sexta-feira, 30 de junho de 2023

São Vicente: os estranhos negócios da junta do PS

Ser do PS e estar de bem com a direcção, é uma maravilha…


"Na junta presidida por uma Ex-inspectora, há contractos com o NIF de outra junta, adjudicações a empresas-mistério, ou acabadas de criar, ou que pertencem ao mesmo dono, ou a marido e mulher.
A história dos contractos da Junta de Freguesia de São Vicente com Carlos Madaleno entre 2017 e 2020 tem vários contornos polémicos. Empresário ligado à construção civil, amigo de José Afonso Dias, o tesoureiro da junta na altura (os dois foram, inclusive, à Polónia buscar refugiados ucranianos, tendo aparecido na televisão), Carlos Madaleno teve dois contractos consecutivos com a junta para “trabalhos diversos” e “realização de pequenas reparações”, um de €75.000 em nome individual (2017) e outro de €150.000 pela sua empresa, a JC Madaleno (2018).
Após esses contractos, em Maio de 2020 a mulher de Carlos Madaleno (Sónia Brito João) criou a Anamazeti, uma empresa com o mesmo objecto social da do marido (construção) e poucos meses depois, em Setembro, a junta adjudicou-lhe mais €150 mil para um ano de “trabalhos diversos”.

Carlos Madaleno prestou declarações à SÁBADO por telefone, mas anulou-as depois, pedindo que tudo se passasse por escrito. Por email, não respondeu a várias perguntas que tinha respondido ao telefone, nomeadamente a razão das várias empresas, incluindo a da mulher, como eram geridos os contractos, quanto gastou efectivamente dos montantes adjudicados e pagos pela junta e quão amigo era do tesoureiro, Afonso Dias.

Por escrito, respondeu apenas: “Executei vários trabalhos de construção civil para a Junta de Freguesia de São Vicente, à semelhança do que fazia para a extinta freguesia da Graça. Os valores pagos correspondem efectivamente a trabalhos realizados, sendo os preços ajustados ao valor do mercado. Refuto ter celebrado vários contractos em infracção de quaisquer regras que fossem aplicadas no momento da sua formação ou celebração.”
A existência de várias empresas que têm o mesmo dono a concorrerem entre si não é novidade na adjudicação pública em Portugal, mas este caso de São Vicente tem talvez um detalhe pioneiro. Nos três contractos, o NIF que aparece como sendo o da Junta de Freguesia de São Vicente é o 510 857 043, que é na verdade o NIF de outra freguesia de Lisboa, a de Santa Maria Maior. As duas freguesias são vizinhas e lideradas pelo mesmo partido desde 2013, o PS.

"Desconhecemos por completo o motivo pelo qual se verifica a inserção do NIPC da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior num contracto assinado pela Junta de Freguesia de São Vicente - facto que só podemos atribuir a um lapso involuntário", justificou-nos Miguel Coelho, presidente da junta de Santa Maria Maior.

A junta de São Vicente respondeu que a questão do NIF foi “um lapso”. Quanto à sobreposição de contractos com Carlos Madaleno, diz não poder “confirmar essa informação”. “Estamos a desenvolver diligências para confirmar a sustentabilidade legal das contratações em causa.” Mas acrescenta que “as contratações para esse tipo de serviço foram precedidas de procedimentos concorrenciais. O valor em causa era adequado às necessidades de contratação de trabalhos de construção civil”.

Onde não houve respostas da junta foi para um contracto feito a 15 de Outubro de 2020, de €29.963, a uma empresa chamada Rute Isabel Lopes Nunes Pereira, Construções, Lda. para “obras públicas para remodelação de espaço para Centro de Convívio da Junta de Freguesia de São Vicente”.

As festas populares Nem o nome da empresa, o NIF, ou o nome da proprietária aparecem nas bases de dados empresariais ou no Portal da Justiça. O contracto foi assinado pela presidente da junta e por Rute Isabel Nunes Pereira, como “sócia-gerente”. Não há também registo de qualquer empresa na morada da mesma (Quinta São João da Cordiceira, 2660-233, Santo António dos Cavaleiros). A empresa não tem qualquer outro contracto no Base além deste.

A junta respondeu-nos apenas que a empresa foi “consultada e selecionada para executar a empreitada com base numa indagação preliminar ao mercado”. Mas que experiência tinha a empresa, quando foi criada e quem é exactamente Rute Pereira? “Apenas a conhecemos enquanto gerente da empresa”, respondeu a junta, que adianta que esta lhe foi “indicada por outras empresas” quando estavam a “indagar o mercado para este tipo de empreendimentos”.

Outro caso relativo a adjudicações nesta junta de Lisboa passa-se com a organização das festas populares de Junho, que têm estado desde 2014 a cargo do empresário Joaquim Silva através de duas empresas de que é proprietário: a Feeders e a Jofosi. Esta última, por exemplo, foi constituída a 23 de agosto de 2018, poucos meses antes do primeiro contrato. Pelo meio, entre os contratos destas duas empresas, apareceu um contrato de uma empresa da mulher de Joaquim Silva, a Insiders, também para organizar o arraial (no caso, o de 2019). Meses depois, a Insiders foi fechada. Quanto ao preço do serviço, tem aumentado ao longo dos anos. Em 2014, a “Gestão das Festas Populares” custou €15.405 e em 2023 foi adjudicada por €74.960.

Joaquim Silva respondeu à SÁBADO por email que “a alternância de empresas ao longo dos anos é claramente uma validação do bom serviço prestado pela minha pessoa e profissionais que me rodeiam e consequente relação qualidade-preço”. “Com certeza a junta de freguesia avaliou as diferentes possibilidades entre os contratos celebrados através de consultas prévias e quis garantir que o padrão de qualidade estabelecido nas experiências anteriores não ficaria comprometido.” Sobre o aumento do preço, diz que acompanha “o crescimento exponencial do evento em contraponto com o orçamento atribuído.”

A junta diz-nos que não há simulação de concorrência, garantindo que auscultou outras empresas no mercado, mas que só as de Joaquim Silva e da mulher responderam. “Salienta-se que o procedimento apresenta a limitação orçamental existente para a consulta prévia (€74.999+IVA), o que leva a que nem todas as empresas tenham interesse em apresentar-se a concurso para a estrutura atual do Arraial, num período em que há muitos outros eventos e cujas condicionantes são menores e poderão oferecer maior rentabilidade.”

Recorde-se que em 2022, São Vicente foi uma das três juntas (com Santa Maria Maior e Misericórdia) que foram alvo de buscas da PJ por suspeitas de “crimes de recebimento indevido de vantagem, corrupção e participação económica em negócio” em contratos de consultoria. EMEL, Gebalis e Assembleia Municipal de Lisboa também são suspeitas.

Defesa esconde conteúdo da assessoria de cinco dias contratada por €61 mil a secretário de Estado.

Não é um comportamento criminoso?

Expresso

"Ministério de Helena Carreiras não revela nem detalha que tipo de trabalho foi realizado por Marco Capitão Ferreira — secretário de Estado da Defesa desde Março de 2022 — para este ter recebido o equivalente a €12 mil por dia, ao longo de cinco dias, no âmbito de um contracto de assessoria que assinou com a Direcção-Geral de Recursos de Defesa Nacional (DGRDN) há quatro anos. O contracto, que antevia um pagamento total de €61 mil (incluindo IVA), tem data de 25 de Março de 2019 e previa um prazo de execução de 60 dias (o que daria cerca de €1000 diários), mas durou apenas uma semana, cessando a 29 de Março do mesmo ano, com o pagamento integral daquele montante ao futuro membro do Governo.

Segundo o objecto desse contracto com a DGRDN — assinado pelo então director-geral Alberto Coelho, hoje um dos arguidos por alegada corrupção no processo Tempestade Perfeita —, a assessoria de Capitão Ferreira implicava “a elaboração de pareceres e outros trabalhos especializados no âmbito da Lei de Programação Militar (LPM), bem como integrar e apoiar as equipas de negociação e elaborar notas de suporte ao processo decisório” no âmbito dos contractos de manutenção dos helicópteros EH-101, de busca e salvamento. No entanto, questionado pelo Expresso sobre que “pareceres e outros trabalhos especializados” foram entregues e em que data por Capitão Ferreira, que equipas de negociação integrou e em que reuniões participou, o gabinete da ministra da Defesa não respondeu. A governante também não respondeu à questão sobre se “já avaliou os trabalhos feitos no âmbito deste contracto” e se acha esta “uma situação recomendável”.

A resposta enviada pela Defesa ao Expresso vem da parte do secretário de Estado, e não da ministra: “O objecto principal do contracto era acompanhamento e assessoria à equipa de negociação dos contractos relativos aos EH-101”, tendo Capitão Ferreira “contribuído para o desenvolvimento de diversas peças”. Mas não especifica os contributos nem deu acesso a essas peças, como o Expresso solicitou. “Essa negociação cessou com o envio do processo, pela DGRDN, para visto prévio do Tribunal de Contas nos termos da lei em vigor, a 29 de Março de 2019”, explica o secretário de Estado. A resposta é idêntica à enviada ao “Correio da Manhã”, que deu a notícia há uma semana, o que motivou um requerimento da IL a pedir “todos os relatórios, pareceres e outros documentos decorrentes do trabalho realizado”, bem como a “cópia da autorização de pagamento e troca de correspondência relevante entre a DGRDN e Capitão Ferreira”.

