Diogo Cavaleiro, João Silvestre, Sónia M. Lourenço
As Finanças surpreenderam na noite de sexta-feira com uma alteração às regras dos certificados. A anterior série E que tinha taxa máxima foi encerrada e criada uma nova - a F - com taxa inferior (2,5%). O Governo tem sido acusado de ceder à banca. Será assim? Saiba tudo neste descodificador.
A alteração às regras dos Certificados de Aforro chegou na noite da última sexta-feira. A série E que estava em vigor, com uma taxa máxima de 3,5% (mais prémio de permanência) e período de 10 anos, foi encerrada e criada uma nova. A série F tem um prazo máximo de 15 anos só que a taxa é inferior: tem um tecto de 2,5% a que acrescem prémios de permanência.
A decisão do Governo foi vista - por alguns comentadores e partidos da oposição - como uma cedência à banca que, nos últimos meses, tem perdido milhares de milhões de euros em depósitos. Já se esperava esta decisão? Quem já tem dinheiro investido sai afectado? A nova taxa de juro continua a ser vantajosa face à dos depósitos? Os bancos saem a ganhar? Deixamos-lhe um explicador, em 20 perguntas com resposta.
1 - A TAXA DOS CERTIFICADOS VAI BAIXAR?
Sim. A taxa de juro base da nova série dos certificados de aforro (série F) corresponde à taxa Euribor a três meses, com um tecto de 2,5%. A taxa é determinada mensalmente no antepenúltimo dia útil do mês, tendo em conta a média dos valores da Euribor observados nos dez dias úteis anteriores. Por comparação, na anterior série de certificados de aforro (série E), que esteve em comercialização até à última sexta-feira, 2 de Junho, essa taxa de juro base correspondia à Euribor a três meses acrescida de 1 ponto percentual (p.p.), com um tecto de 3,5%. Resultado, quem subscreveu certificados na semana passada tem uma taxa de juro base de 3,5%. Quem subscrever esta semana fica pelos 2,5%.
2 - OS PRÉMIOS DE PERMANÊNCIA TAMBÉM SOFREM ALTERAÇÕES?
Sim. A par do alargamento do prazo máximo da aplicação, de 10 anos para 15 anos, O IGCP mexeu nos prémios de permanência, que somam à taxa de juro base. E que, agora, começam em valores muito baixos. Na série F, são de 0,25 p.p. entre o segundo e o quinto ano após a subscrição; sendo de 0,5 p.p. do 6º ao 9º ano; de 1 p.p. no 10º e 11º ano; de 1,5 p.p. no 12º e 13º ano; e de 1,75 p.p. no 14º e 15º ano. Por comparação, na anterior série E, os prémios de permanência começavam em 0,5 p.p., pagos logo desde o 2º e até ao 5º ano, atingindo 1 p.p. do 6º ao 10º ano. Comparando os valores, conclui-se que os prémios de permanência foram cortados para metade nos primeiros nove anos de subscrição dos certificados de aforro.
3 - O VALOR MÁXIMO QUE OS AFORRADORES PODEM INVESTIR DIMINUI?
Sim. O valor máximo de subscrição baixa de 250 mil euros na série E, para 50 mil euros na nova série F. Mais ainda, considerando as duas séries, os aforradores apenas podem aplicar um valor máximo de 250 mil euros. Ou seja, quem tiver aplicado o valor máximo da anterior série dos certificados de aforro (série E), não pode subscrever a nova série F.
4 - QUEM JÁ TINHA INVESTIDO ANTES É AFETADO?
Não. As novas condições de remuneração aplicam-se apenas às novas subscrições de certificados. Quem investiu em certificados de aforro da anterior série E, que esteve em comercialização até à passada sexta-feira, 2 de Junho, mantém todas as condições que tinha. Ou seja, a taxa de juro base continua a corresponder à Euribor a três meses acrescida de 1 p.p., com um tecto de 3,5%, que já foi atingido. Os prémios de permanência também se mantêm inalterados.
5 - A NOVA TAXA MÁXIMA DE 2,5% CONTINUA A SER VANTAJOSA FACE AOS BANCOS?
