mexia, e em acumulação com as atuais funções”. Mas é uma solução que tem os dias contados. O mandato dos gestores suspensos termina no final do ano e não é evidente se o processo judicial irá ter desenvolvimentos que permitam clarificar o atual quadro.

        Nos perfis publicados nos últimos anos, António Mexia é apontado como um sobrevivente e como um homem que teve sempre boas relação com o poder. O presidente da EDP parecia ser o último de uma geração de gestores e talentos da banca que queria mudar muita coisa, mas que saíram de cena ou caíram em desgraça.

        Os anos da troika e o período que se seguiu assistiram à queda de pessoas e instituições que antes eram consideradas inquestionáveis, algumas das quais são frequentemente associadas a António Mexia, seja o BES e Ricardo Salgado, ou Zeinal Bava, o ex-presidente da Portugal Telecom, com quem tinha em comum prémios internacionais para melhor gestor.

        Apesar de formalmente ter sido apresentada pelo conselho geral e de supervisão, a escolha do administrador financeiro para CEO interino ainda foi feita com a intervenção de António Mexia. Depois de ter renunciado a uma saída diplomática no final do mandato em 2018, parece determinado em impedir que este processo judicial lhe tire aquilo que os acionistas da EDP lhe deram ao longo de cinco mandatos.

        Numa entrevista dada em 2010 ao jornal “i”, numa resposta a sobre as suspeitas que rodeavam à data o então primeiro-ministro José Sócrates, relacionadas com o caso Freeport, António Mexia alertava para “uma certa poluição” e defendia que se deve “evitar o principal risco que Portugal hoje tem, que é o risco da mediocridade lenta”. E, para tal, “as elites sociais, empresariais têm de assumir as suas responsabilidades e não assobiar para o lado. É isso que tento fazer enquanto cidadão e como presidente da EDP. (…) O que me preocupa é evitar a degradação da qualidade institucional em Portugal. A facilidade com que queremos degradar a imagem das instituições é assustadora”.

        Para Mexia, a missão da política e das elites “passa por uma mudança da responsabilidade de quem gere a riqueza para criar novos horizontes, novos empregos.” E continuava: “Quem consegue beneficiar de um sistema e criar riqueza tem de devolver a essa sociedade. Essa responsabilidade hoje em Portugal é menor do que deveria ser. Há exemplos do contrário: a EDP, a Jerónimo Martins e o BES”. E só há esses três? “Há outros. Hoje digo estes. Amanhã diria outros. Claro que a EDP estaria sempre presente”.



        Ana Suspiro

        13 jul 2020,

        António Mexia.

        António Luís Teixeira Guerra Nunes Mexia. Foi demitido no arranque da carreira, mas chegou a gestor mais bem pago do país.

        Antes da EDP Mexia já dava nas vistas. Fez a ponte para o projecto da Autoeuropa, mas acabou demitido. Na Galp, estava em vias de perder o cargo, quando Santana o chamou. Parte 1 de um perfil essencial

        O nome de António Mexia é praticamente sinónimo de EDP depois de 14 anos de liderança, divididos por cinco mandatos, que atravessaram cinco governos, um resgate financeiro a Portugal, uma mudança de accionista de referência, uma comissão parlamentar de inquérito e uma OPA (Oferta Pública de Aquisição) falhada. A suspensão de funções de presidente executivo na maior empresa portuguesa, determinada por ordem judicial no quadro do inquérito-crime ao caso EDP, veio pôr um travão a uma carreira única na administração de empresas portuguesas. O presidente da EDP e o presidente da EDP Renováveis, João Manso Neto, enfrentam suspeitas de corrupção activa e participação económica em negócio.

        Mas até chegar a ser o gestor mais bem pago de Portugal — em 2019 recebeu uma remuneração bruta de 1 milhão de euros, mais 325 mil euros de bónus pelos resultados de 2018 e mais 826,4 mil euros de prémios  atribuídos pelo ano de 2016 e só agora pagos — há um António Mexia com uma carreira de sucessos e também desaires. Ao longo desses anos, ganhou fãs e conquistou aliados — e fez inimigos.

        A carreira de António Mexia no mundo dos negócios arrancou no final da década de 198o, a protagonizar os contactos iniciais, e decisivos, para captar o maior investimento industrial que Portugal viria a ter no ciclo de pós-adesão à então Comunidade Económica Europeia. Foi ele quem enviou a carta ao responsável do construtor americano Ford em que afirmava a intenção do Governo português de conceder um pacote elevado de incentivos financeiros para trazer a fábrica de automóveis que a Ford/Volkswagen queria instalar na Europa — e que hoje todos conhecem como Autoeuropa. Havia vários países na corrida e o número que Mexia pôs em cima da mesa era suficientemente elevado para chamar a atenção dos construtores e colocar Portugal em bom lugar nesta corrida.