RISCO DE ILEGALIDADE

O fim do contracto, porém, não cessou a relação de Capitão Ferreira com o dossiê a que prestara assessoria: a 29 de Abril de 2019, um mês depois de o contracto com a DGRDN ter acabado, o jurista foi nomeado pelo então ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, como presidente da Comissão Liquidatária da Empordef, a empresa que detinha as participações das empresas da Defesa. No âmbito dessas funções, o jurista passava a ter responsabilidades directas sobre a renegociação dos contractos de manutenção dos helicópteros EH-101, que eram da responsabilidade da Defloc, uma das empresas que Capitão Ferreira tinha como função liquidar.

Prova disso são dois despachos de Gomes Cravinho, com data de 10 de Outubro de 2019: um revoga o contracto de manutenção dos EH-101 com a Defloc, que era a empresa veículo para pagar o leasing e a manutenção das aeronaves; o outro, com a mesma data, inicia os procedimentos para um contracto de manutenção dos motores. Capitão Ferreira é um dos três destinatários desses despachos, por agora ter responsabilidades directas na área em que prestara assessoria.

“Julgo que algo não está a ser contado com verdade”, avalia ao Expresso o advogado Paulo Saragoça da Matta, especialista em direito administrativo. Para o jurista, o “acompanhamento e assessoria de cinco dias não faria sentido, pois na data da assinatura do contracto já tinha de ‘estar à vista’ o seu termo quase imediato”. Uma possibilidade é o trabalho ter sido feito antes do contracto, o que é ilegal: “Em alternativa”, especula o advogado “a assessoria foi prestada durante todo o processo, mas só formalizada junto ao final, uma prática não desejada pela lei, mas, infelizmente, muito comum na Administração Pública, sempre pouco ágil na formalização atempada dos procedimentos”.

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Os verdadeiros interesses instalados de um país na Ordem.

Portugal é um país pequeno e as Ordens encolhem-no mais. O seu poder não tem paralelo na Europa. Onde o sindicalismo defende os direitos dos trabalhadores perante o poder do patrão, as Ordens defendem os associados perante a chegada de novos colegas. “Reforma estrutural” tem sido tirar poder aos mais fracos. Para os “interesses instalados” nunca sobram forças. Seria bom que fosse desta

Portugal é um país pequeno. As ordens profissionais encolhem-no ainda mais. O corporativismo é sintoma e causa do nosso atraso. O seu poder, sem paralelo na Europa, é um entrave à mobilidade social e condiciona o acesso a profissões relevantes. Partindo do poder que lhes era delegado pelo Estado, de autorregulação de actividades liberais, foram crescendo em número e ambição política, tomando conta de poderes de fiscalização do Estado e funções sindicais que nunca foram as suas. Onde o sindicalismo clássico defende os direitos dos trabalhadores perante a relação assimétrica com o patronato, as Ordens defendem os seus associados perante a pressão de novos colegas.

Veja-se a força exercida pela Ordem dos Médicos, nos anos 80 e 90 do século passado, para limitar as vagas nos cursos de medicina. À medida que o país foi massificando o acesso ao ensino superior, a Ordem pressionava o poder político para seguir em contraciclo. Em 1986, com Cavaco Silva (começou a cair no início dos anos 80), entraram apenas 160 estudantes em todas as faculdades de medicina do país, 20% dos cerca de 800 dos anos 70. Só na viragem do século, uma década e meia depois do país ter aderido à União Europeia, voltámos a formar o mesmo número de médicos dos últimos anos do Estado Novo.

Estamos a pagar o preço dessa escolha agora, quando nos encontramos na cova da curva e temos uma geração de médicos especialistas à beira da reforma. A situação melhorará, só não sabemos se a tempo de salvar o SNS. A decisão foi do poder político, mas, sem a pressão da Ordem, que desejava reduzir a oferta para aumentar o seu valor, isto dificilmente teria acontecido.

A forma desproporcionada como várias Ordens têm reagido à proposta do Governo para alterar o estatuto de doze, debitando informação não corresponde ao que é proposto, nada tem a ver com a regulação das profissões. É uma luta por poder. A Ordem dos Advogados, mais contundente nas críticas, tem-se centrado nos estágios remunerados e na abertura da consultoria jurídica a licenciados em Direito não inscritos na Ordem.

O trabalho deve ser remunerado e os estágios profissionais, ainda mais quando duram 18 meses, são trabalho. Sei o que aconteceu ao jornalismo quando começou a usar e abusar da presença de estagiários não remunerados. Em estágios de ano e meio, como é o caso da advocacia, os jovens licenciados assumem uma parte significativa do trabalho menos nobre, mas ainda assim indispensável. Um ano e meio sem receber, mas que é indispensável para o acesso à Ordem e à profissão, é uma poderosa forma de selecção social ao exercício da advocacia.

Diz a Ordem dos Advogados que há muitos patronos que não podem pagar os 950 euros propostos pelo Governo e que esta medida foi feita a pensar nos grandes escritórios de Lisboa. Que para a maioria dos advogados em nome individual ou em pequenos escritórios a presença de um estagiário é um acto de formação que aceitam com prejuízo individual. Tendo de pagar vão desistir de os receber. Para garantir que o estágio não fica circunscrito a quem tem contactos em grandes escritórios, talvez se tenha de encontrar uma solução para pagar 25% acima do salário mínimo a quem tem cinco anos de formação numa Faculdade de Direito, mas não deixa de ser curioso ser a mesma Ordem dos Advogados que nos apresenta os estagiários como um acto caritativo dos patronos a criticar a sua redução de 18 para 12 meses.

A segunda frente da Ordem dos Advogados é contra a abertura das consultas jurídicas a licenciados em Direito, sem que precisem de pertencer à Ordem dos Advogados. Como sempre, a “qualidade” da formação é o engodo para a restrição à concorrência. A formação de jurista é feita pelas Faculdades, não pela Ordem, como se pode ver ao olhar para o perfil da sua formação muito mais centrada no Direito processual. Manter este monopólio absurdo é manter o poder de selecção da Ordem e assim restringir o acesso às melhores remunerações.

Não é por acaso que uma das medidas propostas pelo Governo é a presença de membros exteriores à Ordem na avaliação final do estágio. O número absurdo de chumbos nos exames de acesso à Ordem, sem qualquer relação com o que se passa nas faculdades, prova que o condicionamento do número de profissionais habilitados a exercer e assinar é o propósito deste tipo de entraves.

A crise do sindicalismo tem alimentado o crescimento exponencial das ordens profissionais. Vamos em dezoito, fazendo do nosso país um caso único na Europa, em actividades cada vez menos liberais e mais dependentes da negociação com o Estado. Não é por acaso. É aí, muitas vezes exercendo a força negocial de terem o capacidade de definirem as regras de acesso e de exercício da profissão, que o seu poder fica mais evidente.

A Ordem dos Advogados não é caso único. Trinta anos depois do disparate do numerus clausus, a Ordem dos Médicos consegue, na prática, controlar o acesso às especialidades. Pior, de forma ilegal (no entender do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República), é quem define a constituição de equipas médicas nos serviços de urgência, levantando exigências no sector público que nada têm a ver com as do privado. Com a conivência de quase todos, as ordens profissionais tornaram-se um Estado dentro do Estado, contribuindo para uma posição concorrencialmente desfavorável do Estado face aos privados.

Não deixa de ser sintomático que o governo de Passos Coelho, tão lesto a retirar direitos laborais e a cortar apoios sociais por imposição da troika, tenha deixado na gaveta as recomendações para aumentar a concorrência em atividades fechadas pelos entraves criados pelas ordens profissionais. “Reformas estruturais” nunca foram mais do que o nome de código para tirar poder aos mais fracos, flexibilizando leis laborais e reduzindo direitos sociais. Para os verdadeiros “interesses instalados”, nunca sobram forças para mudar seja o que for.

Daniel Oliveira

Expresso

quinta-feira, 22 de junho de 2023

A tese de Boaventura é uma treta. Não é uma questão de gerações. É uma questão de poder e de carácter

Se BSS fosse um simpatizante do PSD ou do CDS, já teria sido despedido, processado, e quem sabe o que mais o PCP e o BE lhe teria feito ou pedido para fazer! Os jornais afectos e as TV’s do regime então

Quando as primeiras notícias sobre o assédio no Centro de Estudos Sociais surgiram, Boaventura de Sousa Santos ameaçou as queixosas com processos judiciais e declarou-se vítima de uma acusação “vergonhosa e vil”.


