Paulo Barriga
Cerca de 70% do território agrícola do Alqueva mudou de mãos nos últimos 10 anos. Seis grupos detêm ou gerem mais de 65% dos olivais da região. Graças aos novos olivais alentejanos, Portugal passou de importador crónico a quinto maior exportador mundial de azeite.
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Alqueva é a obra de regime da época dourada do betão nacional. Quando a 8 de Fevereiro de 2002 o primeiro-ministro pegou num walkie-talkie para ordenar o fecho das comportas da grande barragem, o que animou António Guterres não foi o eventual anúncio de um mundo novo para a agricultura portuguesa. Foi, isso sim, a glorificação da era das obras públicas que tinha atingido o apogeu com a exposição mundial de 1998 e cujo declínio se avizinhava com a realização do campeonato europeu de futebol de 2004. Alqueva era então a cereja no topo da argamassa.
Só assim se explica que não tivesse havido amanhã para o regadio de Alqueva; que ninguém tivesse pensado no dia seguinte. E que ainda hoje, passados quase 18 anos e mais de 2 mil milhões e meio de euros de investimento público depois, não exista um plano de ordenamento, uma estratégia de desenvolvimento para a área regada, ou sequer a definição de uma política agrícola que garanta a sustentabilidade do território. Como afirma Francisco Palma, presidente da Associação de Agricultores do Baixo Alentejo (AABA), o Alqueva foi mais "uma exigência das empresas de obras públicas" do que uma "aposta no desenvolvimento da região com base no recurso natural água".
Enquanto o Estado se deteve na obra em si, foram os privados - nomeadamente o sector olivícola andaluz -, que olharam para o Alqueva como um novo eldorado. E não tardou que se iniciasse uma verdadeira corrida pelo uso e pela posse da terra, antes mesmo de estarem concluídos os primeiros circuitos hidráulicos e blocos de rega. "O preço da terra significativamente menor do que o praticado na Andaluzia e, é claro, a disponibilidade de água" impulsionaram em definitivo a "invasão" espanhola, constata Marino Uceda Ojeda, professor jubilado da Universidade de Jaén e consultor internacional de olivicultura.
O proprietário tradicional alentejano, ainda não restabelecido dos efeitos da Reforma Agrária, condicionado pelas directivas da Política Agrícola Comum (PAC) e depauperado em virtude dos sucessivos anos de seca da década de 90, pouca ou nenhuma resistência ofereceu à investida estrangeira. Apesar de não existirem dados oficiais sobre a transacção de propriedades agrícolas na zona de intervenção do Alqueva, as organizações de agricultores estimam que, nas últimas duas décadas, entre 60% e 70% do território produtivo tenha mudado de mãos.
E se hoje o investidor deixou de ter rosto e são os grandes fundos financeiros internacionais que apostam no "activo terra", nos seus primórdios o Alqueva constituiu-se como uma "extensão natural" dos olivais andaluzes que actualmente, sem espaço para crescer, ocupam mais de 1,6 milhões de hectares de território agricultável, segundo dados do Ministério da Agricultura espanhol. A grande nuance entre um e o outro lado da fronteira é que "na Andaluzia é muito difícil obter concessão de água para novos olivais", realça o investigador Marino Ojeda. Já em Portugal, não só não é imposta qualquer restrição ao consumo agrícola até aos 600 milhões de metros cúbicos, como está em marcha o plano de alargamento do perímetro regado do Alqueva em mais 50 mil hectares, que ficarão dependentes da reserva de água existente.
O forte incremento da cultura intensiva do olival, que em Dezembro de 2019 ocupava 56.488 dos 100 mil hectares de terrenos em produção, de acordo com a Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva (EDIA), está a provocar profundas alterações no território. Não apenas na paisagem, onde o dourado temporário das searas de cereais cedeu em permanência lugar ao verde-petróleo da oliveira, mas também ao nível da ecologia, da economia, da estrutura fundiária e até da demografia e da vida social.
A terra a quem a trabalha
António Merêncio tinha acabado de completar 28 anos quando, a 10 de Dezembro de 1974, liderou o rancho de camponeses que deu início ao processo de Reforma Agrária nos campos do Sul de Portugal. Foi no Monte do Outeiro, em Santa Vitória, Beja. Lá, onde "o sonho se tornou realidade" e onde a realidade, em apenas oito anos, se haveria de transformar em "pesadelo", revive o antigo trabalhador rural. Com efeito, não durou muito a primeira experiência coletivista no Alentejo pós-revolucionário. Intrigas no seio do grupo, incompatibilidades ideológicas e impreparação para pôr em prática um novo modelo de gestão agrícola, depressa deitaram por terra a Unidade Coletiva de Produção que, de forma simbólica, levou o nome de Vanguarda do Alentejo.