        Entre 1988 e 1990, António Mexia começou a chamar a atenção no mundo dos negócios. Quem trabalhou com ele — ou perto dele — descreve uma pessoa brilhante, com iniciativa e capacidade de afirmação, com ideias inovadoras e capacidade de as executar, sem medo de decidir. Sabia escolher muito bem equipas e mostrou logo capacidade de liderança. Tudo isso fez com que fosse convidado para cargos de responsabilidade e direcção logo no início da carreira. Talvez essa reduzida experiência como subordinado ajude a explicar porque também despertou cedo os primeiros ressentimentos e inimizades, algumas das quais o iriam acompanhar ao longo de muitos anos.

        A conquista da Autoeuropa e o despedimento público

        Nos anos 80, conquistar aquela que viria a ser a futura Autoeuropa era uma missão prioritária para o Governo do PSD, liderado por Cavaco Silva. Mas desde logo foram visíveis as tensões internas entre os decisores políticos e as suas equipas — cada um deles lutava para aparecer associado aquele grande projecto.

        Quem parecia estar a ganhar esta corrida era o lado do ministro do Comércio, Joaquim Ferreira do Amaral, que tinha como assessor João Líbano Monteiro (que viria a fundar uma das mais importantes agências de comunicação do país) e António Mexia no ICEP (Instituto do Comércio Externo de Portugal, hoje AICEP). Do outro lado estava o Ministério da Indústria, liderado por Luís Mira Amaral, cujo papel na atracção do projecto também era importante, mas que não conseguia o mesmo protagonismo na opinião pública que resultava das declarações de António Mexia aos jornais. Anos mais tarde, quando se voltaram a reencontrar no sector da energia, Mira Amaral, esteve quase sempre no lado oposto às estratégias defendidas por Mexia.

        Mexia tinha chegado ao gabinete do secretário de Estado do Comércio, Miguel Horta e Costa, em 1986, aos 29 anos,  por sugestão de António Borges, que o conhecia do meio académico. A carreira de Mexia como professor de Economia começara na Suíça, onde se licenciou na Universidade de Genebra, e prosseguiu em Portugal, na Nova e na Católica.

        Após dois anos de trabalho no seu gabinete, Miguel Horta e Costa achou que António Mexia era uma boa aposta para o ICEP, a agência que tinha a missão de captar investimento estrangeiro, e juntou-o a um quadro do Estado de reconhecida competência, António Alfaiate, que tinha sido director-geral do Comércio.

        Mas o que no papel pareciam dois perfis complementares veio a revelar-se um desastre. Não havia química entre os dois, tinham formas de pensar diferentes, a relação profissional e pessoal era péssima. O mal-estar era profundo dentro do ICEP, onde o presidente António Alfaiate se sentia permanentemente desautorizado. António Mexia não lhe respondia em termos hierárquicos, mas sim ao secretário de Estado e ao ministro — e deixava o presidente às escuras sobre o estado das negociações com os americanos da Ford.

        Quando Joaquim Ferreira do Amaral deixou a pasta do Comércio para assumir as Obras Públicas, o novo ministro, Fernando Faria de Oliveira, foi confrontado com uma situação insustentável na relação entre os principais executivos do ICEP. Com o maior projecto internacional em jogo, sentiu que precisava de resolver o impasse. O secretário de Estado que ficou com a tutela do Comércio, Neto da Silva, ainda fez uma tentativa para clarificar as competências dos gestores desavindos. Mas a única coisa em que os dois concordavam era que nenhum deles queria trabalhar com o outro e isso selou o seu destino. A solução foi despedir toda a administração do ICEP, uma demissão que até foi pré-anunciada nos jornais.

        Resolvido o problema, foram nomeados para a agência Pedro Almeida e Athaide Marques, que mais tarde viria a assumir a presidência. Será esta equipa, com a tutela de Neto da Silva e do ministro Faria de Oliveira, que irá fazer aterrar com sucesso a fábrica de Palmela, um investimento inicial de 430 milhões de contos (qualquer coisa como 2150 milhões de euros).

        O contracto foi assinado meses depois da mudança de protagonistas, em Junho de 1991. António Mexia já não apareceu na fotografia, mas o seu nome ficou ligado à história de sucesso que trouxe a fábrica da Autoeuropa para Portugal, como aliás recorda Luís Palma Féria na sua história do sector automóvel em Portugal. Mexia teve a visão chamar a atenção dos investidores com a promessa de grandes apoios financeiros — ainda que depois tenha sido necessário renegociar em baixa os valores referenciados.

        A demissão pública não afectou a carreira de António Mexia, que logo no mesmo ano, em 1990, entrou para a administração do Banco Espírito Santo de Investimento, na altura ESSI. A família Espírito Santo estava já na pole position para recuperar a jóia do grupo, o BESCL (Banco Espírito Santo) numa privatização feita à sua medida. Ricardo Salgado ainda não era o presidente todo-poderoso, mas já tinha grande influência.

