Ser nomeado em substituição, para só depois concorrer e ganhar: foi o percurso de uma Ex-deputada do PS, um Ex-autarca, um marido de uma deputada e muitos outros.
Em 2019, acabava-se mais uma legislatura. Com o fim iminente do XXI Governo Constitucional de Portugal, os portugueses preparavam-se para ir às urnas – e vários membros de gabinetes do Executivo sondavam o mercado de trabalho. No caso de Ana Margarida de Brito Pedroso, chefe de gabinete da então secretária de Estado da Saúde Raquel Duarte, o futuro acabaria definido em Março de 2020: seria nomeada em regime de substituição para secretária-geral da Saúde, sem recorrer a procedimento concursal da Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (CReSAP). No Ministério da Justiça uns meses antes, outra chefe de gabinete recebera também uma oportunidade: Helena de Almeida Esteves, do gabinete da secretária de Estado Adjunta e da Justiça Helena Ribeiro, foi nomeada em Fevereiro de 2019 para secretária-geral adjunta da Justiça, também em regime de substituição.
Cada uma destas chefes de gabinete teve saídas diferentes durante a primeira legislatura de António Costa, mas fizeram um caminho comum: foram notadas pelo Governo vigente, nomeadas em regime de substituição e quando abre o concurso, muito depois do tempo que a lei permite – mesmo um ou quase dois anos depois – vencem-no. E nos procedimento concluídos desde 2020 analisados pela SÁBADO esta tem sido uma prática comum.
No caso da secretária-geral da Saúde Ana Pedroso, jurista dos quadros do Serviço de Utilização Comum dos Hospitais, que tem saltado de nomeação em nomeação governamental desde que foi adjunta de Correia de Campos, ministro da Saúde do primeiro executivo de José Sócrates, o procedimento concursal abriu a 16 de Novembro de 2021, um ano e oito meses depois de ter assumido o cargo – muito além dos 90 dias impostos pela lei para pedir a abertura de concurso pela CReSAP após nomeação em regime de substituição. A secretaria-geral da Saúde não respondeu em tempo útil às questões da SÁBADO.
Uma pessoa, duas nomeações
No caso de Helena de Almeida Esteves, o caso é mais confuso. Um ano depois de assumir o cargo de secretária-geral adjunta em regime de substituição, subiu mais um degrau – é escolhida para secretária-geral da Justiça, uma nomeação novamente em regime de substituição, e José Brandão Pires vai para o lugar vago de secretário-geral adjunto. O concurso para secretário-geral adjunto abre em Maio de 2019, dentro dos limites da lei, mas a CReSAP teve de repetir o concurso por não haver "um número suficiente de candidatos" adequados. A repetição do procedimento só abriria quase um ano depois, em Março de 2021, mas o organismo responsável pelos concursos de direcção superior na Administração Pública chegou à mesma conclusão: "O júri constatou que no conjunto de todos os candidatos avaliados não encontrou três candidatos com mérito para constituir a proposta de designação a apresentar ao membro do Governo", lê-se no despacho da CReSAP.
"Assim, informa-se que estão reunidas as condições previstas no no 9 do artigo 19º do EPD e que, pode o membro do Governo competente para o provimento proceder a recrutamento por escolha, de entre indivíduos que reúnam o perfil definido pelo aviso de abertura", lê-se. Problema: a escolhida para secretária-geral adjunta da Justiça é Helena Tavares, que exercia já as funções de secretária-geral da Justiça em regime de substituição. À SÁBADO, fonte oficial do Ministério da Justiça garante que a situação ficará normalizada quando concluir o concurso para secretária-geral. "No despacho que a designou [secretária-geral adjunta] foi mantida a sua designação como secretária-geral em regime de substituição, uma vez que se encontrava a decorrer na CReSAP o concurso para secretário-geral. Até à conclusão do procedimento e consequente designação do cargo de secretário-geral (pelo membro do Governo) a dra. Helena de Almeida Esteves exerce, em regime de substituição, funções de secretária-geral e o dr. Jorge Brandão Pires funções de secretário-geral adjunto. Com a designação do Secretário-Geral cessarão as actuais situações de substituição", justifica. A mesma fonte acrescenta que, enquanto for secretária-geral em regime de substituições, Helena de Almeida Esteves receberá como tal – "a diferença da remuneração base de ambos os cargos é de 578,18 euros mensais." "A designação de Helena de Almeida Esteves como Secretária-Geral Adjunta teve por base a sua experiência profissional no Ministério da Justiça ao longo de mais de 30 anos, exercendo funções dirigentes neste Ministério desde 1993, factores que estiveram igualmente na origem da sua designação como Secretária-Geral em regime de substituição", concretiza a Justiça.