Em 1975, a ousadia dos sem-terra do Outeiro chegou à capa da revista Time e abriu telejornais na principal rede televisiva do Japão. "Estávamos no caminho certo." E se dúvidas algum dia lhe assistiram, é quando hoje visita o Monte do Outeiro que António Merêncio se enche de certezas: "Sim, era possível." Aquilo que os olhos do antigo sem-terra alcançam é o mar de oliveiras plantadas em regime super-intensivo, em sebe, que ocupam a quase totalidade dos 360 hectares que compõem a herdade. "Ironia do destino", diz Merêncio quando reconhece que, por fim, as terras do Outeiro estão nas mãos de quem as trabalha.
E quem as trabalha é nada mais, nada menos do que a Elaia, empresa detida em partes iguais pelo fundo de investimento espanhol Atitlan e pela Nutrinveste SGPS, a holding do setor agro-industrial do grupo Jorge de Mello que detém na totalidade o grupo Sovena, "o maior projeto mundial de azeite", de acordo com o diretor-geral adjunto da Elaia, Vasco Cortes Martins. O Monte do Outeiro, onde se iniciou a Reforma Agrária, está a ser igualmente parte integrante do maior movimento de concentração de terras de que há memória no Alentejo. Só a Sovena, segundo o Anuário Agrícola de Alqueva 2018, possui cerca de 10 mil hectares de olivais, o que perfaz 17,7% da área total ocupada por esta cultura permanente.
Não só não foram alcançados, como acabaram efetivamente pervertidos os dois objetivos capitais que presidiram à fundação do regadio de Alqueva: o desmembramento do grande latifúndio e a diversificação de culturas. Com efeito, o avanço massivo do olival deitou por terra a constituição de um mosaico pluricultural e, devido à necessidade de obter escala no negócio olivícola, boa parte das propriedades rurais acabaram concentradas como nunca antes na história do Alentejo. Aquela que fora anunciada como a "verdadeira reforma agrária" depressa sucumbiria perante o avanço desregrado da monocultura do olival.
Ao dia de hoje, e a tendência concentracionista mantém-se ambiciosa, apenas três entidades, com a Elaia e a gigante agroalimentar espanhola De Prado à cabeça, mas onde se pode incluir também a empresa espanhola de gestão agrícola Aggraria, detêm ou gerem 46% dos cerca de 56 mil hectares de olivais plantados no Alqueva. E esta cifra pode atingir os 65,5% se a estes três "colossos" se juntarem a Olivomundo, a Innoliva e a Bogaris. Os restantes 740 clientes inscritos com olival no balcão da EDIA operam os sobrantes 30% da mancha olivícola.
Chamava-se Catarina
Há uma foice e um martelo em lata, pincelados de cinzento, que anunciam o local exato onde Catarina Eufémia foi baleada por um tenente da GNR, em 19 de maio de 1954. Foi no Monte do Olival, em Baleizão. O destino tem destes acasos. Para além do monumento e da reminiscência das lutas rurais que ainda perdura na memória dos mais idosos, pouco ou nada ali resta do velho Alentejo agrícola das searas, das ceifas e das mondas à força de trabalho braçal. A aldeia, como tantas outras no Alqueva, está sitiada por olivais. Toda a vida social e económica depende da cultura da azeitona. "A agricultura como até aqui a conhecíamos não existe mais. Isto está a mudar a uma velocidade louca e nem o Estado, nem ninguém, parece ter capacidade para pôr um travão no assunto", diz Joaquim Silva.
Foi no Monte do Olival que a empresa familiar de Joaquim Silva plantou, em 1998, quatro anos antes do encerramento das comportas de Alqueva, um dos primeiros olivais intensivos do Alentejo. "Por causa dos subsídios que eram dados, chamavam-lhe oliveiras da CEE", ironiza. Mas nem os apoios comunitários, nem o chamamento da terra obstaram a que o Monte do Olival, e as herdades contíguas das Fontes e do Carapetalinho, fossem vendidas em 2017 a um fundo financeiro francês e que as terras passassem a ser administradas por uma das várias empresas de gestão de "carteiras" agrícolas que operam na região, a CH Business Consulting, propriedade de Brigido Chambra, cidadão espanhol conhecido como o "pai do olival em Alqueva". Só a CH possui atualmente sete herdades e dá assistência a outras 18, num total de cinco mil hectares de olivais e amendoais.