        É no ESSI que António Mexia se cruza com outro jovem promissor gestor, António Carrapatoso (hoje presidente do conselho de administração do Observador). A convivência é curta porque Carrapatoso começa a trabalhar no projecto da Telecel, que iria explorar a segunda rede móvel em Portugal. Depois de montado o projecto e encontrados os investidores — o grupo Espírito Santo seria um deles, tal como Américo Amorim — o jovem gestor do ESSI dá o salto para presidente da Telecel Vodafone, onde ficaria até 2014.

        Do GES ao gás, com Pina Moura e o cunhado de Guterres

        Não é claro como Mexia arranja o emprego no ESSI, onde o pai também trabalhou. Mas, por essa altura, já conhecia António Moura Santos, um empresário e intermediário de grandes negócios que iam desde as compras de carvão para a EDP (ainda uma empresa pública) a operações montadas pelo banco de investimento do Grupo Espírito Santo.

        Moura Santos terá desempenhado um papel determinante na viragem da carreira de António Mexia, anos mais tarde. Quando António Guterres chega a primeiro-ministro, Moura Santos passou a ser conhecido nos bastidores  como “o cunhado de Guterres”. Parecia estar em todos os grandes negócios, sempre na sombra, nunca como protagonista mas sempre como intermediário — o homem que apresenta alguém a alguém e faz o negócio acontecer, ganhando alguma coisa com isso (seja dinheiro ou influência).

        Neste caso, António Moura Santos terá apresentado António Mexia a Joaquim Pina Moura. O então ministro da Economia teria conhecido o irmão da primeira mulher do primeiro-ministro em casa deste, depois de ter conquistado a confiança de Guterres nos anos em que foi seu secretário de Estado Adjunto.

        A apresentação dos dois, num jantar em casa de Moura Santos, tinha como objectivo indicar um dos pivôs da reorganização do sector energético que o então ministro da Economia ia promover, de encontro às propostas apresentadas pelos grandes grupos portugueses que eram accionistas da Petrogal, e cuja liderança estava nas mãos do Grupo Espírito Santo e de Ricardo Salgado.

        De acordo com um perfil publicado em 2017 pela revista do Público, Moura Santos terá mais do que uma intervenção na carreira de gestor de António Mexia. É certo que os dois se conheciam e tinham trabalhado em pelo menos um projecto comum quando o gestor estava na banca de investimento: a construção de centrais de cogeração no Brasil, uma operação que juntou Moura Santos, a Partex e a EDP. A energia viria a marcar o futuro de António Mexia.

        Após anos de prejuízos e sem conseguir crescer fora de Portugal, a Petrogal era à data o patinho feio das grandes empresas industriais que o Estado queria vender. Os privados nacionais — GES, Monteiro de Barros, Amorim — estavam fartos de ter capital empatado numa empresa que foi várias vezes ao mercado, mas que ninguém parecia querer. Foram bater à porta de Pina Moura com um projecto de juntar o gás natural ao petróleo. O mercado de gás natural estava em pleno crescimento, alimentado por investimentos de muitos milhões de euros, uma expansão que se fazia à custa do petróleo. O Estado controlava duas empresas: a Gás de Portugal que tinha a distribuição aos clientes finais, e a Transgás que construía a rede e tinha os contractos de abastecimento. Foi por proposta dos privados da Petrogal que nasceu a Galp, uma holding que juntou o petróleo e o gás, dois braços do mesmo grupo. E, para dirigir o braço de maior potencial — o gás — foi escolhido António Mexia.

        Das guerras internas na Galp à liderança

        O gestor chega à liderança das empresas de gás em 1998, tinha 41 anos, onde irá trabalhar na criação da holding da energia que foi vendida por um bom preço à petrolífera italiana Eni. O negócio permitiu aos privados nacionais encaixar uma mais-valia significativa na venda da sua participação e, como bónus, tiveram direito a uma isenção do imposto sobre os ganhos extraordinários. Tinha compensado juntar o gás ao petróleo.

        Na liderança da Petrogal estava o carismático Manuel Ferreira de Oliveira, que tinha regressado a Portugal depois de uma carreira internacional bem sucedida. Rapidamente Ferreira de Oliveira entra em choque com o novo projeto para o grupo Galp que dava prioridade ao gás natural, em prejuízo do petróleo, na estratégia e nos recursos.  Demite-se com avisos de que a italiana Eni iria tomar conta da Galp.

        À frente da holding do gás natural estava outro expatriado regressado, Bandeira Vieira, que tinha feito carreira na petrolífera belga Fina. Bandeira Vieira vai manter o projeto de Ferreira de Oliveira de desenvolver a área de exploração e produção de petróleo, com concessões em Angola e também no Brasil. Mas as tensões na holding de energia não terminam com a saída de Ferreira de Oliveira — também há conflitos entre o presidente da Galp e o gestor do gás.