Em regra, sim. Os dados do Banco de Portugal sobre a taxa de juro média dos novos depósitos a prazo das famílias indicam que está a subir, mas mantém-se muito longe desses 2,5% dos certificados de aforro. Em Abril, essa taxa média nos novos depósitos a prazo das famílias foi de 1,03% (0,9% em Março). Discriminando por prazo dos depósitos, o Banco de Portugal indica que os novos depósitos com prazo até 1 ano foram remunerados, em média, a 0,95% (0,88% em Março); a remuneração média dos novos depósitos de 1 a 2 anos foi de 1,29% (1,12% em Março); e a dos novos depósitos acima de 2 anos foi de 1,12% (0,79% em Março). Atenção: estes são valores médios, o que significa que é possível encontrar propostas de depósitos mais vantajosas no mercado. Em regra, os bancos mais pequenos tendem a pagar taxas de depósitos mais elevadas, para atrair clientes, enquanto os bancos maiores, com maior liquidez face ao montante de crédito que concedem, tendem a pagar taxas mais baixas.
6 - COMO COMPARA PORTUGAL COM OS OUTROS PAÍSES DA ZONA EURO NA TAXA DE JURO MÉDIA DOS DEPÓSITOS A PRAZO?
A taxa de juro média dos novos depósitos a prazo das famílias em Portugal é das mais baixas na zona euro. Nos depósitos com prazo até um ano só no Chipre e Eslovénia os bancos pagam menos, em média, do que em Portugal tendo em conta os últimos dados disponíveis, relativos a Abril. Mais ainda, Portugal regista o terceiro menor aumento entre Dezembro de 2021 – imediatamente antes de as taxas de juro começarem a subir – e Abril de 2023. O acréscimo foi de 0,91 pontos percentuais, com a taxa a passar de 0,04% para 0,95%. Nos novos depósitos das famílias com prazo superior a um ano, o cenário é semelhante. Portugal tinha, em Abril, a terceira taxa média mais baixa da zona euro, nos 1,24%, registando o sexto menor aumento face a Dezembro de 2021 (1,17 pontos percentuais).
7 - TAMBÉM SOMOS DOS QUE PAGAM MENOS JUROS /NO CRÉDITO À HABITAÇÃO?
Não. A situação é bem diferente da que se vive na taxa de juro média dos novos créditos à habitação. Portugal tinha, em Abril, a oitava mais alta da zona euro, nos 3,97%. Mais ainda, esta taxa subiu 3,14 pontos percentuais face a Dezembro de 2021. Foi o terceiro maior aumento entre os países da zona euro. E é um aumento muito superior ao registado na taxa de juro média dos novos depósitos das famílias.
8 - QUAL A JUSTIFICAÇÃO PARA ESTA MUDANÇA NOS CERTIFICADOS?
O Governo recusa estar a ceder a qualquer apelo da banca para esta decisão, o que surgiu no espaço público devido a palavras de João Moreira Rato, que preside ao Banco CTT, e que numa entrevista à CNN disse que a subscrição de Certificados devia ser suspensa – que, tendo sido presidente do IGCP, considera que o Governo deveria colocar esse travão devido ao peso na dívida pública. “A criação da nova série F realinha a remuneração dos certificados de aforro com a remuneração das restantes fontes de financiamento da República Portuguesa. Além de promover a coerência da remuneração entre os vários instrumentos de financiamento, a nova série F permitirá também distribuir de forma mais equilibrada as amortizações de dívida por diferentes anos, assim contribuindo para a gestão prudente da dívida pública”, foi a justificação dada pelo Executivo na sexta-feira. Na prática, é tirar remuneração aos portugueses, que estavam em força a recorrer a este produto em busca de uma remuneração mais atractiva em época de inflação a disparar, para não sobrecarregar o Estado quando chegar a hora de reembolsar estes produtos.
9 - QUEM PODE VENDER CERTIFICADOS?
Esta é uma das mudanças mais significativas no que diz respeito à decisão de alterar a remuneração dos Certificados de Aforro: até aqui só era possível fazer a subscrição por via do IGCP, junto do seu site, nos espaços da AMA (Agência para a Modernização Administrativa) e, fora do Estado, nas lojas dos CTT. Para isso, o IGCP tem um contracto de distribuição com os CTT, através do qual, segundo o presidente, Miguel Martín, o instituto paga 0,585% nas subscrições até dado montante (não identificado), a partir do qual passa a pagar apenas 0,26% pela subscrição. Mais pormenores não são conhecidos. Na nova série, há uma alteração: além do que estava em vigor, acrescentam-se as “redes físicas ou digitais de qualquer instituição financeira ou de pagamentos inscrita no Banco de Portugal e indicadas para o efeito pelo IGCP, E. P. E.”. Ou seja, os bancos e instituições de pagamento (como Raize e Easypay ou Payshop) são elegíveis para vir a comercializar estes certificados. Mas tal comercialização ainda não acontece; até porque a Associação Portuguesa de Bancos (APB) diz desconhecer ainda quais as condições para promover essa comercialização.