No caso concreto de Joaquim Silva, foram as desavenças familiares que precipitaram a venda. Mas, um atrás do outro, por questões sucessórias, de solvência ou por manifesta falta de vocação e de cultura empresarial, os proprietários tradicionais alentejanos - quer os antigos terratenentes brasonados, quer os chamados "velhos-novos-ricos" -, estão a ceder ao avanço do capital. Nenhuma outra geografia agrícola portuguesa sofreu tão profundas alterações fundiárias e paisagísticas no último século como o território que hoje está a ser irrigado pelo Alqueva. Em cima da forte desmatação promovida aos tempos da ditadura militar em nome da autonomia alimentar do País, operação conduzida pelo coronel Linhares de Lima e que teve o nome Campanha do Trigo, alicerçou-se agora uma reflorestação intensiva de olival, com consequências ambientais e sociais difíceis de prever. No entanto, é quase unânime no setor a ideia de que a primeira bolha a rebentar será a da sustentabilidade financeira do negócio no longo prazo.
Muito mais do que uma mera intervenção agrícola, as culturas permanentes no Alqueva, com o olival à cabeça logo secundado pelo amendoal, são agora objeto de forte pressão financeira. Com as taxas de juro em terreno negativo, a finança "começou a olhar para a terra como um valor seguro", reconhece Luís Mira Coroa, diretor da União de Cooperativas Agrícolas do Sul (UCASUL). Pressionada pela procura em alta, a terra viu o seu valor aumentar cinco a seis vezes nos últimos 15 anos. Um hectare das melhores terras era comercializado em 2005 por valores a rondar os 5 mil euros, hoje qualquer terreno, desde que esteja dentro dos blocos de rega, não é vendido por menos de 25 mil euros. "O regadio envolve muito dinheiro e a forma como está a ser financiado pode e deve ser questionada", completa Francisco Palma: "Está aqui criado um grande fosso entre financeiros e agricultores." Nos últimos cinco a 10 anos, a agricultura do Alqueva passou velozmente do setor primário, ao secundário e ao terciário: é lavoura, é agro-indústria e é, antes de tudo, finança.
O mundo a seus pés
Quando o investidor andaluz Manuel Goméz Cabrera chegou ao Alentejo em 2003, supostamente com os bolsos cheios de dinheiro, o mundo agrícola caiu-lhe aos pés. Numa altura em que a água para rega em Alqueva era ainda uma incerteza, Cabrera adquiriu uma das mais emblemáticas propriedades do concelho de Beja, a Quinta de São Pedro, cujo palácio e respetiva envolvente urbana chegou a ser sede da extinta freguesia de São Pedro dos Pomares. Ao mesmo tempo, o industrial dos presuntos e do gado bovino comprou a propriedade contígua, a Rabadôa, que à data pertencia ao grupo cordovês Martinez Segrera e cujos 1.800 hectares de plantação intensiva lhe valiam o epíteto de maior olival do mundo num só artigo predial. A estas, juntou de seguida a vizinha herdade da Quinta da Chaminé e um considerável conjunto de pequenas parcelas agrícolas e courelas. Por fim, mandou construir um lagar capaz de processar a totalidade das safras.
O investimento direto da empresa familiar Belloliva no Alentejo ascendeu a 100 milhões de euros. Nas mãos dos especuladores, vítima de maus anos agrícolas e apertado por investimentos de rendibilidade duvidosa, como a compra de duas gigantescas máquinas de apanha de azeitona de fabrico argentino, as Colossus, cujas 27 toneladas de peso bruto se revelaram desastrosas a operar nos olivais alentejanos, ou a implementação de captações de água diretamente do rio Guadiana, que fica a mais de oito quilómetros das propriedades, o império de Manolo, como é conhecido, caiu com estrondo em 2016. Por pagar à Caixa Geral de Depósitos (CGD) ficaram 90 milhões de euros de crédito malparado.
Tal como Manuel Cabrera, boa parte dos investimentos espanhóis da primeira vaga do Alqueva acabaram por derrocar. A banca portuguesa, ao contrário da relação que mantinha com os agricultores nacionais, acolheu-os de braços abertos e fez fé nos balanços financeiros positivos que demonstravam nas empresas que detinham em Espanha. O problema é que as garantias foram dadas em cima de ativos provenientes essencialmente do ramo imobiliário. Quando as ondas de choque da crise do subprime chegaram à Península Ibérica, foi a ruína para muitos.