        Saem notícias a dizer que Bandeira Vieira falou com o ministro Pina Moura pedir a demissão de António Mexia. Mas quem acaba por sair é ele, numa demissão nunca explicada. Bandeira Vieira deu uma entrevista final ao Diário Económico a contar a sua versão, mas foi ameaçado com a perda da indemnização e as suas declarações nunca foram publicadas. Pelo caminho ficou também Jorge Santos Silva, um gestor da Shell que tinha substituído Ferreira de Oliveira na Petrogal e feito um emagrecimento da área dos combustíveis.

        A saída dos dois gestores deixa aberto o caminho para António Mexia assumir sozinho a liderança executiva da Galp Energia. Com Rui Vilar a ocupar o cargo de chairman, Mexia chega a CEO de uma das maiores empresas portuguesas em 2001, ainda no Governo de António Guterres e com Pina Moura na tutela.

        Aos 44 anos tem um percurso invejável, mas foi fazendo inimigos pelo caminho. Um dos mais visíveis publicamente terá sido Ferreira de Oliveira. Os dois homens foram vice-presidentes no início da Galp e trabalharam pouco tempo juntos, mas foi suficiente para os colaboradores de ambos sentirem o choque de personalidades, dizem várias fontes. Mexia era um homem da banca e do mundo, Ferreira de Oliveira era um engenheiro e um homem do petróleo.

        A saída de Ferreira de Oliveira e a recentragem da Galp do petróleo para o gás natural não caiu bem dentro de algumas estruturas da Petrogal que se consideravam prejudicadas no acesso a cargos de chefia por pessoas contratadas ou promovidas por António Mexia. Por outro lado, o gestor confrontava-se com o que achava ser uma estrutura de “empresa pública”, com muitos cargos e assessorias que não faziam sentido. Uma das pessoas afastadas pelo gestor, mas neste caso na Gás de Portugal, foi Henrique Gomes, com quem António Mexia veio a confrontar-se já na EDP nos primeiros meses da chegada da troika a Portugal.

        Se é certo que fez inimigos, foi também na Galp que encontrou, e em alguns casos contratou, os quadros que o iriam acompanhar nas etapas seguintes da sua carreira. Foi igualmente quando estava na empresa que fez aliados que iriam ser preciosos mais tarde. Um dos principais foi Pedro Santana Lopes, que o gestor terá conhecido quando deu uma conferência sobre energia na Figueira da Foz, município que era então dirigido pelo social-democrata.

        Quase todos os que o conhecem — mesmo os que não gostam dele — destacam a inteligência, a visão, o pragmatismo e a capacidade de comunicação e de estabelecer relações com quem o rodeia. Mas pode passar nos corredores sem dizer bom dia, mesmo que também seja capaz de mostrar empatia pessoal. E é muito focado nas suas prioridades: consegue ouvir e processar o que lhe dizem mesmo quando não concorda. E às vezes (poucas) até o conseguem fazer mudar de ideias.

        Também há quem lhe aponte um certo calculismo nas relações e a preocupação em cultivar as ligações certas com o poder, seja económico, político ou accionista, para ele próprio se manter no poder, um traço que se terá reforçado depois da experiência que viveu na Galp com a mudança política que se dá em 2002.

        Muda o Governo, muda a estratégia. Fica o gestor, mas em equilíbrio precário

        Foi na presidência da Galp que António Mexia enfrentou as dificuldades da falta de sintonia política. Depois de ter mantido uma excelente relação com Pina Moura, alinhados na mesma estratégia, eis que António Guterres cai e chega ao poder Durão Barroso. Teoricamente mais próximo de um Governo do PSD, o então presidente da Galp tinha uma ótima relação com um dos mais importantes barões do partido, Pedro Santana Lopes — mas Santana não estava no Governo.

        A pasta da Economia foi entregue a Carlos Tavares, que estava preocupado com as duas maiores empresas da energia onde o Estado era acionista. A Galp estava em risco de cair nas mãos da Eni; e a EDP estava em conflito com a ex-parceira Iberdrola. A elétrica espanhola era muito maior e mostrava um grande apetite por Portugal, a EDP precisava de ganhar músculo para lhe fazer frente.

        Homem da banca, Tavares chamou outro ex-banqueiro. João Talone (accionista do Observador) estava livre para estudar a reorganização do setor depois de sair do BCP. E propôs desfazer aquilo que Pina Moura (e António Mexia) tinham feito: obrigar a Galp a vender o gás natural à EDP e à Eni, abandonando este negócio, ao mesmo tempo que se livrava da incómoda empresa italiana no seu capital. Carlos Tavares não só aplaudiu a solução como convidou o seu promotor a executá-la, nomeando João Talone presidente da EDP.