10 - POR QUE ATÉ AGORA OS BANCOS NÃO COMERCIALIZAVAM?
As portarias do Governo definem quais as entidades com acordos para a venda dos certificados, mas, na portaria publicada na passada sexta-feira, é que foi definido que as “instituições financeiras ou de pagamento” podem também fazer a comercialização. Numa audição parlamentar em Fevereiro, o presidente do IGCP, Miguel Martín, assumia que não era positivo para o Estado o exclusivo da venda dos certificados (porque pagava aos CTT uma comissão definida sem concorrência, de 0,585% até um determinado montante de títulos subscritos, 0,26% a partir daí), mas sublinhava que a banca não tinha incentivo para vender estes produtos, já que os certificados canibalizam os seus depósitos ou outros produtos, de outros parceiros, como seguros, que possam gerar comissões maiores. O Governo anunciou que os bancos podiam agora fazer esta comercialização, sem com eles contactar inicialmente, deixando parte da pressão sobre o lado do sector bancário.
11 - JÁ SE ESPERAVA ESTA DECISÃO?
Não era segredo que esta reflexão tinha de acontecer – e já estava a acontecer. Numa audição parlamentar no início de Fevereiro, Miguel Martín disse que o pensamento é contínuo, mas tinha afirmado que havia pouca visibilidade sobre a política monetária do Banco Central Europeu, que só haveria mais em Junho. A análise tinha de conjugar vários factores, admitiu o presidente do IGCP: as taxas de juro, os produtos alternativos, as necessidades de financiamento do Estado, os canais de distribuição, etc. Segundo foi já assumido pelo Governo, há um mês que estava já definida a mudança de condições dos certificados, mas só agora foi anunciada. E, queixou-se a APB, sem que houvesse conversas prévias com os bancos para perceber a sua disponibilidade para comercializar o produto.
12 - QUANDO SERÁ POSSÍVEL SUBSCREVER VIA BANCOS?
Não se sabe, e bem pode demorar algum tempo. Desde logo, e como referido, os bancos podem só promover a distribuição se assim o entenderem, e o BCP, por exemplo, diz que ainda não foi contactado para saber se estava disponível. Além disso, depois de uma decisão desse género, é preciso tempo para criar o sistema informático que facilite a subscrição; o que até agora era difícil. Nos CTT, por exemplo, é preciso ir fisicamente aos balcões para fazer a primeira subscrição, sendo só é possível fazer reforços através da plataforma digital do IGCP.
13 - QUAL O PESO DOS CERTIFICADOS DE AFORRO PARA O FINANCIAMENTO DO ESTADO?
Normalmente, os Certificados de Aforro têm um peso relativamente baixo na dívida pública. No final de 2020, ano da pandemia, somavam 12.220 milhões, menos de 5% da divida total. Um ano mais tarde, ainda em tempo de taxas de juro ‘zero’, estavam pouco acima em 12.469 milhões. E só no ano passado, a partir do momento em que o Banco Central Europeu (BCE) iniciou a subida das taxas, é que as subscrições aceleraram. No final de Dezembro ascendiam já 19.626 milhões e em Abril, o último mês com dados disponíveis, atingiam 30.324.
14 - QUE DESVANTAGENS PODEM DECORRER DAQUI?
O peso na dívida praticamente triplicou e tornou este instrumento mais relevante do que era habitual para o financiamento do Estado. O que, sendo uma aplicação sujeita a alguma volatilidade, pode representar um risco acrescido para a gestão financeira do Estado. Para se ter um termo de comparação: representa quase cinco vezes o montante de Bilhetes do Tesouro e o equivalente a 60% dos empréstimos que ainda restam dos fundos da União Europeia do programa da troika.
15 - OS CERTIFICADOS DE AFORRO SÃO MAIS CAROS QUE OUTRAS ALTERNATIVAS DE DÍVIDA PÚBLICA?