Para minimizar perdas, a CGD acabou por passar a Belloliva para a Oxy Capital, que é uma sociedade gestora de fundos de private equity com interesses em Portugal e Itália e que, entre outros ativos, tem em carteira o Casino de Troia e a gasolineira Prio. Apesar da Belloliva ser um dos grandes devedores do banco público, a administração da Caixa nega a existência de uma bolha no negócio da olivicultura e reafirma que "apoia os investimentos do agronegócio no Alqueva e no resto do País, desde que o projeto proposto seja bem fundamentado e a empresa apresente capitais próprios e garantias suficientes e o mesmo seja aprovado pela direção comercial e de risco do banco".
Safra e contrassafra
Uma opinião que diverge daquela que é hoje a voz corrente nos meios agrícolas. Para Francisco Palma, "a bolha imobiliária está criada e apenas resta saber quando vai rebentar". Já Luís Mira Coroa reconhece que "os fundos financeiros vieram atrás da rentabilidade, uma vez que a terra passou a ser um ativo de liquidez imediata, mas nem tudo está a ser bem resolvido". Por seu turno, Pedro Gonzalo Ybarra, presidente do grupo Aggraria, que opera em Portugal, Espanha e Chile e que foi dos primeiros espanhóis a investir no Alqueva, em 2003, afirma não restarem dúvidas de que "quando os preços baixarem, e vão baixar, vai haver inevitavelmente problemas de pagamentos".
Nas análises que os bancos estão a fazer aos investimentos no olival, prossegue Pedro Gonzalo Ybarra, "estão sempre a contar com o melhor dos cenários, mas isso é de todo irrealista". Apesar de a média regional rondar as três toneladas, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), numa campanha de produção ótima, como a atual, um hectare de olival irrigado de alto rendimento, intensivo ou super-intensivo, pode produzir 12 toneladas de azeitona. De onde se obterão 1.920 quilogramas de azeite que renderá perto de 4.300 euros, segundo a mediana ao início de dezembro de 2019 de 2,26 euros por quilo fixada pela bolsa oleícola espanhola POOLred, por onde o mercado internacional se regula. Como as despesas anuais de produção se cifram entre os 2.500 e os 3 mil euros, neste cenário perfeito, o rendimento não só dá para amortizar investimento, como este se revela um verdadeiro negócio da China.
O problema é que o ciclo da oliveira é como o ritmo cardíaco. Umas vezes para cima e outras para baixo, com as devidas arritmias pelo meio. A única certeza do agricultor é que a seguir a um bom ano, virá um ano menos bom. Os antigos chamavam safra e contrassafra a esta oscilação que tem a ver com a retração das próprias plantas à violência da apanha, mas que também pode estar relacionada com questões de ordem climatérica ou fitossanitária. E hoje, mais do que nunca, com a especulação comercial. Dominado por dois dos maiores embaladores de azeites do mundo, a Sovena/Oliveira da Serra e a Unilever Jerónimo Martins/Gallo, e dependente no restante dos grandes brokers internacionais do comércio a granel, o mercado português está perfeitamente emaranhado numa teia especulativa.
Apesar de a produção nacional anteceder a dos demais países produtores de azeite do Hemisfério Norte, nomeadamente de Espanha, certo é que, como nesta campanha está a acontecer, acaba por não haver fluidez no escoamento da produção. Excluindo alguns pequenos e médios engarrafadores italianos, que procuram os azeites verdes do início da safra alentejana para os comercializarem em pequenos nichos de mercado sob rótulo próprio, são os grandes "tubarões" que "acabam por regular o setor em seu próprio benefício", condena o pequeno olivicultor José Vasco Carvalho.
Com vasta capacidade de armazenamento, as multinacionais compram "à cabeça" os primeiros azeites da campanha para reavivar os stocks acumulados de um ano para o outro. E retiram-se logo de seguida, deixando o mercado em suspenso. Neste quadro, ao consumidor chegará por estes dias um azeite velho "revitalizado" e ao pequeno produtor mais não restará do que aguardar por uma janela de venda - e perder valor, uma vez que a praça do azeite abre em alta em outubro, no início da apanha, e vai em progressiva queda até ao final da mesma, entre fevereiro e março.