        Foram anos duros para António Mexia, apesar do apoio de outro social-democrata, Joaquim Ferreira do Amaral que substituiu Rui Vilar na presidência não executiva da Galp. Mexia estava do lado errado das opções políticas pela primeira vez na sua carreira.

        O distanciamento face ao poder político era visível até na distribuição de lugares numa viagem oficial que Durão Barroso fez a Angola em 2003. Num avião recheado de empresários e gestores, a Galp era à data um investidor fundamental no país. O presidente da EDP, João Talone, seguia na classe executiva perto do primeiro-ministro e dos homens da banca. Já a equipa de gestores da Galp seguia mais atrás, a meio do avião, apanhando com o fumo das últimas cadeiras. António Mexia evitava fumar porque tinha um problema de asma, mas não resistia a um cigarro pontual, sobretudo depois de ir trabalhar para a EDP.

        A cadeira ao lado de Durão Barroso estava vazia, mas ia sendo ocupada por pessoas que queriam ter uma conversa mais particular com o primeiro-ministro.  Uma delas foi Ferreira do Amaral — o chairman da Galp era o pivô das relações institucionais com um Governo hostil aos interesses dos então gestores da empresa.

        O que terá começado por uma estratégia divergente, rapidamente evoluiu para um conflito de natureza mais pessoal, ou pelo menos de estilos. Mexia estava habituado a gerir sem interferência das tutelas, mas Carlos Tavares queria deixar claro que quem mandava era ele, porque o Estado e as empresas do Estado tinham mais capital na Galp.

        O ministro não gostou de várias atitudes dos gestores da empresa e chegou a contrariá-las em público. Quando Ferreira do Amaral confirmou a intenção de vender a produção de petróleo em Angola, que estava a dar os primeiros frutos, o ministro da Economia corrigiu-o, em declarações aos jornalistas nas quais garantiu que a decisão cabia ao acionista Estado. Esta operação tinha sido defendida por António Mexia como forma de canalizar recursos financeiros do petróleo, que exigia muito investimento, para o gás, mas o então Presidente da República Jorge Sampaio interveio e travou a transação.

        Outra fonte de conflito foi a entrada em Bolsa da Galp, que iria conduzir a uma redução do poder do Estado. Numa viagem a Madrid, António Mexia falou aos jornalistas num calendário para a operação e, quando as notícias chegaram a Lisboa, Carlos Tavares ficou furioso e telefonou logo ao presidente da Galp. A perturbação foi tal que Mexia e alguns membros da comitiva perderam o avião de regresso a Lisboa. No dia seguinte, o ministro da Economia repetiu em público o que terá dito em privado: quem decide a privatização da Galp é o Governo.

        A refinaria de Matosinhos que Mexia queria fechar, por não ser um ativo muito rentável, foi outro ponto de frição com o Governo. As relações atingiram o ponto mais baixo quando o ministro da Economia lançou um concurso para vender a Galp sem o gás natural.

        Esta foi uma das operações mais disputadas de uma empresa do Estado, com três fortíssimos concorrentes. Um deles era o fundo americano Carlyle, associado a alguns dos antigos acionistas portugueses da Petrogal, incluindo o Grupo Espírito Santo, e que seria o favorito de António Mexia. Se ganhasse, este ficaria no cargo, de acordo com a imprensa da altura. Mas quem venceu foi um consórcio formado pelo BPI e empresários do Norte, liderado por Ferreira de Oliveira, o antigo rival da Petrogal. Com este desfecho — a operação não viria a concretizar-se porque o negócio foi chumbado pela Comissão Europeia de Durão Barroso, mas Ferreira de Oliveira chegou à presidência da Galp depois de Américo Amorim se tornar o maior acionista — , só restava a António Mexia abandonar a presidência da Galp. O que se seguiu foi totalmente inesperado.

        Presidente da Galp em risco chega a ministro

        Em junho de 2004, Portugal estava absorvido pelo Euro — do qual a Galp era uma das patrocinadoras e o seu presidente executivo andava a distribuir camisolas da seleção — quando Durão Barroso abandona o Governo para presidir à Comissão Europeia. Pedro Santana Lopes, que era então presidente da Câmara de Lisboa, sobe a primeiro-ministro, sem eleições. E leva consigo António Mexia para um inesperado cargo de ministro das Obras Públicas. Será a estreia política do gestor e, apesar de ser um Governo curto e de grande turbulência, Mexia não se dá mal no cargo. Um dos seus grandes trunfos é a amizade e grande empatia que tem com Santana Lopes. Mexia fora seu apoiante desde os tempos do agora primeiro-ministro como autarca na Figueira da Foz.

