Portugal é um país pequeno e as Ordens encolhem-no mais. O seu poder não tem paralelo na Europa. Onde o sindicalismo defende os direitos dos trabalhadores perante o poder do patrão, as Ordens defendem os associados perante a chegada de novos colegas. “Reforma estrutural” tem sido tirar poder aos mais fracos. Para os “interesses instalados” nunca sobram forças. Seria bom que fosse desta
Portugal é um país pequeno. As ordens profissionais encolhem-no ainda mais. O corporativismo é sintoma e causa do nosso atraso. O seu poder, sem paralelo na Europa, é um entrave à mobilidade social e condiciona o acesso a profissões relevantes. Partindo do poder que lhes era delegado pelo Estado, de autorregulação de actividades liberais, foram crescendo em número e ambição política, tomando conta de poderes de fiscalização do Estado e funções sindicais que nunca foram as suas. Onde o sindicalismo clássico defende os direitos dos trabalhadores perante a relação assimétrica com o patronato, as Ordens defendem os seus associados perante a pressão de novos colegas.
Veja-se a força exercida pela Ordem dos Médicos, nos anos 80 e 90 do século passado, para limitar as vagas nos cursos de medicina. À medida que o país foi massificando o acesso ao ensino superior, a Ordem pressionava o poder político para seguir em contraciclo. Em 1986, com Cavaco Silva (começou a cair no início dos anos 80), entraram apenas 160 estudantes em todas as faculdades de medicina do país, 20% dos cerca de 800 dos anos 70. Só na viragem do século, uma década e meia depois do país ter aderido à União Europeia, voltámos a formar o mesmo número de médicos dos últimos anos do Estado Novo.
Estamos a pagar o preço dessa escolha agora, quando nos encontramos na cova da curva e temos uma geração de médicos especialistas à beira da reforma. A situação melhorará, só não sabemos se a tempo de salvar o SNS. A decisão foi do poder político, mas, sem a pressão da Ordem, que desejava reduzir a oferta para aumentar o seu valor, isto dificilmente teria acontecido.
A forma desproporcionada como várias Ordens têm reagido à proposta do Governo para alterar o estatuto de doze, debitando informação não corresponde ao que é proposto, nada tem a ver com a regulação das profissões. É uma luta por poder. A Ordem dos Advogados, mais contundente nas críticas, tem-se centrado nos estágios remunerados e na abertura da consultoria jurídica a licenciados em Direito não inscritos na Ordem.
O trabalho deve ser remunerado e os estágios profissionais, ainda mais quando duram 18 meses, são trabalho. Sei o que aconteceu ao jornalismo quando começou a usar e abusar da presença de estagiários não remunerados. Em estágios de ano e meio, como é o caso da advocacia, os jovens licenciados assumem uma parte significativa do trabalho menos nobre, mas ainda assim indispensável. Um ano e meio sem receber, mas que é indispensável para o acesso à Ordem e à profissão, é uma poderosa forma de selecção social ao exercício da advocacia.
Diz a Ordem dos Advogados que há muitos patronos que não podem pagar os 950 euros propostos pelo Governo e que esta medida foi feita a pensar nos grandes escritórios de Lisboa. Que para a maioria dos advogados em nome individual ou em pequenos escritórios a presença de um estagiário é um acto de formação que aceitam com prejuízo individual. Tendo de pagar vão desistir de os receber. Para garantir que o estágio não fica circunscrito a quem tem contactos em grandes escritórios, talvez se tenha de encontrar uma solução para pagar 25% acima do salário mínimo a quem tem cinco anos de formação numa Faculdade de Direito, mas não deixa de ser curioso ser a mesma Ordem dos Advogados que nos apresenta os estagiários como um acto caritativo dos patronos a criticar a sua redução de 18 para 12 meses.
A segunda frente da Ordem dos Advogados é contra a abertura das consultas jurídicas a licenciados em Direito, sem que precisem de pertencer à Ordem dos Advogados. Como sempre, a “qualidade” da formação é o engodo para a restrição à concorrência. A formação de jurista é feita pelas Faculdades, não pela Ordem, como se pode ver ao olhar para o perfil da sua formação muito mais centrada no Direito processual. Manter este monopólio absurdo é manter o poder de selecção da Ordem e assim restringir o acesso às melhores remunerações.
Não é por acaso que uma das medidas propostas pelo Governo é a presença de membros exteriores à Ordem na avaliação final do estágio. O número absurdo de chumbos nos exames de acesso à Ordem, sem qualquer relação com o que se passa nas faculdades, prova que o condicionamento do número de profissionais habilitados a exercer e assinar é o propósito deste tipo de entraves.
A crise do sindicalismo tem alimentado o crescimento exponencial das ordens profissionais. Vamos em dezoito, fazendo do nosso país um caso único na Europa, em actividades cada vez menos liberais e mais dependentes da negociação com o Estado. Não é por acaso. É aí, muitas vezes exercendo a força negocial de terem o capacidade de definirem as regras de acesso e de exercício da profissão, que o seu poder fica mais evidente.
A Ordem dos Advogados não é caso único. Trinta anos depois do disparate do numerus clausus, a Ordem dos Médicos consegue, na prática, controlar o acesso às especialidades. Pior, de forma ilegal (no entender do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República), é quem define a constituição de equipas médicas nos serviços de urgência, levantando exigências no sector público que nada têm a ver com as do privado. Com a conivência de quase todos, as ordens profissionais tornaram-se um Estado dentro do Estado, contribuindo para uma posição concorrencialmente desfavorável do Estado face aos privados.
Não deixa de ser sintomático que o governo de Passos Coelho, tão lesto a retirar direitos laborais e a cortar apoios sociais por imposição da troika, tenha deixado na gaveta as recomendações para aumentar a concorrência em atividades fechadas pelos entraves criados pelas ordens profissionais. “Reformas estruturais” nunca foram mais do que o nome de código para tirar poder aos mais fracos, flexibilizando leis laborais e reduzindo direitos sociais. Para os verdadeiros “interesses instalados”, nunca sobram forças para mudar seja o que for.
Daniel Oliveira
Expresso
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