Escreveu inclusivamente um artigo intitulado Diário de uma Difamação, onde falava em “assassinato de carácter” por parte de Ex-alunas que confundiam (com “perversidade”) aquilo que era “uma convivência no mais puro espírito académico” com “manipulações de consciência” e “rituais de Fidelidade”.
Passado mês e meio, eis que surge no Expresso um novo Boaventura, agora em modo contrito e lamentoso, no artigo Uma reflexão autocrítica: um compromisso para o futuro. Sousa Santos deixa claro que não se trata de admitir “a prática de actos graves que me têm vindo a ser imputados” — esses, continua a negá-los —, mas sim de assumir que se trata de um senhor idoso, “nascido em 1940”, e que, por isso, pertence a “uma geração em que comportamentos inapropriados, se não mesmo machistas, eram aceites pela sociedade”.
Porque é velhinho, Boaventura de Sousa Santos admite que “em determinados momentos” ele possa “ter sido protagonista de alguns desses comportamentos”, pois não é fácil, nem para um “intelectual” tão vanguardista, escapar aos “modos de dominação moderna”, entre os quais o “heteropatriarcado”. Felizmente, Boaventura promete, a partir de agora, “ser cada vez mais vigilante”, não só ao nível “epistemológico”, mas também na “prática, emocional e interpessoal”, de forma a evitar “gerar opressão em qualquer eixo de dominação”.
Ora, tendo em conta que eu me senti deveras oprimido pelo seu artigo naquele eixo em que a decência domina, é bom começar por sublinhar um facto muito básico: o assédio sexual não era uma actividade aceitável em 1940.
Nem em 1840. Nem em 1740. Os homens abusadores poderiam ter a sua vida mais facilitada, mas é errado hoje como era errado há 300 anos. O heteropatriarcado tem as costas largas. E o assédio sexual é um derivado do abuso de poder, que é o problema central dos Boaventuras de Sousas Santos deste mundo — gente com o ego insufladíssimo que cria uma corte de aduladores e que, do alto dos seus altares, não consegue controlar os impulsos típicos de macho alfa. Leiam o que Naomi Wolf escreveu sobre o professor Harold Bloom em 2004. É exactamente a mesma história do CES e de Boaventura, só que em Yale.
Embrulhar isto numa conversa geracional desculpabilizadora, apontando o dedo a um qualquer
machismo estrutural, é patético.
Convém defender a honra dos velhinhos nascidos em 1940, ou até há mais tempo. Um senhor de 83 anos pode participar menos nas tarefas domésticas do que um de
33, e pode pedir mais vezes à esposa para ir buscar uma cerveja ao frigorifico enquanto vê a bola – mas não, não há qualquer razão para assediar com mais entusiasmo uma jovem mulher. A tese de Boaventura é uma treta. Não é uma questão de gerações. É uma questão de poder e de carácter.
A ideia de que isto é um hábito de pessoas idosas com “comportamentos inapropriados”
é mentirosa e é perigosa. Numa instituição profundamente endogâmica como é o caso da universidade portuguesa, cheia de gente em situação precária e com senhores professores doutores todo-poderosos, não há milagres.
Onde há excesso de poder há abusos, e onde há abusos há assédio, seja ele sexual ou laboral.
O problema de Boaventura não é ser velho — é ser o guru de uma seita que durante décadas esteve à sua inteira disposição.

SERGIO AZENHA

O melhor amigo do vinho é o vinho barato

Miguel Esteves Cardoso

Publico

O vinho, que todos dizem estar barato de mais, já está caro que chegue. Já está caro que chegue para quem tem pouco dinheiro. E é quem tem pouco dinheiro que mais precisa de beber vinho.

O vinho tem de ser barato. Em Portugal o vinho tem de ser barato. O vinho em Portugal tem de ser barato para não ser um luxo.

Como os adolescentes, por exemplo. O grande inimigo do vinho é a cerveja. O grande inimigo do vinho é não beber álcool. O grande inimigo do vinho é a imagem do vinho como produto de luxo, para as horas livres de quem está bem na vida.
Esses têm —​ nós temos — bom remédio. Compramos vinho melhor. Temos mais dinheiro. De resto, fica mal a quem jamais beberia o vinho mais barato queixar-se que está barato de mais.
Mas é o que acontece.
O vinho ainda faz parte da nossa cultura. Na cultura não há bom nem mau: são os hábitos enraizados de uma comunidade, que se distingue das demais comunidades precisamente pelos hábitos enraizados que pratica.
Esses hábitos incluem a língua e, por enquanto, ainda incluem o vinho. É o vinho como hábito quotidiano, tão quotidiano como o pão. Não é o vinho nas culturas nórdicas, em que o vinho é uma recompensa exótica, uma maneira de nos embebedarmos e de parecermos mais finos do que os cervejistas.
Portugal é um país de uvas e num país de uvas o vinho é banal. É a banalidade do vinho que é preciso defender. É a banalidade que o torna cultural. Em vez de estar sempre a arranjar maneiras de tornar o vinho mais caro, deveríamos era arranjar novas maneiras de banalizá-lo.
O vinho, como todas as coisas, tanto pode ser bom como mau. O mau tende a ser muito mais barato mas, assim como é fácil arranjar vinho caro que não presta para nada, também não é difícil arranjar vinho barato que se beba com gosto.
Um euro por litro é um belo ponto de partida.
Sobretudo quando se tem pouco dinheiro. Mas são as pessoas com pouco dinheiro que definem a base de uma cultura. A questão básica — e são escusados os bailados que se coreografam e se dançam à volta dela — é só uma: qual é a maneira mais barata de me embebedar?
A quantos cêntimos sai cada unidade de álcool? Ou seja, a quanto é que estou a pagar a água? Neste aspecto, atendendo às uvas e à trabalheira que dão, é óbvio que é a cerveja que é relativamente cara e o vinho relativamente barato. Assim se tem de manter a relação, sob pena de nos tornarmos todos alemães.
E quanto é que me vai custar no dia seguinte? Esta questão só raramente conduz à embriaguez mas, para que não conduza, é preciso aprender a beber.
E como é que se aprende a beber vinho? A beber à mesa, sob o olhar carinhoso dos pais? Está bem, está. Aprende-se a beber vinho quando se é adolescente. Aprende-se a beber vinho bebendo vinho quando não se deve.
As primeiras ressacas, tão terríveis que só um masoquista aceitaria repeti-las, fazem parte da aprendizagem. Constituem a memória dolorosa que leva ao "nunca mais!"
É evitando a embriaguez que se aprende a beber vinho. O vinho não é fácil de beber e digerir e incorporar. O vinho é perigoso porque escorrega bem e está cheio de álcool. É mesmo preciso aprender a beber vinho. E, para aprender, é preciso fazer asneiras. E, para fazer asneiras, o vinho tem de ser acessível: tem de ser barato, e tem de estar em toda a parte.
Outra vantagem do vinho barato mas não muito bom, é puxar pela imaginação dos jovens. Como é que se trabalha com tantos taninos? Como é que faço para poder beber toda a noite? Como é que transformo um vinho rasca numa bebida deliciosa?


Eis a minha contribuição:
Sangria dos Quarenta
A Sangria dos Quarenta custa 40 euros e dá para 40 litros. Se cada adolescente só beber um litro ao longo da noite, até dá para 40 pessoas.
20 litros de tinto (20 euros), 17,5 litros de Sumol de laranja (17,5 euros) e 2,5 quilos de laranjas e limões.
Só falta o gelo. O gelo é essencial para refrescar e fazer render. É o primeiro princípio coqueteleiro: pode-se poupar em tudo, excepto no gelo.
Na versão de luxo, podem juntar-se umas garrafas de Vinho do Porto (o quinado da Ramos Pinto, por exemplo) ou de Moscatel.
A combinação de tinto com Sumol de laranja é extraordinariamente deliciosa. Mas também se podem usar outros refrigerantes. A clássica é a mais barata de todas: a gasosa de marca branca. O litro de gasosa sai a 35 cêntimos, enquanto a Sumol, a Seven-Up e a Fanta saem a 85-90 cêntimos por litro.
A melhor maneira de servir a sangria é fazer o caldo de véspera. O vinho e os citrinos ficam a fermentar com a ajuda de duas colheres de açúcar. No dia da festa, cada um serve-se do caldo e gelo e junta o refrigerante que preferir, na quantidade que prefere.
A sangria branca, para mim, é melhor com Seven-Up, pêssegos e maçãs. Mas o princípio é o mesmo.
Um raminho de hortelã fica sempre bem. Pois se é de cultura que estamos a falar, a hortelã não pode faltar.

quarta-feira, 14 de junho de 2023

O precursor que continua a lutar para mudar a Escola Pública

“Nos últimos anos nem regredimos nem avançámos.

Estamos na mesma, infelizmente”,

constata José Pacheco.


JOSÉ PACHECO “Temos alunos do século XXI, professores do século XX, a trabalhar como no séc. XIX”, lamenta o docente que revolucionou o ensino na Ponte.

Aos 72 anos, o professor que revolucionou a escola, no final da década de 1970, a partir da aldeia de São Tomé de Negrelos (Santo Tirso) e que há 20 anos mora no Brasil, continua a lutar todos os dias para mudar o mundo – e a Escola Pública. Porque é nela que continua a acreditar, e onde crê que é possível fazer a mudança. Na Escola da Ponte, deixou sementes que germinaram, replicando-se em várias zonas do país: não há salas de aula (no sentido tradicional), mas sim espaços de trabalho, onde são disponibilizados diversos recursos, como livros, dicionários, gramáticas, internet, vídeos e várias fontes de conhecimento.
Foram os investigadores brasileiros – como Rubem Alves – que o descobriram, há duas décadas, “levando-o” para o país-irmão. Mas José Pacheco continua a regressar a Portugal, amiúde, sem desistir de uma escola que teima em permanecer formatada. Até final de Junho está em Portugal, em palestras e encontros com pais, professores e autarcas. Foi no final de um desses momentos que falou ao DN.