        Outro aliado de Mexia foi Álvaro Barreto, ministro Adjunto e da Economia, que apoiou o colega das Obras Públicas quando este decidiu segurar Fernando Pinto na TAP. A equipa de gestores brasileiros, que à data era muito respeitada pelo trabalho feito na companhia, estava de saída para dar lugar a Cardoso e Cunha, um peso pesado do PSD. Assim que chegou a ministro, António Mexia travou esta nomeação e manteve a administração da TAP. Cardoso e Cunha e o colega de Governo que tinha a Energia (Sampaio Nunes) viriam a integrar o grupo de personalidades que apresentou uma queixa na Comissão Europeia contra o negócio feito entre o Estado e a EDP liderada já por Mexia sobre as barragens.

        Nos oito meses em que esteve no cargo, Mexia foi sobretudo um decisor com as costas quentes. Tinha a reputação de competência num Executivo com tinha muitos erros de casting, contava com o apoio do primeiro-ministro e uma comunicação eficaz. Ao seu lado, estava como secretário de Estado, estava Jorge Borrego, um quadro da energia que António Mexia tinha levado para a Gás de Portugal e mais tarde para a Galp.

        Mexia decidiu praticamente tudo o que havia para decidir e estava pendente no Ministério das Obras Públicas. Afinal, um dos lemas que assenta no seu estilo de gestão, de acordo com um antigo colaborador, é o de que vale mais uma decisão imperfeita no tempo certo do que uma boa decisão fora de prazo.

        O ministro apresentou uma solução para a cobrança de portagens nas Scut (com uma tecnologia que viria ser implementada anos mais tarde por um governo socialista); indexou o preço dos passes sociais à evolução do custo dos combustíveis; apresentou um plano para sanear as empresas públicas de transporte que introduzia prémios e critérios de gestão por metas; lançou a ideia singular para uma expansão do Metro de Lisboa que serviria os bairros históricos da capital.

        Um TGV e duas pontes em véspera de eleições

        Já nos últimos dias como ministro, e com eleições marcadas, não resiste a uma tentação comum aos políticos e anunciou o projeto para a linha de TGV entre Lisboa e Porto (em 2003, o Governo de Durão Barroso tinha anunciado quatro ligações de alta velocidade, três com Espanha e uma interna). O traçado combinava troços novos e partes modernizadas da Linha do Norte. Era um investimento de 3,8 mil milhões de euros para ligar as duas cidades em 1h35 minutos até 2012 e  que envolvia ainda a construção de uma nova travessia (ferroviária) sobre o Tejo, que seria provavelmente no eixo Chelas/Barreiro. Antes foi estudada, e afastada, a possibilidade de o TGV entrar pela Ponte 25 de Abril, porque limitaria um serviço ferroviário de alta prestação pretendido.

        Mas não ficou por aqui. Com base num parecer do Conselho de Obras Públicas, António Mexia anunciou ainda a construção de uma ponte (ou túnel) rodoviária entre Algés e Trafaria, uma velha aspiração da concessionária Lusoponte que seria financiada por fundos privados e receitas de portagem.

        O tempo não permitiu avaliar se seriam decisões fundamentadas, ou sequer executáveis (como o metro ligeiro nas colinas de Lisboa). José Pacheco Pereira, no programa da TVI24 “Circulatura do Quadrado”, recordou esta semana o anúncio onde Mexia propôs uma nova travessia sobre o Tejo como sendo “completamente impreparado”: “Não sabia se era por túnel, se era por ponte, onde é que começava e onde acabava. Essa conferência, dada supostamente como ministro das Obras Públicas, foi uma farsa eleitoral que desqualifica quem a faz”.

        Quando o confrontaram com o timing político destas decisões, o então ministro argumentou que seria “insustentável” adiar a tomada de decisões sobre a gestão da mobilidade das pessoas”, sobretudo quando são projetos que demoram anos a concretizar-se.

        Muitas destas decisões foram revertidas pelo PS em 2005. Mas algumas ficaram, como a escolha de António Ramalho, gestor que também vinha da banca e estava a trabalhar para a rede de alta velocidade, para a presidência da CP, as negociações que levaram a TAP a comprar a Portugália ao Grupo Espírito Santo, e o projeto da ponte Chelas/Barreiro ligado ao TGV que acabou por não sair do papel.

        A passagem de Mexia pelo Governo ficou marcada por uma decisão dramática tomada em poucas horas numa sexta-feira à noite: o encerramento do túnel ferroviário do Rossio, por onde chegava a maioria dos comboios da Linha de Sintra. Foi a resposta a um relatório do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) que alertava para uma deficiência estrutural no túnel com risco para a segurança. O problema era conhecido e já há muitos anos que a gestora da rede queria fazer obras neste túnel, mas não se entendia com a CP por causa da perturbação nos horários. A situação ter-se-á agravado, segundo a Refer.

