sábado, 10 de junho de 2023

Investigação. O logro do “Silicon Valley” de Idanha-a-Nova.

Desde 2020, o PÚBLICO tentou encontrar os frutos de uma elogiada estratégia de revitalização do interior. A conclusão é: muita propaganda, muito dinheiro gasto, poucos resultados e muito por explicar.

José António Cerejo

Quem é que nunca ouviu falar em Idanha-a-Nova como a terra dos “novos rurais”, do regresso ao campo, do "Não emigres – migra para Idanha!", do Recomeçar em Idanha, do Idanha Green Valley, do i-Danha Food Lab, dos japoneses que viriam de Fukushima, da capital da agricultura biológica, da primeira biorregião do país, do exemplo maior da luta contra o despovoamento, do empreendedorismo, da “terra de oportunidades”, do paraíso dos jovens agricultores e muitas outras coisas fantásticas?

Tudo isso foi prometido e anunciado em centenas de notícias e reportagens em jornais, rádios, canais de televisão e redes sociais. Acontece que agora quase tudo isso é desmentido pela dura realidade que se esconde por trás da propaganda. E tudo isso é negado pela estagnação que se respira naquele concelho do distrito de Castelo Branco e pelo desalento de quem foi levado por promessas ilusórias.

Para dar corpo à narrativa do “primeiro Silicon Valley verde no mundo”, desenvolvida sobretudo a partir de 2014, a Câmara de Idanha-a-Nova apostou numa bem-sucedida e dispendiosa estratégia promocional que só em planos, estudos e acções de marketing lhe custou para cima de 700 mil euros, sem contar com os quase 300 mil despendidos indirectamente, através do Centro Municipal de Cultura e Desenvolvimento (CMCD) — uma associação que financia e controla. E em obras relacionadas com aquele que se tornou o projecto mais emblemático desta operação — a Incubadora de Empresas de Base Rural (IBR) — gastou cerca de 1,7 milhões de euros. A que se juntam vários milhões de euros canalizados pelos fundos europeus e pelo Estado para os projectos públicos e privados que para ali foram aprovados.

Uma “estratégia de marca”
Para conferir visibilidade mediática à política desenhada pela Bloom Consulting — uma empresa especializada na chamada “estratégia de marca”, com base em Madrid, à qual já pagou pelo menos 140 mil euros —, investiu em comunicação e imagem perto de 300 mil euros. Nesse período, aliás, boa parte da despesa da autarquia em comunicação foi feita com sucessivas contratações de uma empresa de que é gerente um jornalista da imprensa local, João Carrega — que actualmente preside ao Conselho Geral da Universidade de Évora —, em completa violação do seu estatuto profissional.

As contas foram feitas apenas com base nos contratos publicados no portal Base.gov e relacionáveis com a estratégia prosseguida, sem falar em viagens, festas, conferências, feiras nacionais e internacionais, e outras iniciativas igualmente destinadas a garantir a notoriedade do município.

Quanto aos resultados desta política, referindo-se apenas à IBR, o presidente da câmara, Armindo Jacinto — que começa a ser julgado no próximo dia 20, em Castelo Branco, pelo crime de peculato, por utilizar veículos do município para participar em reuniões partidárias —, já dizia no Verão de 2018 que o investimento privado para ali canalizado ascendia a 10 milhões de euros. Nessa altura, em diversas ocasiões e até em candidaturas a fundos europeus, garantiu também que já ali tinham sido criadas 55 empresas e 350 postos de trabalho directos.

Mais recentemente, numa resposta escrita enviada ao PÚBLICO em Setembro de 2021, o autarca socialista refez as contas, sem falar no investimento, e garantiu que na IBR estão instaladas 41 empresas e empresários em nome individual e que se estima terem sido lá criados “cerca de 500 postos de trabalho directos e indirectos, muitos dos quais em regime de permanência”.

Igualmente optimista mostra-se a Bloom Consulting em cujo site se lê, num documento intitulado “Como uma estratégia de marca trouxe talento e negócios a Idanha-a-Nova”, presumivelmente redigido em 2019, que desde 2014 a sua estratégia permitiu captar 312 empregos e investir 29 milhões de euros. No mesmo texto, e numa perspectiva não menos entusiástica, consta também que em 2019 havia já “cerca de 348 entidades” cujos projectos estavam “em curso ou em ponderação de posicionamento no programa Idanha Green Valley”, uma das peças-chave da solução que vendeu ao município.

Noutro documento não datado, igualmente disponível naquele site, diz-se que graças aos programas Recomeçar havia já “mais de 1000 indivíduos e 300 projectos empresariais a manifestar o desejo real de se mudarem para Idanha-a-Nova”. O PÚBLICO não conseguiu apurar se nesta contabilidade entravam também os camponeses de Fukushima, vítimas do desastre nuclear que atingiu aquela zona do Japão em 2011 e que, segundo foi amplamente noticiado, viriam instalar-se em Idanha — mas não vieram, apesar de o presidente da câmara se ter deslocado ao Japão em 2012 e ter “vendido” a próxima chegada dos japoneses como um trunfo da sua candidatura nas eleições de 2013.