Incómodo por natureza, não deixa de questionar, sempre e muito:
Porque é que há ano lectivo? Porque é que há sala de aula? Porque é que a aula tem 50 minutos? Porque é que todos entram ao mesmo tempo? Porque é que a casa de banho do aluno não é a mesma que a do professor? Porque é que todos têm que fazer xixi ao mesmo tempo? Se me responderem eu calo-me para sempre”. Como as respostas não chegam, José Pacheco continua a fazer perguntas.
Às vezes quando chego às escolas encontro antigos alunos da faculdade. Agora têm 50 anos e fazem aquilo que sempre quiseram fazer mas não os deixaram. Eu considero que este é um momento único. Se nós não aproveitarmos o [ministro]João Costa e o António Leite, se não os deixarem fazer aquilo que eles podem e devem fazer, perdemos a oportunidade de Portugal mostrar ao mundo uma nova educação, em que todos aprendem. É isso que a Ponte tem de diferente: todos aprendem, lá.
Eu gostaria que todos aprendessem em todo o la
do”.
Mas os dias que passa em contactos com as comunidades de aprendizagem em crescimento deixam-no perceber a vontade de mudança que cresce. “As famílias que estão atentas a um sistema obsoleto que não ensina - apesar de ter excelentes profissionais - que se afastem do HomeSchooling e matriculem as crianças na escola pública mais próxima. Vão lá, procurem um professor que ainda não tenha morrido e, com ele e com o director do agrupamento, façam uma turma-piloto”, aconselha.
Nesses círculos de aprendizagem “o currículo não é consumido, é produzido, através da pesquisa, da tutoria, acordos de convivência que levam a que não haja problemas de disciplina”, explica José Pacheco, aludindo, em contraponto, aos regulamentos que estabelecem castigos e punições. “É preciso que a comunidade se desenvolva sustentavelmente. Se não for por aí, pelo menos que aquelas famílias que estão atentas ao drama se organizem e constituam aquilo que eu chamo círculo de aprendizagem de vizinhança. O outro é de proximidade”. A par de Leiria, haverá pólos nas regiões de Montemor-o-Novo, Quarteira e Foz Côa.
“Isto vai acontecer, quer queiram  quer não. E é fundamentado na lei e nas ciências da educação, com professores que vale a pena ter como companheiros de profissão”, sublinha.
Uma escola parada no tempo “Nos últimos anos nem regredimos nem avançámos. Estamos na mesma, infelizmente”, considera José Pacheco, sempre de olho na formação de professores, que considera “miserável”. “E eu posso falar à vontade porque sou o maior responsável por isso, pois criei o primeiro Centro de Formação, em 1992. Pensa-se que o professor não sabe, por exemplo alfabetizar, que é incapaz, e vai-se dar capacitação
O professor tem que ser considerado não como objecto de formação, mas como sujeito em auto-formação, numa comunidade e com um projecto”, sustenta.
Pacheco acredita que a mudança tarda “porque a opinião pública entende que a escola tem de ser como sempre foi”. Mas é também um crítico das mudanças operadas nos últimos anos, através da autonomia dos agrupamentos,que, na sua opinião, deveria ser usada noutro sentido. “ Fez-se a maior asneira: passar do trimestre para semestre. E eu pergunto: porque é que não é para quadrimestre? Ou para bimestre? Isso é ridículo!”. Tanto quanto a existência de ano lectivo. “Eu pergunto: porque é que há ano lectivo? Não se sabe. Ou melhor, sabe-se, vem da primeira revolução industrial a partir do momento em que se instituiu o tempo-padrão. E é aí que estamos presos: temos alunos do século XXI, professores do século XX, a trabalhar como no século XIX.
Agora com computadores.

DN 13-06-2023

terça-feira, 13 de junho de 2023

Causas da morte dos Reis Portugueses

Curiosidade e, porque não, conhecimento!

"Entre os 34 reis que ocuparam o trono português, apenas  um  atingiu e excedeu os 80 anos de idade: a rainha reinante, D. Maria I;

somente outros três atingiram e excederam os 70 anos: D. Afonso I, D João I e Filipe II de Espanha.


1ª Dinastia

- D. Afonso Henriques, senilidade,  morre com 76 anos, encontra-se sepultado na Igreja de St.ª Cruz de Coimbra;

- D. Sancho I, lepra (?), morre com 57 anos, encontra-se sepultado na Igreja de St.ª Cruz de Coimbra;

- D. Afonso II, lepra, morre com 38 anos, encontra-se sepultado no Mosteiro de Alcobaça;

- D. Sancho II, lepra (?), morre com 45 anos, encontra-se sepultado na Catedral de Toledo;

- D. Afonso III, reumatismo, morre com 69 anos, encontra-se sepultado no Mosteiro de Alcobaça;

- D. Dinis, (?), morre com 64 anos, encontra-se sepultado no Mosteiro de Odivelas;

- D. Afonso IV, (?), morre com 67 anos, encontra-se sepultado na Sé de Lisboa;

- D. Pedro I, epilepsia, morre com 47 anos, encontra-se sepultado no Mosteiro de Alcobaça;

- D. Fernando, tuberculose, morre com 38 anos, encontra-se sepultado na Igreja de S. Francisco de Santarém.

(média dinástica de vida 56 anos).


2ª Dinastia:

- D. João I, senilidade, morre com 76 anos, encontra-se sepultado no Mosteiro da Batalha;

- D. Duarte, peste, morre com 47 anos, encontra-se sepultado no Mosteiro da Batalha;

- D. Afonso V, psiconeurose, morre com 49 anos, encontra-se sepultado no Mosteiro da Batalha;

- D. João II, nefrite, morre com 40 anos, encontra-se sepultado no Mosteiro da Batalha;

- D. Manuel I, peste, morre com 52 anos, encontra-se sepultado no Mosteiro dos Jerónimos;

- D. João III, trombose cerebral, morre com 55 anos, encontra-se sepultado no Mosteiro dos Jerónimos;

- D. Sebastião, morte violenta, morre com 24 anos, encontra-se sepultado no Mosteiro dos Jerónimos;

“Ficou tal túmulo no transepto da Igreja dos Jerónimos, do lado da Epístola, onde se vê ainda hoje (…)”.

“ Que o sebastianismo se instaurasse como uma espécie de religião patriótica, enquanto durou o cativeiro espanhol, compreende-se.

Mas que ele se mantenha durante quatro séculos, aguardando-se a manhã de nevoeiro em que o infeliz monarca há-de surgir,

isto é que já custa a compreender”.

“Desde o milagre de Ourique (…) e o envenenamento de todos os filhos do infante D.Pedro até ao carácter intriguista e maldoso do

1º Duque de Bragança, o qual “com certeira seta matou o seu irmão, D. Pedro”, em Alfarrobeira; desde o feitio justiceiro do sanguinário D. Pedro I

até à ineficácia das vastas reformas pombalinas, a nossa História anda cheia de lendas e de especulações, que cumpre eliminar.”

- D. Henrique, tuberculose, morre com 68 anos, encontra-se sepultado no Mosteiro dos Jerónimos.

(média dinástica de vida 51 anos).


3ª Dinastia:

reis castelhanos

- Filipe II, gota, morre com 71 anos, encontra-se sepultado no Panteão do Escorial;

- Filipe III, erisipela, morre com 43 anos, encontra-se sepultado no Panteão do Escorial;

- Filipe IV, neurastenia, morre com 60 anos, encontra-se sepultado no Panteão do Escorial.

(média dinástica de vida 58 anos).


4ª Dinastia:

- D. João IV, litíase vesical, morre com 52 anos, encontra-se sepultado no Panteão de S. Vicente de Fora;

- D. Afonso VI, tuberculose, morre com 40 anos, encontra-se sepultado no Panteão de S. Vicente de Fora;

- D. Pedro II, Tuberculose? Sífilis? *, morre com 58 anos, encontra-se sepultado no Panteão de S. Vicente de Fora;

- D. João V, epilepsia, morre com 61 anos, encontra-se sepultado no Panteão de S. Vicente de Fora;

- D. José, trombose cerebral, morre com 63 anos, encontra-se sepultado no Panteão de S. Vicente de Fora;

- D. Maria I, psicopatia, morre com 82 anos, encontra-se sepultada na Basílica da Estrela;

- D. João VI, envenenado, de acordo com recentes investigações (ano de 2000)  realizadas  por especialistas às vísceras do rei*,  

  morre com 59 anos, encontra-se sepultado no Panteão de S. Vicente de Fora;

- D. Pedro IV, tuberculose, morre com 36 anos, encontra-se sepultado na Catedral de Petrópolis, Brasil;

- D. Miguel, edema pulmonar? enfarte do miocárdio?*, morre com 64 anos, encontra-se sepultado no Panteão de S. Vicente de Fora;

- D. Maria II, parto distócico, morre com 34 anos, encontra-se sepultada no Panteão de S. Vicente de Fora;

- D. Pedro V, febre tifóide, morre com 24 anos, encontra-se sepultado no Panteão de S. Vicente de Fora;

- D Luís, neurosífilis*, morre com 51 anos, encontra-se sepultado no Panteão de S. Vicente de Fora;

- D. Carlos, morte violenta, morre com 45 anos, encontra-se sepultado no Panteão de S. Vicente de Fora;

- D. Manuel II, edema da laringe, morre com 43 anos; encontra-se sepultado no Panteão de S. Vicente de Fora.

(média dinástica de vida 51 anos).


(ref.  “Causas de Morte dos Reis Portugueses”, J.T.Montalvão Machado)

* In  “A Doença e a Morte dos Reis e Raínhas da Dinastia de Bragança” - José Barata.

sábado, 10 de junho de 2023

Investigação. O logro do “Silicon Valley” de Idanha-a-Nova.