        A proposta de encerrar o túnel recebeu luz verde do secretário de Estado, Jorge Borrego, e também do ministro António Mexia, depois de a comunicar a Santana Lopes. O primeiro-ministro ainda terá perguntado se seria possível esperar por segunda-feira para reorganizar a oferta de comboios, mas no Ministério ninguém quis arriscar: a Ponte de Entre-os-Rios tinha caído apenas quatro anos antes.

        Apesar de admitir que “não havia nada que impedisse que o túnel continuasse a laborar”, o então ministro sublinhou que havia um risco numa zona de 40 metros. “Seria necessário intervir. Porque deveríamos adiar a intervenção se era necessária?” Depois de uma madrugada a refazer os horários com as empresas de transportes, no sábado, 23 de outubro de 2004, o túnel fechou. Só reabriu mais de três anos depois, com uma grande derrapagem nos custos e no calendário previstos para a obra.

        Quando é aprovado em Conselho de Ministros o ajuste direto desta obra por 50 milhões de euros, dada a “extrema urgência”, o Governo de Santana Lopes já tinha os dias contados. A demissão acontece em novembro e as eleições são em fevereiro do ano seguinte. Mexia fica ao lado do líder do PSD e coordena o programa político que o partido leva a votos. Se ganhasse, estaria na calha para ser super-ministro.

        Em fevereiro de 2005, José Sócrates conquista a primeira maioria absoluta para os socialistas. Os tempos eram de mudança, mas nem todas foram previsíveis. Depois do apoio a Santana Lopes, que se demite da liderança do PSD, António Mexia está desempregado e sem aparentes oportunidades de carreira em empresas onde o Estado tinha influência.

        De um Governo à direita ao maior cargo da vida com a bênção do PS

        No início de 2004, António Mexia foi um dos fundadores do Compromisso Portugal. O movimento de gestores e empresários mais jovens e internacionais opunha-se a visões mais tradicionais da defesa dos centros nacionais que até então dominavam a classe empresarial. O movimento, que tinha como porta-voz António Carrapatoso,  então presidente da Vodafone, defendia também um maior liberalismo económico e queria colocar na agenda as reformas estruturais no Estado que, do seu ponto vista, Durão Barroso não estava a promover.

        À data presidente da Galp, António Mexia esteve no movimento inicial, mas não foi um das figuras mais centrais nos trabalhos deste movimento que reuniu no Convento do Beato centenas de pessoas em fevereiro de 2004. Mas foi lá que se cruzou com várias personalidades com quem partilhava alguns conceitos económicos e ideológicos e que tiveram ou vieram a ter alguma influência na sua carreira. Entre eles António Borges, Paulo Teixeira Pinto e Diogo Vaz Guedes.

        Terá sido Mexia a propor para secretário-geral do movimento Rafael Mora, o dinâmico partner da consultora de recursos humanos Heidrick and Struggles, que também estava com Nuno Vasconcelos na Ongoing. A consultora ficaria célebre pelo modelo de governo implementado no BCP e que foi o pretexto para o confronto entre Jardim Gonçalves e Paulo Teixeira Pinto. Este modelo foi replicado na EDP quando Mexia foi nomeado e coube à consultora desenhar também o modelo dos prémios de desempenho dos gestores que tanta polémica causou anos mais tarde.

        O Compromisso Portugal tem sido apontado como um dos cenários preparatórios para a chamada guerra do BCP, que rebentou em 2007 e que também foi um conflito de gerações e visões empresariais. António Mexia, presidente da EDP há pouco mais de um ano, é visto como um aliado de Paulo Teixeira Pinto. O núcleo à volta de Jardim Gonçalves irá atacá-lo pelo papel central que terá tido na definição uma nova solução de liderança para o banco, e que foi desenhado numa reunião entre alguns acionistas na sede da EDP.

        Ainda em exercício de funções governativas, Mexia reencontrou-se com os promotores do Compromisso Portugal, que se reuniram com os líderes dos principais partidos antes das eleições de 2005 para os sensibilizar para a sua agenda reformista e produziram uma avaliação dos programas partidários. Na crítica ao programa do PSD, coordenado por Mexia, reconheceram uma maior clareza nos princípios, valores e compromissos, mas apontaram várias falhas na definição do papel do Estado e na especificação de medidas. No capítulo sobre a reforma do sistema político, concluíram que o PSD “esquece” o tema, enquanto os socialistas apontam caminhos.

        Livre depois das eleições de 2005, Mexia terá ponderado ficar na política, tendo admitido que “gostou imenso”  da experiência como ministro. As fotos desse tempo mostram quase sempre um homem descontraído e à vontade no seu papel.