Numa avaliação transmitida ao PÚBLICO em Setembro de 2021 (depois disso não se pronunciou), Armindo Jacinto afirma que o objectivo da criação da IBR foi alcançado “e mesmo superado”. Objectivo esse que não era propriamente modesto, tal como o dos restantes programas e projectos integrados na proposta Recomeçar em Idanha. Isso mesmo se deduz da proclamação ainda hoje patente no site municipal recomecar.pt: “Os empreendedores de cá e de fora ficarão entusiasmados com o programa Idanha Green Valley, em que poderão contribuir para um monumento empresarial histórico: o primeiro Silicon Valley verde no mundo.”

Recomeçar em Idanha-a-Nova Graças ao Campo é precisamente a componente mais destacada da estratégia de marketing territorial criada pela Bloom Consulting para vigorar até 2025. Nesse conceito avulta o programa Idanha Green Valley, consagrado em grande parte aos cerca de 550 hectares, muitos deles irrigados, da Herdade do Couto da Várzea, uma propriedade do Estado arrendada ao município em 2011 para que este aí instalasse a IBR, subarrendando as terras a novos agricultores, preferencialmente jovens.

Como objectivo principal, o programa visa o “reconhecimento global da marca de Idanha-a-Nova enquanto um Silicon Valley verde”, fazendo da vila “o centro mundial da ruralidade inovadora”. Para o conseguir, o município prevê desde o início “a criação de um plano de apoio aos empreendedores e a criação de fundos para estimular o investimento e a fixação de talento”. Conforme se lê no site recomeçar.pt desde há vários anos, as acções propostas são enquadradas em “seis projectos estruturantes” com nomes como PICR (Projecto Inovador Conhecimento Rural), PEGV (Projecto Estratégico Green Valley), PEAE (Projecto Estratégico Apoio Empreendedor), ou PEFR (Projecto Estratégico Fórum Rural).

Para lá do Idanha Green Valley, a estratégia Recomeçar em Idanha compreende os programas Idanha Vive, Idanha Experimenta e Idanha Made In, todos eles repletos de promessas de facilidades destinadas a “fixar talentos”. No conjunto destes quatro programas, escreve a Bloom Consulting na página do seu site já referida, foram criados “27 projectos, todos operacionais e já a dar frutos”.

Da ficção à realidade
A observação da realidade actual do território, em particular do que se passa no Couto da Várzea, a contínua perda de população do concelho e os testemunhos recolhidos pelo PÚBLICO desmentem todavia a euforia do autarca e os excessos da propaganda municipal.

O apuramento rigoroso dos resultados do investimento feito, sobretudo público, está por fazer e está longe de ser do interesse da autarquia. É pelo menos o que se pode concluir dos obstáculos que Armindo Jacinto levantou, desde Agosto de 2020, à realização deste trabalho do PÚBLICO, mesmo depois de a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco e a Entidade Reguladora para a Comunicação Social o terem sucessivamente condenado por violação do direito de acesso à informação. A despeito disso, em quase três anos, nunca respondeu a muitas perguntas que lhe foram dirigidas e a outras deu respostas que fazem tábua rasa de todas as evidências.

Os números do Instituto Nacional de Estatística (INE) e os dados obtidos junto de outras fontes permitem todavia aproximarmo-nos da realidade. Assim, desde logo, em vez da apregoada “inversão da curva demográfica” — qualificada pelo marketing municipal como “uma das maiores conquistas da nova Marca de Idanha”, que teria feito com que a população do concelho tivesse crescido pela primeira vez em 70 anos —, as estatísticas do INE mostram que de cerca de 9700 habitantes em 2011 a população do concelho caiu para cerca de 8400 em 2021.

E no lugar das 55 empresas e 350 postos de trabalho alegadamente criados só na IBR até 2018, o INE contabiliza a constituição em todo o concelho, que é o quarto mais extenso do país, entre 2011 (criação da IBR) e 2018, de 60 empresas e entidades equiparadas no sector da agricultura, produção animal, caça e florestas. No mesmo intervalo de tempo, foram dissolvidas 17, o que dá um saldo de 43, tendo-se registado um acréscimo de apenas 19 pessoas empregadas no sector.

Quanto aos 10 milhões de euros de origem privada que Armindo Jacinto garantia terem sido investidos na IBR naquele período, ignoram-se as fontes do autarca, que não as revela, mas o número em causa é desmentido pela própria Comissão de Avaliação, Acompanhamento e Supervisão da incubadora (CAAS) — entidade formada pelo município, pela Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Centro (DRAPC) e pelo Instituto Politécnico de Castelo Branco. De acordo com um documento elaborado por um dos membros desta comissão em Junho de 2016, numa altura em que a incubadora atingiu o maior número de agricultores, cerca de 50, o somatório dos investimentos aprovados ascendia a 5,7 milhões de euros. Contudo, a parcela deste total que provinha do auto-investimento ficava em 1,3 milhões, resultando o resto de ajudas públicas.