Nem a secretaria-geral da Saúde, nem a Justiça responderam à SÁBADO sobre os atrasos e emaranhados das nomeações de substituição. Contudo, a deputada Alexandra Leitão, Ex-ministra da Modernização do Estado e Administração Pública, admite que a legislação vigente tem problemas. "Enquanto ministra com a tutela da Administração Pública preparei uma alteração à lei dos dirigentes que, entre outras coisas, reduzia esse prazo (e permitia, por exemplo, que a própria CRESAP abrisse o concurso se o prazo fosse ultrapassado). Mas com a dissolução da Assembleia da República acabou por não ser aprovada", lamenta a antiga governante, responsável pela pasta durante o segundo executivo de Costa. "Os procedimentos concursais na Administração Pública, seja para dirigentes, seja para outros trabalhadores, devem ser simplificados para serem menos morosos, sendo que isso exige alterações legislativas."
Um exemplo de morosidade foi o processo de Vasco Hilário. Após três anos à frente da Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público, foi nomeado no anterior executivo técnico especialista do secretário de Estado Adjunto e da Defesa, Jorge Sanches, a 1 de Fevereiro de 2021. Esteve lá 22 dias. A 23, é nomeado em regime de substituição director-geral de Recursos da Defesa Nacional. O concurso só foi aberto em Janeiro de 2022, quase um ano depois.
Os voos do diplomata
Os abusos inerentes ao regime de substituição, assim como o cumprimento dos prazos de abertura dos concursos, têm sido um problema. Em Outubro de 2021, durante uma audição parlamentar do presidente da CReSAP Damasceno Dias, os deputados da Comissão de Administração Pública, Modernização Administrativa, Descentralização e Poder Local referiram que desde 2019 mais de 70% dos escolhidos em procedimento concursal já tinham ocupado as funções em regime de substituição. A resolução destes problemas seria "o primeiro passo para a credibilização da CReSAP e para dar igualdade de oportunidades", concordou o líder do organismo.
Outro caso de substituição seguida de nomeação é o de Paulo Jorge Lopes Lourenço, diplomata de carreira com nomeações de adjunto diplomático na Defesa entre 2004 e 2006 (PSD e PS) e adjunto dos Negócios Estrangeiros entre 2006 e 2009 (PS). Foi quando João Gomes Cravinho substituiu José Azeredo Lopes como ministro da Defesa, em Outubro de 2018, que se tornou chefe de gabinete do novo governante. Quatro meses depois, Cravinho nomeia o seu chefe de gabinete para director-geral de Política de Defesa Nacional, em regime de substituição. A CReSAP abriu concurso e, após o júri não encontrar três candidatos adequados, o procedimento foi repetido no fim de 2020, cerca de um ano e meio depois da nomeação inicial. À segunda foi de vez: a 19 de Fevereiro de 2021, Paulo Lourenço foi incluído na lista final de três candidatos aprovados. Lá constava também Nuno Campilho, o antigo presidente de junta de freguesia de Oeiras e São Julião da Barra, Paço de Arcos e Caxias e Ex-candidato do PS. O escolhido foi Paulo Lourenço, nomeado ainda nesse mês. Mas que, afinal deixou o cargo a 6 de Dezembro de 2022. A Direcção-Geral da Política da Defesa Nacional, à SÁBADO, não respondeu sobre o procedimento.
Ou seja, esteve mais tempo em regime de substituição – quase dois anos – do que como dirigente confirmado pela CReSAP. Onde está Paulo Lourenço? No fim de Dezembro, tornou-se Embaixador de Portugal na Cidade da Praia, em Cabo Verde, agora com Cravinho já ministro dos Negócios Estrangeiros.