Desde 2020, o PÚBLICO tentou encontrar os frutos de uma elogiada estratégia de revitalização do interior. A conclusão é: muita propaganda, muito dinheiro gasto, poucos resultados e muito por explicar.

José António Cerejo

Quem é que nunca ouviu falar em Idanha-a-Nova como a terra dos “novos rurais”, do regresso ao campo, do "Não emigres – migra para Idanha!", do Recomeçar em Idanha, do Idanha Green Valley, do i-Danha Food Lab, dos japoneses que viriam de Fukushima, da capital da agricultura biológica, da primeira biorregião do país, do exemplo maior da luta contra o despovoamento, do empreendedorismo, da “terra de oportunidades”, do paraíso dos jovens agricultores e muitas outras coisas fantásticas?

Tudo isso foi prometido e anunciado em centenas de notícias e reportagens em jornais, rádios, canais de televisão e redes sociais. Acontece que agora quase tudo isso é desmentido pela dura realidade que se esconde por trás da propaganda. E tudo isso é negado pela estagnação que se respira naquele concelho do distrito de Castelo Branco e pelo desalento de quem foi levado por promessas ilusórias.

Para dar corpo à narrativa do “primeiro Silicon Valley verde no mundo”, desenvolvida sobretudo a partir de 2014, a Câmara de Idanha-a-Nova apostou numa bem-sucedida e dispendiosa estratégia promocional que só em planos, estudos e acções de marketing lhe custou para cima de 700 mil euros, sem contar com os quase 300 mil despendidos indirectamente, através do Centro Municipal de Cultura e Desenvolvimento (CMCD) — uma associação que financia e controla. E em obras relacionadas com aquele que se tornou o projecto mais emblemático desta operação — a Incubadora de Empresas de Base Rural (IBR) — gastou cerca de 1,7 milhões de euros. A que se juntam vários milhões de euros canalizados pelos fundos europeus e pelo Estado para os projectos públicos e privados que para ali foram aprovados.

Uma “estratégia de marca”
Para conferir visibilidade mediática à política desenhada pela Bloom Consulting — uma empresa especializada na chamada “estratégia de marca”, com base em Madrid, à qual já pagou pelo menos 140 mil euros —, investiu em comunicação e imagem perto de 300 mil euros. Nesse período, aliás, boa parte da despesa da autarquia em comunicação foi feita com sucessivas contratações de uma empresa de que é gerente um jornalista da imprensa local, João Carrega — que actualmente preside ao Conselho Geral da Universidade de Évora —, em completa violação do seu estatuto profissional.

As contas foram feitas apenas com base nos contratos publicados no portal Base.gov e relacionáveis com a estratégia prosseguida, sem falar em viagens, festas, conferências, feiras nacionais e internacionais, e outras iniciativas igualmente destinadas a garantir a notoriedade do município.

Quanto aos resultados desta política, referindo-se apenas à IBR, o presidente da câmara, Armindo Jacinto — que começa a ser julgado no próximo dia 20, em Castelo Branco, pelo crime de peculato, por utilizar veículos do município para participar em reuniões partidárias —, já dizia no Verão de 2018 que o investimento privado para ali canalizado ascendia a 10 milhões de euros. Nessa altura, em diversas ocasiões e até em candidaturas a fundos europeus, garantiu também que já ali tinham sido criadas 55 empresas e 350 postos de trabalho directos.

Mais recentemente, numa resposta escrita enviada ao PÚBLICO em Setembro de 2021, o autarca socialista refez as contas, sem falar no investimento, e garantiu que na IBR estão instaladas 41 empresas e empresários em nome individual e que se estima terem sido lá criados “cerca de 500 postos de trabalho directos e indirectos, muitos dos quais em regime de permanência”.

Igualmente optimista mostra-se a Bloom Consulting em cujo site se lê, num documento intitulado “Como uma estratégia de marca trouxe talento e negócios a Idanha-a-Nova”, presumivelmente redigido em 2019, que desde 2014 a sua estratégia permitiu captar 312 empregos e investir 29 milhões de euros. No mesmo texto, e numa perspectiva não menos entusiástica, consta também que em 2019 havia já “cerca de 348 entidades” cujos projectos estavam “em curso ou em ponderação de posicionamento no programa Idanha Green Valley”, uma das peças-chave da solução que vendeu ao município.

Noutro documento não datado, igualmente disponível naquele site, diz-se que graças aos programas Recomeçar havia já “mais de 1000 indivíduos e 300 projectos empresariais a manifestar o desejo real de se mudarem para Idanha-a-Nova”. O PÚBLICO não conseguiu apurar se nesta contabilidade entravam também os camponeses de Fukushima, vítimas do desastre nuclear que atingiu aquela zona do Japão em 2011 e que, segundo foi amplamente noticiado, viriam instalar-se em Idanha — mas não vieram, apesar de o presidente da câmara se ter deslocado ao Japão em 2012 e ter “vendido” a próxima chegada dos japoneses como um trunfo da sua candidatura nas eleições de 2013.

Numa avaliação transmitida ao PÚBLICO em Setembro de 2021 (depois disso não se pronunciou), Armindo Jacinto afirma que o objectivo da criação da IBR foi alcançado “e mesmo superado”. Objectivo esse que não era propriamente modesto, tal como o dos restantes programas e projectos integrados na proposta Recomeçar em Idanha. Isso mesmo se deduz da proclamação ainda hoje patente no site municipal recomecar.pt: “Os empreendedores de cá e de fora ficarão entusiasmados com o programa Idanha Green Valley, em que poderão contribuir para um monumento empresarial histórico: o primeiro Silicon Valley verde no mundo.”

Recomeçar em Idanha-a-Nova Graças ao Campo é precisamente a componente mais destacada da estratégia de marketing territorial criada pela Bloom Consulting para vigorar até 2025. Nesse conceito avulta o programa Idanha Green Valley, consagrado em grande parte aos cerca de 550 hectares, muitos deles irrigados, da Herdade do Couto da Várzea, uma propriedade do Estado arrendada ao município em 2011 para que este aí instalasse a IBR, subarrendando as terras a novos agricultores, preferencialmente jovens.

Como objectivo principal, o programa visa o “reconhecimento global da marca de Idanha-a-Nova enquanto um Silicon Valley verde”, fazendo da vila “o centro mundial da ruralidade inovadora”. Para o conseguir, o município prevê desde o início “a criação de um plano de apoio aos empreendedores e a criação de fundos para estimular o investimento e a fixação de talento”. Conforme se lê no site recomeçar.pt desde há vários anos, as acções propostas são enquadradas em “seis projectos estruturantes” com nomes como PICR (Projecto Inovador Conhecimento Rural), PEGV (Projecto Estratégico Green Valley), PEAE (Projecto Estratégico Apoio Empreendedor), ou PEFR (Projecto Estratégico Fórum Rural).

Para lá do Idanha Green Valley, a estratégia Recomeçar em Idanha compreende os programas Idanha Vive, Idanha Experimenta e Idanha Made In, todos eles repletos de promessas de facilidades destinadas a “fixar talentos”. No conjunto destes quatro programas, escreve a Bloom Consulting na página do seu site já referida, foram criados “27 projectos, todos operacionais e já a dar frutos”.

Da ficção à realidade
A observação da realidade actual do território, em particular do que se passa no Couto da Várzea, a contínua perda de população do concelho e os testemunhos recolhidos pelo PÚBLICO desmentem todavia a euforia do autarca e os excessos da propaganda municipal.

O apuramento rigoroso dos resultados do investimento feito, sobretudo público, está por fazer e está longe de ser do interesse da autarquia. É pelo menos o que se pode concluir dos obstáculos que Armindo Jacinto levantou, desde Agosto de 2020, à realização deste trabalho do PÚBLICO, mesmo depois de a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco e a Entidade Reguladora para a Comunicação Social o terem sucessivamente condenado por violação do direito de acesso à informação. A despeito disso, em quase três anos, nunca respondeu a muitas perguntas que lhe foram dirigidas e a outras deu respostas que fazem tábua rasa de todas as evidências.

Os números do Instituto Nacional de Estatística (INE) e os dados obtidos junto de outras fontes permitem todavia aproximarmo-nos da realidade. Assim, desde logo, em vez da apregoada “inversão da curva demográfica” — qualificada pelo marketing municipal como “uma das maiores conquistas da nova Marca de Idanha”, que teria feito com que a população do concelho tivesse crescido pela primeira vez em 70 anos —, as estatísticas do INE mostram que de cerca de 9700 habitantes em 2011 a população do concelho caiu para cerca de 8400 em 2021.

E no lugar das 55 empresas e 350 postos de trabalho alegadamente criados só na IBR até 2018, o INE contabiliza a constituição em todo o concelho, que é o quarto mais extenso do país, entre 2011 (criação da IBR) e 2018, de 60 empresas e entidades equiparadas no sector da agricultura, produção animal, caça e florestas. No mesmo intervalo de tempo, foram dissolvidas 17, o que dá um saldo de 43, tendo-se registado um acréscimo de apenas 19 pessoas empregadas no sector.