O que vale é ter azeite
A operação de apanha da azeitona na herdade da Aldeia dos Condes acabou em meados de dezembro. Não correu nada mal. Os primeiros olivais intensivos que a família de José Vasco Carvalho plantou há 25 anos ainda mantiveram vitalidade para gerar, em média, 11 toneladas por hectare. A terra foi generosa para com o agricultor, "mas neste negócio o que conta não é o produto da terra, a azeitona, é o azeite. E, desta forma, não há alternativa: não controlamos nada, estamos sempre nas mãos dos especuladores". No lagar ficaram por "despachar" 130 toneladas de azeite, à espera de um milagre que se espera sempre possa soprar de Espanha, que tem a maior capacidade produtiva mundial e onde a campanha é mais tardia. Um mau ano do lado de lá da fronteira é sempre bom para os olivais alentejanos.
A preponderância do olival é relativa para as boas contas da sociedade gestora da Aldeia dos Condes. Para evitar os "humores" do mercado, José Vasco Carvalho optou por diversificar. Há por ali vinha, nogueiras, floresta de pinhal e de azinho e uma zona para culturas anuais com três pivôs de rega, onde normalmente produz cereais de regadio. Contudo, esta não é a prática comum em Alqueva. A monocultura do olival, agora salpicado por alguns amendoais, coloca os agricultores numa verdadeira posição de dependência em relação aos especuladores, à qual se junta uma certa ansiedade da banca no que respeita a derrapagens na amortização dos investimentos. Os pequenos e médios produtores, como Manuel Castro e Brito, não deixam de lamentar que passam "mais tempo nos bancos e a tratar de papelada e da burocracia" do que a cuidar daquilo que sabem "fazer como ninguém: o melhor azeite do mundo".
Até que um olival super-intensivo, como aquele que Manuel Castro e Brito plantou em 2017 no Monte das Nogueiras, em que cada hectare pode comportar até 1.975 plantas, entre em produção é necessário decorrer entre dois anos e meio a três anos. E a formação plena das árvores apenas acontecerá ao fim de sete anos. Já a infraestruturação dessa mesma área e os custos gerais de operação até à primeira colheita estarão entre 8 e 10 mil euros. Se estivermos a falar, como é o caso, de 62 hectares, as contas são fáceis de fazer. Isto sem incluir o preço da compra ou do arrendamento do terreno. Ainda assim, Filipe Ravera desvaloriza os eventuais impactos negativos do negócio, como a especulação imobiliária ou a captura do preço do azeite por parte das grandes multinacionais. O diretor do gabinete de agro-negócios da CGD sustenta que "a capacidade produtiva das terras não está abaixo do valor das mesmas. O valor resulta diretamente da convicção dos produtores que, ao investirem, confrontam com o maior cuidado os valores de aquisição ou arrendamento que pagam pelas terras com o valor atual dos resultados económicos que calculam vir a obter com a exploração produtiva das mesmas". No entanto, no Alqueva, o espectro da Bellolliva continua a pairar no ar.
Bandeiras negras
O anúncio caiu que nem uma bomba. Quando o então ministro da Agricultura, Capoulas Santos, comunicou na Assembleia da República, a 12 de junho de 2019, o fim dos apoios aos novos investimentos no olival do Alqueva e às agro-indústrias que lhe estão associadas, a reação do setor não se fez esperar. A Federação das Associações de Agricultores do Baixo Alentejo (FAABA) recebeu a notícia "com grande perplexidade", considerando-a "contraditória, desadequada e irrealista". Por seu turno, a Associação de Olivicultores do Sul (Olivum) reputou as declarações do ministro como "discriminatórias e infundadas", colocando inclusivamente em causa a legalidade da proposta.
Capoulas Santos apresentou-se no parlamento no âmbito de um debate de urgência agendado pelo Partido Ecologista "Os Verdes" (PEV), que já a 8 e 9 de abril, durante as suas jornadas parlamentares no Baixo Alentejo, tinha espalhado bandeiras negras por algumas plantações. Na presente legislatura, os deputados José Luís Ferreira e Mariana Silva, a 30 de outubro, deram entrada ao Projeto de Lei 25/XIV, que baixou à Comissão Parlamentar de Agricultura e Mar a 6 de novembro. Um diploma que, no essencial, propõe o arranque coercivo das plantações que distem menos de 300 metros das populações e o fim dos apoios comunitários às culturas intensivas.
O PEV materializou nesta iniciativa legislativa a vaga de contestação que as principais associações ambientalistas vinham há meses a propalar contra os olivais intensivos. Uma posição comum a todos os partidos que apoiaram o anterior governo. Também o Bloco de Esquerda, a 6 de março de 2019, propôs uma recomendação ao Governo para que se instaurasse uma "moratória à instalação de amendoal e olival intensivo e super-intensivo em todo o País até que se defina regulação da sua limitação".