O regime de substituição é um problema por resolver, é certo, então e a proximidade dos candidatos dos partidos de poder? Pode ou não ser um factor de peso nas escolhas? À SÁBADO, o presidente da CReSAP "nada tem a comentar quanto a este ponto". "A lei dá ao membro do Governo quer a possibilidade de nomear dirigentes em regime de substituição, quer a de escolher qualquer um dos nomes que consta da shortlist. Cabe à CReSAP o papel de seleccionar três candidatos preferencialmente adequados para o exercício do cargo", frisa.
16 vezes na shortlist
Uma coisa é certa: vários dirigentes do PS e até Ex-deputados socialistas chegaram a cargos da administração pública por esta via desde 2020. Paulo Langrouva, Ex-presidente de câmara de Figueira de Castelo Rodrigo e actual vereador, foi nomeado, em regime de substituição, vogal do conselho directivo do IEFP no início de 2022. Em Setembro, foi confirmado pela CReSAP.
Também há Ex-deputados na administração pública. A CReSAP também confirmou em Julho de 2021 Carla Tavares presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego – cargo que já exercia em regime de substituição desde Janeiro de 2020.
No dia 12 de Julho de 2021, no último Verão antes de a legislatura acabar, o deputado do PS e Ex-vereador da Marinha Grande João Paulo Pedrosa foi designado para o cargo de director de segurança social do Centro Distrital de Leiria, do Instituto da Segurança Social – e renunciou ao mandato de deputado. À SÁBADO, lembra que é "funcionário do Instituto da Segurança Social há mais de 30 anos, com uma vasta a longa experiência no distrito de Leiria". "Há, talvez, 10 anos que concorro a concursos da CReSAP, tendo ficado na shortlist em, pelo menos (ao que me lembro) 16 vezes, sem nunca ter sido nomeado", afirma. E acrescenta: "Sou também, provavelmente, um dos poucos concorrentes ao nível nacional, em todas as áreas de concursos da CReSAP, que nunca foi nomeado em regime de substituição para fazer currículo." Após a experiência parlamentar, consegue um lugar de dirigente na administração pública, para o qual garante ter-se candidatado "como qualquer outro cidadão".
Quem ficou com mais um alto cargo dirigente no currículo (com regime de substituição) foi Carlos Alberto Fernandes Pinto. Nomeado vogal do Instituto de Informática da Segurança Social, IP em regime de substituição a 6 de Outubro de 2020, o concurso arrastou-se ao longo de quase um ano. O procedimento foi aberto, mas necessitou de repetição porque, de novo, não houve número suficiente de candidatos apurados pela CReSAP para propor ao membro do Governo. O concurso abriu novamente no dia 3 de Setembro de 2021 – e da lista de três foi escolhido Carlos Pinto, que já estava em regime de substituição. "A tramitação dos procedimentos concursais é da única e exclusiva competência e responsabilidade da CReSAP, pelo que só a ela deverá ser endereçada a questão do tempo decorrido na mencionada tramitação", defende-se Carlos Pinto à SÁBADO.
"Cada um com carreiras distintas"
Carlos Pinto tem várias passagens por gabinetes ministeriais e autárquicos do PS. Primeiro com o secretário de Estado da Segurança Social Pedro Marques em executivos de José Sócrates, depois na câmara de Lisboa com Fernando Medina, com uma passagem mais recente como chefe de gabinete de Cláudia Joaquim, secretária de Estado da Segurança Social do primeiro executivo de Costa.
É também marido da deputada socialista Susana Amador, Ex-secretária de Estado da Educação e Ex-presidente da câmara de Odivelas. Mas Carlos Pinto justifica a nomeação com a sua "carreira de 30 anos na Administração Pública, como jurista e dirigente, a maior parte dela no âmbito da área da Segurança Social e do Trabalho". E desvaloriza a relação com a deputada, autarca e Ex-governante socialista: "Sou efectivamente casado, não com uma Ex-secretária de Estado, mas com uma mulher há já 28 anos, numa relação de matrimónio e de partilha de vida em comum, mas cada um com carreiras absolutamente distintas e autónomas. Eu como servidor público no âmbito da Administração Pública, ela como colaboradora de organizações internacionais e de ONGs e como autarca e política. É pois manifestamente abusiva e mesmo difamatória a alegação que vem feita."
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Alexandre R. Malhado
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