        Um perfil publicado pela revista Sábado em 2004, quando foi para o Governo, mostra um outro lado, pessoal e familiar, do executivo de empresas. Desde andar à boleia e servir mesas em restaurantes na Suíça, onde estudou, para ajudar a pagar as despesas, até è relação com a filha então criança e a referência à primeira mulher, que era pianista (António Mexia está atualmente com Guta Moura Guedes, presidente da associação da ExperimentaDesign), Nesse artigo fala-se também da paixão pela música, desde a clássica à pop, e da prática de desportos como o ténis, a equitação ou o ski, apesar de a natação se ter tornado a opção para quem desenvolveu problemas nas costas. Entre os amigos contavam-se artistas, como por exemplo Rodrigo Leão, e há quem se lembre de o ver aparecer de boina basca quando passava pela empresa ao fim de semana.

        Mas, tal como aconteceu a outros quadros empresariais e da gestão ligados ao PSD, a carreira política a que nunca fechou a porta não arrancou. Colaboradores próximos admitem que o gestor estaria pouco disponível para fazer aquilo que seria necessário para chegar mais longe. Não era pessoa para andar a distribuir cumprimentos pelos populares.

        No verão de 2005, o seu nome é então falado para presidir à Vivo, a operadora móvel brasileira que a Portugal Telecom dividia com a espanhola Telefónica. A ideia terá vindo de Miguel Horta e Costa, o antigo secretário de Estado que contratou Mexia para o seu gabinete e que era à data presidente da PT. Mas a sugestão não reúne o necessário consenso.

        A Telefónica, cuja área internacional era então liderada pelo português António Viana Batista (accionista do Observador), torce o nariz à escolha de Mexia. Estava previsto entre os dois sócios que, depois da saída do primeiro gestor português da Vivo, a empresa seria gerida por um brasileiro. Já um perfil publicado em 2017, da autoria da jornalista do Público Cristina Ferreira, indica que quem não quis Mexia na Vivo foi Ricardo Salgado. O então presidente do BES, o maior acionista privado da PT, terá receado o desagrado de Sócrates pela escolha de uma pessoa próxima do Governo anterior.

        A proximidade de Mexia com o PSD não impediu que, menos de um ano depois e para surpresa de muitos, fosse nomeado para a maior empresa portuguesa, onde o Estado era o principal acionista. O nome do gestor foi avançado pelos principais acionistas privados da EDP, que aliás já o confirmaram ao Ministério Público. Paulo Teixeira Pinto, então presidente executivo do BCP, foi um dos promotores da ida de Mexia para a EDP, tendo sido apoiado pelo grupo José de Mello e pela espanhola Cajastur.

        O Governo de Sócrates, onde Manuel Pinho assumia a pasta da Economia, tinha dado aos acionistas portugueses margem para indicarem o sucessor de João Talone. O gestor tinha feito apenas um mandato na liderança da elétrica. Apesar dos sucessos em dar escala à EDP, a sua estratégia de juntar o gás tinha caído em Bruxelas. Talone era visto como muito próximo do Governo de Durão Barroso e, como o próprio contou no Parlamento, não havia uma relação de confiança com o novo Executivo, em particular com o ministro da Economia, que estaria mais aberto às pretensões da Iberdrola de chegar à administração da elétrica.

        Num gesto inédito, o presidente executivo da EDP faz um comunicado ao mercado no início do ano a dizer que não pretende fazer um novo mandato. Nele, alerta para a ausência “inaceitável” de uma tomada de posição pública por parte dos acionistas de referência contra a possibilidade de a Iberdrola chegar aos órgãos sociais da elétrica, um recado para o Governo.

        Se parece confirmado que foi proposto pelos acionistas privados da EDP, o nome de António Mexia passou sem resistência no Governo socialista, apesar de haver quem preferisse o presidente da REN, José Penedos, um homem do setor que era também do PS e tinha sido secretário de Estado.

        Manuel Pinho e António Mexia já se conheciam do Grupo Espírito Santo. As relações pessoais entre os dois não seriam as melhores quando Pinho chegou a ministro porque terá havido divergências do tempo em que Mexia esteve no banco Essi e Manuel Pinho regressou ao grupo BES em 1995, depois de ter tido uma passagem pelo Governo do PSD como diretor-geral do Tesouro. Mas havia outra afinidade entre os dois: António Mexia foi padrinho do filho de Manuel Pinho. O convite terá chegado por ter emprestado a casa em que vivia em Genebra, na Suíça, para Manuel Pinho e a mulher passarem uns dias.

        Os dois iriam estar no centro da investigação judicial que agora levou à queda de Mexia. Mas, até chegar aí, o homem que passou de gestor a ministro e de ministro a gestor outra vez passaria 14 anos à frente de uma das maiores empresas portuguesas.

        Na segunda parte deste perfil são contadas as histórias dos 14 anos de António Mexia na liderança EDP.

        Ana Suspiro – Observador 12 jul 2020,