Mas se no programa deste "amplo movimento rasteiro", como o classificou Pedro Lopes, presidente da Olivum, durante as jornadas do setor que se realizaram em Beja a 26 de novembro, o foco está essencialmente centrado nas questões ambientais e de saúde pública, houve uma linha de debate, na sequência das palavras de Capoulas Santos, que se emancipou: o tema da posse da terra e a política de ajudas públicas à instalação de projetos agrícolas em regime de produção intensiva.
Alarmes e subsídios
É opinião corrente no setor agrícola do Alqueva que a interdição dos apoios comunitários à olivicultura foi uma cedência política do Governo aos parceiros da esquerda, em tempo de pré-campanha eleitoral. Até porque o Ministério da Agricultura acabou por anunciar de "forma alarmista", no dizer de Pedro Lopes, o que há muito era dado por adquirido: não seria aberto mais nenhum concurso para a olivicultura ao abrigo do Programa de Desenvolvimento Rural 2020, uma vez que 90% deste pacote financeiro estava já comprometido. E os restantes 10% seriam endereçados a projetos que ainda estavam em fase de análise. "Não se pode prometer aquilo que não se tem", esclarece o diretor regional adjunto da Agricultura do Alentejo, José Velez.
Mas nem todos ficaram melindrados com a medida. Para os pequenos detentores de terras que se queiram instalar, o que já antes era quase impossível sem recurso à banca, transformou-se agora numa miragem. Já o setor financeiro do Alqueva rejubila com a nova situação. Com 83,3% dos 120 mil hectares do empreendimento já em produção, a terra começa a ser um bem cada vez mais escasso no interior do perímetro de rega. Daí que as grandes multinacionais, para obstar à instalação de concorrentes, tenham inflacionado os preços dos terrenos para níveis acima da sua capacidade produtiva. A par da especulação imobiliária, o desencorajamento ao investimento anunciado pe- lo antigo governante favorece ainda mais a concentração. "Os poucos agricultores locais sobreviventes acabam por vender ou por arrendar as suas terras", as- segura Francisco Palma.
Sem a existência de um plano de ordenamento do território agrícola, os grandes detentores da monocultura do olival acabam por ser os verdadeiros beneficiários do maior investimento que o Estado, com recurso a fundos comunitários, alguma vez concretizou no Alentejo: 2,5 mil milhões de euros. A estes poder-se-ão juntar perto de 800 milhões de euros de apoio ao investimento para o setor do olival e do azeite, atribuídos no decurso dos últimos dois quadros comunitários de apoio. Entre 2007 e 2014, na vigência do Proder, a olivicultura no Alentejo recebeu 515 milhões de euros, de acordo com um estudo recentemente realizado pela empresa de consultoria agrícola Consulai e pelo guru internacional dos olivais, o espanhol Juan Vilar. Em relação ao atual instrumento estratégico e financeiro de apoio, o Plano de Desenvolvimento Regional 2020, segundo o mesmo documento, com a execução em 50%, foram já afetados perto de 290 milhões de euros.
A par das ajudas à instalação, a olivicultura de regadio beneficia ainda do Regime de Pagamento Base (RPB) que é comum à agricultura em geral e também de apoios agro-ambientais no âmbito do segundo pilar da PAC.
Para agilizar a gestão das empresas, para otimizar os recursos, mas também para aceder aos fundos comunitários os grandes grupos, cujo capital de base por norma provém de diferentes ramos industriais que não a agricultura, estão fracionados num emaranhado de empresas-mãe, sociedades e joint ventures que se entrecruzam. Não é fácil seguir o rasto do dinheiro que, no Alqueva, se chama "terra". José Luís Santaella, por exemplo, é gerente da De Prado Portugal SA, da De Prado Sul Unipessoal, cuja casa-mãe é a De Prado Negocios e Inversiones SL, e de outras 13 sociedades agrícolas. É representante da Agricola Alentejo, vogal da Almazara OFF e presidente do conselho de administração da Tranquilopadrão, Fonte dos Azeites e De Prado Negócios e Investimentos SGPS SA. Só a De Prado Portugal faturou em 2018 mais de 63 milhões de euros em vendas de azeite. Porém, a organização em teia não é um exclusivo da De Prado, nem dos grupos empresariais espanhóis. É uma prática comum no Alqueva que não olha a nacionalidades.