Outro indicador que dá uma ideia do impacte da IBR na economia local é a evolução do volume de negócios acumulado na totalidade dos “estabelecimentos” do sector agrícola instalados no município. Segundo o INE, registou-se nesse domínio um decréscimo de 17 milhões de euros para 15 milhões entre 2011 e 2018, com uma ligeira subida para 15,5 milhões em 2021.

Centro empresarial ou caixa de correio
Relativamente aos 29 milhões de euros que a Bloom Consulting diz terem sido captados pela sua estratégia, entre 2014 e 2019, o PÚBLICO questionou a empresa sobre a origem e significado deste dado, mas não obteve resposta. O mesmo aconteceu com outras perguntas concretas sobre os resultados da sua actuação em Idanha-a-Nova. Em vez das respostas prometidas, o responsável pela empresa em Portugal, Filipe Roquette, limitou-se a transmitir, depois de consultar a Câmara de Idanha, um conjunto de generalidades conhecidas sobre a estratégia proposta e sobre alguns dos seus alegados benefícios.

Em todo o caso, ainda de acordo com o INE, o volume de negócios acumulado em todos os sectores de actividade do concelho caiu de 71 milhões de euros em 2014 para 68 milhões em 2021.

No que respeita aos “300 projectos empresariais” que, segundo a consultora, manifestavam em 2019 o “desejo real de se mudarem” para Idanha, ou às “348 entidades” que estavam a ponderar a sua integração no Idanha Green Valley, os números do INE permitem concluir que essas expectativas não se concretizaram. Na sua base de dados de empresas, consta que entre Janeiro de 2019 e Dezembro de 2022 foram constituídas no município apenas 108 empresas e dissolvidas 45. Antes disso, entre 2014 e 2019, os dados não são muito diferentes: constituídas 129 empresas e dissolvidas 54.

Por outro lado, olhando para as poucas dezenas que podem estar relacionadas com os programas Recomeçar, trata-se maioritariamente de microempresas unipessoais e de empresários em nome individual, parte dos quais não desenvolve qualquer actividade no concelho de Idanha. Alguns têm os seus serviços noutras zonas, incluindo Lisboa, e limitam-se a ter a sua sede fiscal no edifício do Centro Empresarial de Idanha-a-Nova. Isto porque, supostamente, esta entidade funciona como uma incubadora de empresas, espaço de apoio ao empreendedorismo e alojamento de empresas.

Na prática trata-se sobretudo de um local onde se pode alugar uma sala de reuniões, receber correio, fazer fotocópias e usar a morada como sede social. Concretamente, muitas das cerca de 70 empresas que o site do CMCD — entidade que gere o centro empresarial em articulação com o município e a Escola Superior de Gestão de Idanha-a-Nova — identifica como tendo ligações àquele centro já se encontram extintas, não têm qualquer actividade, não se lhes encontra qualquer rasto no Registo Comercial, nem na Internet, ou têm a sua sede noutras regiões do país.

Uma zona industrial às moscas
É o caso de uma empresa com sede e instalações em Abrantes e que, segundo um dos seus sócios, apenas aluga esporadicamente uma sala no Centro Empresarial de Idanha para se reunir com clientes que tem na região. Um outro empresário, que tem actividade e escritório em Lisboa, disse ao PÚBLICO que a sua morada fiscal é a daquele centro empresarial apenas por uma questão sentimental. “A minha família é originária da zona e o facto de haver mais uma empresa ali registada pode ser útil ao desenvolvimento local.”

Quanto a benefícios que essa situação lhe traga, responde: “Nunca tive benefício nenhum.” Pedindo para não ser identificado, contou que chegou a tentar contactar outros empresários com sede no centro, para criar eventuais sinergias, e não conseguiu encontrar “um único”. Algumas das empresas de fora que ali têm a sua sede apresentam a particularidade de ter o município local como único cliente na região, através de ajustes directos.

De acordo com os testemunhos ouvidos pelo PÚBLICO, os apoios previstos no regulamento do centro para as empresas consideradas em incubação — em tudo semelhantes aos que constam do regulamento da IBR e que incluem “apoio científico e tecnológico” e “apoio ao financiamento” — são em boa verdade inexistentes, tal como acontece na IBR.

Instalado numa das entradas de Idanha, quase sem sinais de vida, o centro empresarial é o espelho da zona industrial semideserta onde foi construído, e da própria vila que se esconde atrás da propaganda e dos seus equipamentos públicos e infra-estruturas sobredimensionados. A poucas dezenas de metros, encontra-se um grande restaurante abandonado há muito; em frente há uma fábrica de queijos que chegou a ser um dos maiores empregadores do concelho e está falida e fechada desde 2016; e dos 82 lotes em que foram divididos os mais de 30 hectares da zona industrial criada pela câmara há 30 anos, nem 20 acolhem alguma espécie de actividade económica.

Publico


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