Quanto aos 10 milhões de euros de origem privada que Armindo Jacinto garantia terem sido investidos na IBR naquele período, ignoram-se as fontes do autarca, que não as revela, mas o número em causa é desmentido pela própria Comissão de Avaliação, Acompanhamento e Supervisão da incubadora (CAAS) — entidade formada pelo município, pela Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Centro (DRAPC) e pelo Instituto Politécnico de Castelo Branco. De acordo com um documento elaborado por um dos membros desta comissão em Junho de 2016, numa altura em que a incubadora atingiu o maior número de agricultores, cerca de 50, o somatório dos investimentos aprovados ascendia a 5,7 milhões de euros. Contudo, a parcela deste total que provinha do auto-investimento ficava em 1,3 milhões, resultando o resto de ajudas públicas.

Outro indicador que dá uma ideia do impacte da IBR na economia local é a evolução do volume de negócios acumulado na totalidade dos “estabelecimentos” do sector agrícola instalados no município. Segundo o INE, registou-se nesse domínio um decréscimo de 17 milhões de euros para 15 milhões entre 2011 e 2018, com uma ligeira subida para 15,5 milhões em 2021.

Centro empresarial ou caixa de correio
Relativamente aos 29 milhões de euros que a Bloom Consulting diz terem sido captados pela sua estratégia, entre 2014 e 2019, o PÚBLICO questionou a empresa sobre a origem e significado deste dado, mas não obteve resposta. O mesmo aconteceu com outras perguntas concretas sobre os resultados da sua actuação em Idanha-a-Nova. Em vez das respostas prometidas, o responsável pela empresa em Portugal, Filipe Roquette, limitou-se a transmitir, depois de consultar a Câmara de Idanha, um conjunto de generalidades conhecidas sobre a estratégia proposta e sobre alguns dos seus alegados benefícios.

Em todo o caso, ainda de acordo com o INE, o volume de negócios acumulado em todos os sectores de actividade do concelho caiu de 71 milhões de euros em 2014 para 68 milhões em 2021.

No que respeita aos “300 projectos empresariais” que, segundo a consultora, manifestavam em 2019 o “desejo real de se mudarem” para Idanha, ou às “348 entidades” que estavam a ponderar a sua integração no Idanha Green Valley, os números do INE permitem concluir que essas expectativas não se concretizaram. Na sua base de dados de empresas, consta que entre Janeiro de 2019 e Dezembro de 2022 foram constituídas no município apenas 108 empresas e dissolvidas 45. Antes disso, entre 2014 e 2019, os dados não são muito diferentes: constituídas 129 empresas e dissolvidas 54.

Por outro lado, olhando para as poucas dezenas que podem estar relacionadas com os programas Recomeçar, trata-se maioritariamente de microempresas unipessoais e de empresários em nome individual, parte dos quais não desenvolve qualquer actividade no concelho de Idanha. Alguns têm os seus serviços noutras zonas, incluindo Lisboa, e limitam-se a ter a sua sede fiscal no edifício do Centro Empresarial de Idanha-a-Nova. Isto porque, supostamente, esta entidade funciona como uma incubadora de empresas, espaço de apoio ao empreendedorismo e alojamento de empresas.

Na prática trata-se sobretudo de um local onde se pode alugar uma sala de reuniões, receber correio, fazer fotocópias e usar a morada como sede social. Concretamente, muitas das cerca de 70 empresas que o site do CMCD — entidade que gere o centro empresarial em articulação com o município e a Escola Superior de Gestão de Idanha-a-Nova — identifica como tendo ligações àquele centro já se encontram extintas, não têm qualquer actividade, não se lhes encontra qualquer rasto no Registo Comercial, nem na Internet, ou têm a sua sede noutras regiões do país.

Uma zona industrial às moscas
É o caso de uma empresa com sede e instalações em Abrantes e que, segundo um dos seus sócios, apenas aluga esporadicamente uma sala no Centro Empresarial de Idanha para se reunir com clientes que tem na região. Um outro empresário, que tem actividade e escritório em Lisboa, disse ao PÚBLICO que a sua morada fiscal é a daquele centro empresarial apenas por uma questão sentimental. “A minha família é originária da zona e o facto de haver mais uma empresa ali registada pode ser útil ao desenvolvimento local.”

Quanto a benefícios que essa situação lhe traga, responde: “Nunca tive benefício nenhum.” Pedindo para não ser identificado, contou que chegou a tentar contactar outros empresários com sede no centro, para criar eventuais sinergias, e não conseguiu encontrar “um único”. Algumas das empresas de fora que ali têm a sua sede apresentam a particularidade de ter o município local como único cliente na região, através de ajustes directos.

De acordo com os testemunhos ouvidos pelo PÚBLICO, os apoios previstos no regulamento do centro para as empresas consideradas em incubação — em tudo semelhantes aos que constam do regulamento da IBR e que incluem “apoio científico e tecnológico” e “apoio ao financiamento” — são em boa verdade inexistentes, tal como acontece na IBR.

Instalado numa das entradas de Idanha, quase sem sinais de vida, o centro empresarial é o espelho da zona industrial semideserta onde foi construído, e da própria vila que se esconde atrás da propaganda e dos seus equipamentos públicos e infra-estruturas sobredimensionados. A poucas dezenas de metros, encontra-se um grande restaurante abandonado há muito; em frente há uma fábrica de queijos que chegou a ser um dos maiores empregadores do concelho e está falida e fechada desde 2016; e dos 82 lotes em que foram divididos os mais de 30 hectares da zona industrial criada pela câmara há 30 anos, nem 20 acolhem alguma espécie de actividade económica.

Publico


segunda-feira, 5 de junho de 2023

A polémica dos novos Certificados de Aforro em 20 perguntas e respostas

Diogo Cavaleiro, João Silvestre, Sónia M. Lourenço

As Finanças surpreenderam na noite de sexta-feira com uma alteração às regras dos certificados. A anterior série E que tinha taxa máxima foi encerrada e criada uma nova - a F - com taxa inferior (2,5%). O Governo tem sido acusado de ceder à banca. Será assim? Saiba tudo neste descodificador.

A alteração às regras dos Certificados de Aforro chegou na noite da última sexta-feira. A série E que estava em vigor, com uma taxa máxima de 3,5% (mais prémio de permanência) e período de 10 anos, foi encerrada e criada uma nova. A série F tem um prazo máximo de 15 anos só que a taxa é inferior: tem um tecto de 2,5% a que acrescem prémios de permanência.

A decisão do Governo foi vista - por alguns comentadores e partidos da oposição - como uma cedência à banca que, nos últimos meses, tem perdido milhares de milhões de euros em depósitos. Já se esperava esta decisão? Quem já tem dinheiro investido sai afectado? A nova taxa de juro continua a ser vantajosa face à dos depósitos? Os bancos saem a ganhar? Deixamos-lhe um explicador, em 20 perguntas com resposta.

1 - A TAXA DOS CERTIFICADOS VAI BAIXAR?

Sim. A taxa de juro base da nova série dos certificados de aforro (série F) corresponde à taxa Euribor a três meses, com um tecto de 2,5%. A taxa é determinada mensalmente no antepenúltimo dia útil do mês, tendo em conta a média dos valores da Euribor observados nos dez dias úteis anteriores. Por comparação, na anterior série de certificados de aforro (série E), que esteve em comercialização até à última sexta-feira, 2 de Junho, essa taxa de juro base correspondia à Euribor a três meses acrescida de 1 ponto percentual (p.p.), com um tecto de 3,5%. Resultado, quem subscreveu certificados na semana passada tem uma taxa de juro base de 3,5%. Quem subscrever esta semana fica pelos 2,5%.

2 - OS PRÉMIOS DE PERMANÊNCIA TAMBÉM SOFREM ALTERAÇÕES?

Sim. A par do alargamento do prazo máximo da aplicação, de 10 anos para 15 anos, O IGCP mexeu nos prémios de permanência, que somam à taxa de juro base. E que, agora, começam em valores muito baixos. Na série F, são de 0,25 p.p. entre o segundo e o quinto ano após a subscrição; sendo de 0,5 p.p. do 6º ao 9º ano; de 1 p.p. no 10º e 11º ano; de 1,5 p.p. no 12º e 13º ano; e de 1,75 p.p. no 14º e 15º ano. Por comparação, na anterior série E, os prémios de permanência começavam em 0,5 p.p., pagos logo desde o 2º e até ao 5º ano, atingindo 1 p.p. do 6º ao 10º ano. Comparando os valores, conclui-se que os prémios de permanência foram cortados para metade nos primeiros nove anos de subscrição dos certificados de aforro.

3 - O VALOR MÁXIMO QUE OS AFORRADORES PODEM INVESTIR DIMINUI?

Sim. O valor máximo de subscrição baixa de 250 mil euros na série E, para 50 mil euros na nova série F. Mais ainda, considerando as duas séries, os aforradores apenas podem aplicar um valor máximo de 250 mil euros. Ou seja, quem tiver aplicado o valor máximo da anterior série dos certificados de aforro (série E), não pode subscrever a nova série F.

4 - QUEM JÁ TINHA INVESTIDO ANTES É AFETADO?

Não. As novas condições de remuneração aplicam-se apenas às novas subscrições de certificados. Quem investiu em certificados de aforro da anterior série E, que esteve em comercialização até à passada sexta-feira, 2 de Junho, mantém todas as condições que tinha. Ou seja, a taxa de juro base continua a corresponder à Euribor a três meses acrescida de 1 p.p., com um tecto de 3,5%, que já foi atingido. Os prémios de permanência também se mantêm inalterados.