Campanhas
Duas campanhas cruzaram-se a 21 de setembro de 2015, na herdade dos Falcões, próximo da aldeia de Cabeça Gorda, em Beja. A eleitoral iria dar uma vitória curta ao então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho. Já a olivícola viria, então, a bater todos os recordes. Nesse ano, colheram-se em Portugal mais de 858 mil toneladas de azeitonas, de acordo com os dados do Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral (GPP).
O líder do PSD decidira encetar a caça ao voto no Baixo Alentejo inaugurando um dos maiores e mais sofisticados lagares de azeite do mundo, o da Olivomundo. Um equipamento cujo investimento de 8,5 milhões de euros autonomizaria a produção oleícola do único grande grupo exclusivamente português a operar na zona de influência dos novos olivais irrigados.
A Olivomundo é um caso de estudo no universo da olivicultura no Alqueva. Iniciado por José Manuel Gonçalves, em 2004, com a compra e a infraestruturação de uma parcela de terreno com 60 hectares, o grupo familiar explora atualmente quase cinco mil hectares, por compra ou por arrendamento, tem uma centena de funcionários a tempo inteiro e produz 35 mil toneladas de azeitona, o que perfaz cerca de 10 mil toneladas de azeite por ano. A quase totalidade da produção é vendida a granel para o exterior, principalmente para Espanha e Itália, onde é embalada e comercializada como produto local. Em 2018 a Olivomundo faturou perto de 24 milhões de euros. Na presente campanha, José Gonçalves prevê que o volume de negócios possa ascender aos 26 milhões.
Apesar de a EDIA fazer publicidade do facto de, em 2018, 61% do investimento na cultura do olival dentro do Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva ser de origem portuguesa, 35% espanhola e os restantes 16% divididos por investidores ingleses, suíços, chilenos, dinamarqueses, alemães, brasileiros, franceses, holandeses e sauditas, a empresa que gere o maior regadio português estará, por certo, apenas a ter em consideração os números de identificação fiscal dos operadores e não a verdadeira nacionalidade dos mesmos.
A preponderância do capital espanhol na região não é um mito. Mesmo nos grupos com sede e origem em Portugal, como a Elaia, o investimento é repartido com fundos estrangeiros, neste caso concreto espanhol. A Olivomundo é a exceção que tem tanto de surpreendente como de intrigante. É o próprio José Manuel Gonçalves que reconhece não ser "fácil uma empresa familiar ganhar tamanho e estrutura suficientes para competir com os grandes tubarões". Para o conseguir, prossegue o empresário, foi necessário "muita imaginação, ponderação e cautela nos novos investimentos".
Facas afiadas
Imaginação, ponderação e cautela de pouco servirão se não houver disponibilidade de terra, muita terra, e essa, já se viu, é cada vez mais escassa, mais cara e está cada vez mais concentrada. E, acima de tudo, se não houver garantia de água para rega. A 31 de dezembro deste ano termina o contrato de concessão dado por sete anos pelo Estado à EDIA. Uma vez que perto de metade do regadio português deriva das águas retidas na barragem do Alqueva, a gestão da água manteve-se nas mãos da sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos que também foi responsável pela construção e infraestruturação do equipamento. Trata-se de uma situação inédita. Nas demais circunscrições de rega do País as concessões são dadas a longo prazo, por norma a 35 anos, a associações de regantes e de beneficiários que se criam para o efeito.
Não se estranhe, por conseguinte, que com o aproximar do término da concessão, as facas se comecem a afiar. Já em novembro de 2018, a Federação Nacional de Regantes de Portugal promoveu as suas jornadas em torno da questão do modelo de governança do regadio. O encontro decorreu em Montes Velhos, Aljustrel, no coração de um dos cinco perímetros confinantes ao Alqueva, o Roxo. E foi precisamente à margem do encontro que o presidente da Fenareg, José Núncio, avisou que "existem razões substanciais para que o atual modelo de gestão do EFMA seja revisto". E, claro, que o controlo da água possa passar para as mãos dos agricultores beneficiários.
É que, para além da "guerra ideológica" que existe em torno do uso e da gestão da água, as receitas por ela geradas não são despiciendas. Segundo o relatório e contas de 2018, a EDIA, incluindo a cobrança de taxas de conservação, faturou 15 milhões e 220 mil euros só em água. E as estimativas para 2019, juntando as receitas de água e de energia, indicam que a empresa vai arrecadar qualquer coisa como 34 milhões e 723 mil euros. A este "conflito de interesses público-privado" responde o presidente da EDIA com a locução futebolística, "em equipa que ganha não se deve mexer". José Pedro Salema sustenta que "os resultados positivos inequívocos dos últimos anos reforçam as vantagens de uma gestão integrada de todo o sistema".