Aparentemente sim. A taxa de 3,5% é superior às taxas yield de todos os prazos das Obrigações do Tesouro até 15 anos. Só a 20 e 30 anos, cujas taxas estão em 3,515% e 3,639%, o custo de financiamento é elevado. Além disso, à taxa máxima de 3,5% acrescem ainda prémios de permanência que, para aplicações que durem 10 anos, atinge 1% ao ano entre o sexto e o décimo ano.
16 - ESTA ALTERAÇÃO NA TAXA DOS CERTIFICADOS BENEFICIA OS BANCOS?
Na prática, acontece uma coisa benéfica: tira alguma pressão concorrencial. Sentido uma fuga de depósitos relevante, os bancos foram já subindo ligeiramente as taxas, mas muito abaixo das taxas que cobram nos créditos concedidos, e muito abaixo tanto da antiga como da nova remuneração dos Certificados. Com uma taxa menos atractiva, pode haver menos vontade para quebrar a inércia e retirar o produto financeiro. Mas, como referido, com uma média de 1% dos novos depósitos, a verdade é que mesmo baixando a remuneração inicial para 2,5%, a diferença é ainda substancial. Com menos pressão concorrencial, e ainda que haja essa diferença, os incentivos para melhorar a remuneração dos depósitos diminuem.
17 - POR QUE É QUE OS BANCOS NÃO SOBEM OS DEPÓSITOS?
Porque não precisam. Os bancos portugueses - e os europeus em geral - têm bastante liquidez e, ao mesmo tempo, têm reduzidos rácios de transformação (relação entre crédito e depósitos). Enquanto assim for, dificilmente as taxas de juro dos depósitos - a prazo, que concorrem mais directamente com os Certificados, mas não só - subirão. A taxa dos Certificados de Aforro mais baixa alivia a pressão sobre os bancos mas, na prática, o impacto pode não ser muito significativo. Os bancos nacionais têm neste momento mais de 30 mil milhões estacionados no BCE, a receber uma taxa de 3,25%. Só quando tiverem necessidade de liquidez - e os depósitos são, por definição, a forma tradicional de se financiarem - é que vão mexer. Até lá, nada deverá mudar muito nas taxas de juro dos bancos, até porque a concorrência entre instituições tem sido pouco intensa.
18 - OS CERTIFICADOS DE AFORRO SÃO EQUIVALENTES A DEPÓSITOS?
Os certificados são produtos com garantia de capital, pelo que o Estado só não assegura o pagamento a nível de juros, em situações de dificuldade. Já os depósitos bancários têm a protecção de capital e, por trás, têm o Fundo de Garantia de Depósitos, o que faz com que, em casos de stress ou insolvência, tenham de ser assegurados os depósitos até 100 mil euros por titular.
19 - COMO REAGIRAM OS PARTIDOS?
A reacção dos partidos, da esquerda à direita, tem sido de forte crítica à decisão do Ministério das Finanças, anunciada numa sexta-feira ao fim da tarde. Tanto PCP como BE dizem que o Governo “escolheu a banca” - estão a relacionar a decisão do Governo às palavras de João Moreira Rato. António Filipe, do PCP, escreveu um texto no Expresso a defender essa força da banca perante o Executivo. Os comunistas prometeram um requerimento para chamar o secretário de Estado das Finanças, João Nuno Mendes, ao Parlamento (que no sábado recusou estar a haver qualquer cedência à banca), e o Chega, que também fala em “subserviência” do Estado perante a banca, começou a semana a chamar o ministro e o presidente do IGCP.
20 - COMO REAGIRAM OS BANCOS?
Com cautela. Por um lado, a Associação Portuguesa de Bancos (APB) quis mostrar-se distante desta decisão que os partidos dizem ser tomada em resposta ao seu apelo ao afirmar que nem tinham sido contactados. Por outro lado, a associação presidida por Vítor Bento também diz desconhecer as condições que estão a ser propostas. Já os bancos estão a demorar a posição: a CGD, banco do Estado, remeteu totalmente para a APB. O BCP e o Novo Banco esperam para ver melhor. “A eventual decisão sobre se virá ou não a comercializar esses instrumentos será tomada quando for contactado para o efeito - saliente-se que ainda não foi -, tendo presente as condições concretas que sejam definidas”, diz fonte oficial do BCP.
https://expresso.pt/economia/2023-06-05-A-polemica-dos-novos-Certificados-de-Aforro-em-20-perguntas-e-respostas-2ccee7f0