5 - A NOVA TAXA MÁXIMA DE 2,5% CONTINUA A SER VANTAJOSA FACE AOS BANCOS?

Em regra, sim. Os dados do Banco de Portugal sobre a taxa de juro média dos novos depósitos a prazo das famílias indicam que está a subir, mas mantém-se muito longe desses 2,5% dos certificados de aforro. Em Abril, essa taxa média nos novos depósitos a prazo das famílias foi de 1,03% (0,9% em Março). Discriminando por prazo dos depósitos, o Banco de Portugal indica que os novos depósitos com prazo até 1 ano foram remunerados, em média, a 0,95% (0,88% em Março); a remuneração média dos novos depósitos de 1 a 2 anos foi de 1,29% (1,12% em Março); e a dos novos depósitos acima de 2 anos foi de 1,12% (0,79% em Março). Atenção: estes são valores médios, o que significa que é possível encontrar propostas de depósitos mais vantajosas no mercado. Em regra, os bancos mais pequenos tendem a pagar taxas de depósitos mais elevadas, para atrair clientes, enquanto os bancos maiores, com maior liquidez face ao montante de crédito que concedem, tendem a pagar taxas mais baixas.

6 - COMO COMPARA PORTUGAL COM OS OUTROS PAÍSES DA ZONA EURO NA TAXA DE JURO MÉDIA DOS DEPÓSITOS A PRAZO?

A taxa de juro média dos novos depósitos a prazo das famílias em Portugal é das mais baixas na zona euro. Nos depósitos com prazo até um ano só no Chipre e Eslovénia os bancos pagam menos, em média, do que em Portugal tendo em conta os últimos dados disponíveis, relativos a Abril. Mais ainda, Portugal regista o terceiro menor aumento entre Dezembro de 2021 – imediatamente antes de as taxas de juro começarem a subir – e Abril de 2023. O acréscimo foi de 0,91 pontos percentuais, com a taxa a passar de 0,04% para 0,95%. Nos novos depósitos das famílias com prazo superior a um ano, o cenário é semelhante. Portugal tinha, em Abril, a terceira taxa média mais baixa da zona euro, nos 1,24%, registando o sexto menor aumento face a Dezembro de 2021 (1,17 pontos percentuais).

7 - TAMBÉM SOMOS DOS QUE PAGAM MENOS JUROS /NO CRÉDITO À HABITAÇÃO?

Não. A situação é bem diferente da que se vive na taxa de juro média dos novos créditos à habitação. Portugal tinha, em Abril, a oitava mais alta da zona euro, nos 3,97%. Mais ainda, esta taxa subiu 3,14 pontos percentuais face a Dezembro de 2021. Foi o terceiro maior aumento entre os países da zona euro. E é um aumento muito superior ao registado na taxa de juro média dos novos depósitos das famílias.

8 - QUAL A JUSTIFICAÇÃO PARA ESTA MUDANÇA NOS CERTIFICADOS?

O Governo recusa estar a ceder a qualquer apelo da banca para esta decisão, o que surgiu no espaço público devido a palavras de João Moreira Rato, que preside ao Banco CTT, e que numa entrevista à CNN disse que a subscrição de Certificados devia ser suspensa – que, tendo sido presidente do IGCP, considera que o Governo deveria colocar esse travão devido ao peso na dívida pública. “A criação da nova série F realinha a remuneração dos certificados de aforro com a remuneração das restantes fontes de financiamento da República Portuguesa. Além de promover a coerência da remuneração entre os vários instrumentos de financiamento, a nova série F permitirá também distribuir de forma mais equilibrada as amortizações de dívida por diferentes anos, assim contribuindo para a gestão prudente da dívida pública”, foi a justificação dada pelo Executivo na sexta-feira. Na prática, é tirar remuneração aos portugueses, que estavam em força a recorrer a este produto em busca de uma remuneração mais atractiva em época de inflação a disparar, para não sobrecarregar o Estado quando chegar a hora de reembolsar estes produtos.

9 - QUEM PODE VENDER CERTIFICADOS?

Esta é uma das mudanças mais significativas no que diz respeito à decisão de alterar a remuneração dos Certificados de Aforro: até aqui só era possível fazer a subscrição por via do IGCP, junto do seu site, nos espaços da AMA (Agência para a Modernização Administrativa) e, fora do Estado, nas lojas dos CTT. Para isso, o IGCP tem um contracto de distribuição com os CTT, através do qual, segundo o presidente, Miguel Martín, o instituto paga 0,585% nas subscrições até dado montante (não identificado), a partir do qual passa a pagar apenas 0,26% pela subscrição. Mais pormenores não são conhecidos. Na nova série, há uma alteração: além do que estava em vigor, acrescentam-se as “redes físicas ou digitais de qualquer instituição financeira ou de pagamentos inscrita no Banco de Portugal e indicadas para o efeito pelo IGCP, E. P. E.”. Ou seja, os bancos e instituições de pagamento (como Raize e Easypay ou Payshop) são elegíveis para vir a comercializar estes certificados. Mas tal comercialização ainda não acontece; até porque a Associação Portuguesa de Bancos (APB) diz desconhecer ainda quais as condições para promover essa comercialização.

10 - POR QUE ATÉ AGORA OS BANCOS NÃO COMERCIALIZAVAM?

As portarias do Governo definem quais as entidades com acordos para a venda dos certificados, mas, na portaria publicada na passada sexta-feira, é que foi definido que as “instituições financeiras ou de pagamento” podem também fazer a comercialização. Numa audição parlamentar em Fevereiro, o presidente do IGCP, Miguel Martín, assumia que não era positivo para o Estado o exclusivo da venda dos certificados (porque pagava aos CTT uma comissão definida sem concorrência, de 0,585% até um determinado montante de títulos subscritos, 0,26% a partir daí), mas sublinhava que a banca não tinha incentivo para vender estes produtos, já que os certificados canibalizam os seus depósitos ou outros produtos, de outros parceiros, como seguros, que possam gerar comissões maiores. O Governo anunciou que os bancos podiam agora fazer esta comercialização, sem com eles contactar inicialmente, deixando parte da pressão sobre o lado do sector bancário.

11 - JÁ SE ESPERAVA ESTA DECISÃO?

Não era segredo que esta reflexão tinha de acontecer – e já estava a acontecer. Numa audição parlamentar no início de Fevereiro, Miguel Martín disse que o pensamento é contínuo, mas tinha afirmado que havia pouca visibilidade sobre a política monetária do Banco Central Europeu, que só haveria mais em Junho. A análise tinha de conjugar vários factores, admitiu o presidente do IGCP: as taxas de juro, os produtos alternativos, as necessidades de financiamento do Estado, os canais de distribuição, etc. Segundo foi já assumido pelo Governo, há um mês que estava já definida a mudança de condições dos certificados, mas só agora foi anunciada. E, queixou-se a APB, sem que houvesse conversas prévias com os bancos para perceber a sua disponibilidade para comercializar o produto.

12 - QUANDO SERÁ POSSÍVEL SUBSCREVER VIA BANCOS?

Não se sabe, e bem pode demorar algum tempo. Desde logo, e como referido, os bancos podem só promover a distribuição se assim o entenderem, e o BCP, por exemplo, diz que ainda não foi contactado para saber se estava disponível. Além disso, depois de uma decisão desse género, é preciso tempo para criar o sistema informático que facilite a subscrição; o que até agora era difícil. Nos CTT, por exemplo, é preciso ir fisicamente aos balcões para fazer a primeira subscrição, sendo só é possível fazer reforços através da plataforma digital do IGCP.

13 - QUAL O PESO DOS CERTIFICADOS DE AFORRO PARA O FINANCIAMENTO DO ESTADO?

Normalmente, os Certificados de Aforro têm um peso relativamente baixo na dívida pública. No final de 2020, ano da pandemia, somavam 12.220 milhões, menos de 5% da divida total. Um ano mais tarde, ainda em tempo de taxas de juro ‘zero’, estavam pouco acima em 12.469 milhões. E só no ano passado, a partir do momento em que o Banco Central Europeu (BCE) iniciou a subida das taxas, é que as subscrições aceleraram. No final de Dezembro ascendiam já 19.626 milhões e em Abril, o último mês com dados disponíveis, atingiam 30.324.

14 - QUE DESVANTAGENS PODEM DECORRER DAQUI?

O peso na dívida praticamente triplicou e tornou este instrumento mais relevante do que era habitual para o financiamento do Estado. O que, sendo uma aplicação sujeita a alguma volatilidade, pode representar um risco acrescido para a gestão financeira do Estado. Para se ter um termo de comparação: representa quase cinco vezes o montante de Bilhetes do Tesouro e o equivalente a 60% dos empréstimos que ainda restam dos fundos da União Europeia do programa da troika.

15 - OS CERTIFICADOS DE AFORRO SÃO MAIS CAROS QUE OUTRAS ALTERNATIVAS DE DÍVIDA PÚBLICA?

Aparentemente sim. A taxa de 3,5% é superior às taxas yield de todos os prazos das Obrigações do Tesouro até 15 anos. Só a 20 e 30 anos, cujas taxas estão em 3,515% e 3,639%, o custo de financiamento é elevado. Além disso, à taxa máxima de 3,5% acrescem ainda prémios de permanência que, para aplicações que durem 10 anos, atinge 1% ao ano entre o sexto e o décimo ano.

16 - ESTA ALTERAÇÃO NA TAXA DOS CERTIFICADOS BENEFICIA OS BANCOS?