Mas tal como acontece com o uso da terra, o problema da água no Alqueva reside, mais uma vez, no planeamento. Ou na falta dele. A construção da segunda fase do Alqueva no âmbito do Programa Nacional de Regadios, cujos contratos de empreitada estão em fase de análise, é o exemplo acabado da deficiente definição das políticas agrícolas. Ao todo, serão mais 240 milhões de euros que o Estado, através de verbas provenientes do PDR 2020, mas essencialmente de empréstimos bonificados conseguidos junto do Banco Europeu de Investimentos e do Banco de Desenvolvimento do Conselho da Europa, pretende investir até 2023 no aumento da área regada do Alqueva em mais 50 mil hectares. Um alargamento cuja estimativa de consumos foi delineada com base no volume de água consumido pela cultura dominante, o olival.
João Cavaco Rodrigues, presidente da recém-criada Associação de Proprietários e Beneficiários de Alqueva (APBA), já fez as contas e concluiu não ser possível "avançar para a expansão sem a grande preocupação de que a água possa não chegar". Apesar de o caudal útil para rega no Alqueva ser de 1,7 mil milhões de metros cúbicos, a EDIA apenas tem a concessão anual de cerca de 600 milhões de metros cúbicos. Com o alargamento, a superfície regada pela grande barragem rondará os 200 mil hectares, incluindo os chamados blocos de rega confinantes e os regantes precários, que são uma espécie de colonatos agrícolas que a EDIA promoveu nas margens do empreendimento quando a adesão ao mesmo era ainda residual.
Neste cenário, em teoria, o território não poderá receber qualquer cultura que consuma mais de três mil metros cúbicos anuais por hectare. Ou seja, de entre as lavouras que até à data foram experimentadas ou estão em produção em Alqueva, apenas terão viabilidade hídrica o olival e a vinha. "Os pressupostos que há cinco anos levaram os governantes a avançar com o projeto de expansão já não se verificam", alerta João Cavaco Rodrigues. A elevada taxa de adesão ao regadio, que em 2019 atingiu os 100 mil hectares, o avanço mais rápido que o esperado dos efeitos provocados pelas alterações climáticas e, acima de tudo, a reconversão de olivais modernos em amendoais, cuja exigência de água é em 50% superior à oliveira, estão na base das apreensões do presidente da APBA.
Crescer sempre
Hoje, o "setor primário", com o olival na linha da frente, faz assento na tecnologia, na ciência, na inovação, nos mercados externos. "No fundo", diz Pedro Lopes, "estamos a falar em quantidade, mas também em grande qualidade de investimento e é pela qualidade que se está a transformar definitivamente o Alentejo". Ainda que "exista quase uma espécie de religião contra o olival, o setor está a operar uma verdadeira revolução na região do Alqueva", diz Pedro Santos, um dos autores do estudo Alentejo a liderar a olivicultura moderna internacional. Nos próximos 10 anos, segundo as conclusões do ensaio apresentado em novembro, Portugal "será a maior referência na olivicultura moderna e eficiente do mundo", passará a ser o sétimo produtor de olival e o terceiro maior em produção de azeite. Tudo, conclui-se, graças às plantações do Alqueva que estão a liderar a "atual transformação da agricultura internacional".
É a própria ministra da Agricultura que realça à SÁBADO que "depois de um longo período em que éramos deficitários em azeite, passámos a exportadores líquidos". Maria do Céu Albuquerque, apesar de o seu ministério ter em marcha neste momento um estudo para analisar a possível delimitação da área máxima de olival no perímetro de Alqueva, constata que esta "é uma cultura rentável e muito competitiva".
Num outro estudo sobre as perspetivas agrícolas da União Europeia para os mercados e rendimentos dos Estados-membros, no período de 2019-2030, a produção de azeite em Portugal poderá crescer perto de 88%, em comparação com o período de 2014-2018, o que esmaga a média comunitária que se prevê ser de 1,1% ao ano. Porém, os técnicos da Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural da Comissão Europeia não deixam de alertar para os impactos das monoculturas em certas regiões e sobre as questões ambientais relacionadas com o uso da água. Mas essa é outra história.
Artigo originalmente publicado a 16 de janeiro de 2020.
https://www.sabado.pt/investigacao/detalhe/os-novos-donos-do-alentejo