Na prática, acontece uma coisa benéfica: tira alguma pressão concorrencial. Sentido uma fuga de depósitos relevante, os bancos foram já subindo ligeiramente as taxas, mas muito abaixo das taxas que cobram nos créditos concedidos, e muito abaixo tanto da antiga como da nova remuneração dos Certificados. Com uma taxa menos atractiva, pode haver menos vontade para quebrar a inércia e retirar o produto financeiro. Mas, como referido, com uma média de 1% dos novos depósitos, a verdade é que mesmo baixando a remuneração inicial para 2,5%, a diferença é ainda substancial. Com menos pressão concorrencial, e ainda que haja essa diferença, os incentivos para melhorar a remuneração dos depósitos diminuem.

17 - POR QUE É QUE OS BANCOS NÃO SOBEM OS DEPÓSITOS?

Porque não precisam. Os bancos portugueses - e os europeus em geral - têm bastante liquidez e, ao mesmo tempo, têm reduzidos rácios de transformação (relação entre crédito e depósitos). Enquanto assim for, dificilmente as taxas de juro dos depósitos - a prazo, que concorrem mais directamente com os Certificados, mas não só - subirão. A taxa dos Certificados de Aforro mais baixa alivia a pressão sobre os bancos mas, na prática, o impacto pode não ser muito significativo. Os bancos nacionais têm neste momento mais de 30 mil milhões estacionados no BCE, a receber uma taxa de 3,25%. Só quando tiverem necessidade de liquidez - e os depósitos são, por definição, a forma tradicional de se financiarem - é que vão mexer. Até lá, nada deverá mudar muito nas taxas de juro dos bancos, até porque a concorrência entre instituições tem sido pouco intensa.

18 - OS CERTIFICADOS DE AFORRO SÃO EQUIVALENTES A DEPÓSITOS?

Os certificados são produtos com garantia de capital, pelo que o Estado só não assegura o pagamento a nível de juros, em situações de dificuldade. Já os depósitos bancários têm a protecção de capital e, por trás, têm o Fundo de Garantia de Depósitos, o que faz com que, em casos de stress ou insolvência, tenham de ser assegurados os depósitos até 100 mil euros por titular.

19 - COMO REAGIRAM OS PARTIDOS?

A reacção dos partidos, da esquerda à direita, tem sido de forte crítica à decisão do Ministério das Finanças, anunciada numa sexta-feira ao fim da tarde. Tanto PCP como BE dizem que o Governo “escolheu a banca” - estão a relacionar a decisão do Governo às palavras de João Moreira Rato. António Filipe, do PCP, escreveu um texto no Expresso a defender essa força da banca perante o Executivo. Os comunistas prometeram um requerimento para chamar o secretário de Estado das Finanças, João Nuno Mendes, ao Parlamento (que no sábado recusou estar a haver qualquer cedência à banca), e o Chega, que também fala em “subserviência” do Estado perante a banca, começou a semana a chamar o ministro e o presidente do IGCP.

20 - COMO REAGIRAM OS BANCOS?

Com cautela. Por um lado, a Associação Portuguesa de Bancos (APB) quis mostrar-se distante desta decisão que os partidos dizem ser tomada em resposta ao seu apelo ao afirmar que nem tinham sido contactados. Por outro lado, a associação presidida por Vítor Bento também diz desconhecer as condições que estão a ser propostas. Já os bancos estão a demorar a posição: a CGD, banco do Estado, remeteu totalmente para a APB. O BCP e o Novo Banco esperam para ver melhor. “A eventual decisão sobre se virá ou não a comercializar esses instrumentos será tomada quando for contactado para o efeito - saliente-se que ainda não foi -, tendo presente as condições concretas que sejam definidas”, diz fonte oficial do BCP.

https://expresso.pt/economia/2023-06-05-A-polemica-dos-novos-Certificados-de-Aforro-em-20-perguntas-e-respostas-2ccee7f0

domingo, 4 de junho de 2023

Melhorar a forma como o FMI faz negócios pode ajudar bilhões de pessoas em todo o mundo – dando dinheiro aos governos para gastar em bens públicos e aumentando a responsabilidade.


Em países do Sul Global, o lançamento de programas do FMI costuma gerar grande preocupação . Isso se deve à reputação do FMI: durante a década de 1980, muitos países da África, Ásia e América Latina recorreram ao FMI em busca de empréstimos para mitigar os desafios económicos. Esses empréstimos foram acompanhados de condições rigorosas e os países enfrentaram pressão para reduzir os subsídios públicos e os gastos sociais, reduzir a força de trabalho do sector público e aumentar os impostos. Originalmente fundado após a segunda guerra mundial , o FMI visava fornecer uma estrutura para os países cooperarem na gestão de suas taxas de câmbio e facilitar o comércio internacional. Desde então, evoluiu para fornecer assistência financeira e apoio a países que enfrentam crises económicas e emergências em todo o mundo. Os países membros contribuem com uma certa quantia de dinheiro para o FMI com base em seu tamanho económico e, por sua vez, podem acessar empréstimos como meio de ajuda.
Durante a recente pandemia de COVID-19, o FMI concedeu empréstimos a mais de 80 países . Actualmente, mais de 90 países continuam endividados com o FMI, sendo esses empréstimos acompanhados de condições de política. Neste episódio do The Conversation Weekly , conversamos com dois pesquisadores sobre o impacto dos empréstimos do FMI nos países beneficiários e por que os países continuam a depender dos empréstimos do FMI. Também discutimos possíveis alternativas a esse sistema.

Impacto contínuo do colonialismo
Danny Bradlow , professor de direito do desenvolvimento internacional e relações econômicas africanas e membro sênior da Universidade de Pretória, na África do Sul, destaca os efeitos nocivos das medidas de austeridade impostas pelo FMI.
O impacto contínuo do colonialismo significa que muitos países do Sul Global “estavam em uma situação muito terrível para começar”, explica Bradlow. “O FMI disse que, se você seguir nossas prescrições políticas, as coisas vão mudar e você se sairá muito melhor.”
As medidas impostas pelo FMI limitaram o acesso à saúde e à educação para os mais pobres. Ao longo da década de 1980, o FMI pressionou país após país - no que é conhecido como Programas de Ajuste Estrutural - com danos duradouros para economias e populações.
As medidas políticas ditadas pelo FMI também tiveram consequências ambientais prejudiciais. Para encorajar o crescimento econômico, muitos países foram pressionados a mudar “da produção de alimentos para a produção de produtos agrícolas que poderiam ser vendidos nos mercados globais”, diz Bradlow. “Muitas vezes isso significava que você estava usando fertilizantes mais prejudiciais ao meio ambiente, ou que você estava fazendo projetos de mineração extrativista que eram prejudiciais ao meio ambiente. Em alguns casos, era a extração de madeira, então os países derrubavam as florestas.”


Dívida prolongada e austeridade
Attiya Waris é professor associado de direito e política fiscal na Universidade de Nairóbi, no Quênia, e especialista em dívida externa e obrigações financeiras internacionais e suas implicações para os direitos humanos.
Como parte de seu trabalho, Waris lança luz sobre as experiências da Argentina e do Paquistão. Ambos os países receberam vários empréstimos desde a década de 1950 para enfrentar desafios econômicos, como inflação, desvalorização da moeda e crises da dívida externa. A Argentina detém atualmente a maior dívida pendente de US$ 46 bilhões, enquanto o Paquistão ocupa o quinto lugar com US$ 7,4 bilhões.
“O Paquistão é um dos 14 países em todo o mundo que tem um empréstimo do FMI com sobretaxa. Uma sobretaxa significa que, se você estiver pagando uma taxa de juros de 1% e deixar de pagar seus pagamentos, pagará 3%. Então você está sendo penalizado por não poder pagar”, explica Waris. Isso, por sua vez, aumenta a probabilidade de dívida prolongada e austeridade.
Mas para Waris, um dos maiores problemas é que os contratos em torno dos empréstimos do FMI são extremamente opacos, o que torna difícil responsabilizar a instituição ou mesmo avaliar seu impacto além das medidas de austeridade. “Isso é problemático porque não pode haver supervisão social sobre o que um grupo de seres humanos em seu país está decidindo assumir em seu nome”, diz ela. “Representativas, democráticas ou não, as pessoas precisam saber o que seus governos estão fazendo em seu nome.”
Para Bradlow, há sinais de mudança positiva. Um trabalho de pesquisa recente mostra que o FMI reconhece alguns dos impactos devastadores que teve nos países. No documento, identifica áreas de foco aprimorado, incluindo mudança climática, gênero, desigualdade e proteção social. No entanto, embora o FMI tenha adaptado seu foco e suas políticas para lidar com algumas das consequências negativas, permanece incerto como atingirá essas metas. The Conversation entrou em contato com o Fundo Monetário Internacional para comentar as questões abordadas neste episódio e está aguardando resposta.

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Ouça o episódio completo do The Conversation Weekly para saber mais sobre o impacto dos empréstimos do FMI nas nações beneficiárias, os benefícios potenciais de alocar fundos para serviços públicos no Sul Global e a importância de implementar mecanismos de responsabilidade dentro do FMI.

Este episódio foi escrito e produzido por Mend Mariwany, que também é o produtor executivo de The Conversation Weekly . Eloise Stevens faz nosso design de som, e nossa música tema é de Neeta Sarl.
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