sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

A fábrica do populismo (Rádio Observador)

A estratégia do bloqueio do Governo, um pouco por toda a comunicação social, que acha que está a fazer escrutínio quando está a comer o que lhe põem no prato, resulta também na ocultação ou confusão.

A maioria daqueles que ajudam a fazer crescer a vaga populista que politicamente desagua na extrema-direita radical jura a pés juntos não ser populista e nada ter que ver com os partidos que se alimentam desse populismo, como o Chega. Mas não é o Chega que cresce por si, é um partido demasiado rude, sem quadros, corrupto, mas que funciona como uma rémora colada a uma baleia. A baleia cresce, a rémora viaja com ela, alimenta-se e cresce também. Mas é um subproduto, o produto é outro.

Nestes dias, o primeiro desses reforçadores do populismo tem sido o Governo. Tem escolhido mal, tem hesitado em admitir os erros, e depois, encostado à parede, tenta primeiro encontrar um bode expiatório, até acabar por se render. Não admite, rende-se. Depois tenta explicar-se e o cheiro a fraqueza, nuns casos, cobardia, nos outros, atrai os predadores. O rastro que deixa é o pasto para o populismo, e o populismo não faz distinções, alimenta-se de tudo, no meio da confusão geral. Alimenta-se de "casos e de casinhos”, porque a distinção fica diluída na sucessão de erros clamorosos e culpas sem responsáveis.
Mas existem fornecedores do alimento populista, cuja vida é facilitada pelo Governo, mas que mesmo assim ajudam a fermentar a podridão de que se alimenta o populismo. E sabem muito bem o que fazem, e estão a fazê-lo com muito mais profissionalismo do que os spin doctors governamentais. E estão a ganhar a guerra todos os dias, uma guerra inorgânica, sem regras, política até ao tutano, com objectivos e interesses definidos, e que é muito mais eficaz do que os partidos da oposição. É uma guerra que não faz eleitores para o PSD, mas para o Chega e, com esses eleitores do Chega, pretendem pôr ordem no PSD. O objectivo não é colocar o Chega no poder, ou a governar sozinho, é mesmo pôr um PSD fragilizado no poder, eventualmente aliado à IL ou mesmo ao Chega, um PSD capturado para a sua agenda de direita radical, e aos interesses que servem. Aproveitam-se da crise do partido, das ambiguidades em que se tem enterrado, dando-lhe aquilo que lhe falta, eficácia numa oposição radical, que nada tem de social-democrata.

Gravura inglesa (1889)

Os próceres da direita radical no sistema dos media, como é o caso do Observador, para quem o PSD é demasiado próximo dos socialistas, o CDS perdeu utilidade, a IL ainda é muito pequena, o Chega útil mas não frequentável, precisam do PSD, do ponto de vista da “massa de manobra” do voto e para isso precisam de um populismo forte como instrumento de pressão.

O problema, correctamente diagnosticado pela direita radical, está na margem de manobra que tem o Governo com a sua maioria absoluta, e com a grande distância do PS de uma oposição dividida e longe do poder. Por isso, o seu objectivo, bem claro no orgasmo matinal da Rádio Observador, é o bloqueio do Governo, a sua perda de prestígio, ampliando os seus tropeções e asneiras, tornando impotente o exercício da governação, enredada nas sucessivas crises. Mesmo que António Costa diga que não perde um minuto com os “casos e casinhos”, é mais que óbvio que perde mesmo muitas horas.

Mas esta estratégia tem um segundo aspecto igualmente bem pensado e melhor executado: apesar de tudo, o Governo faz algumas coisas bem, outras potencialmente com capacidade de virem a dar resultados. Eles sabem disso, e por isso a estratégia do bloqueio, disseminada um pouco por toda a comunicação social, que acha que está a fazer escrutínio quando está a comer o que lhe põem no prato, tem também um resultado de ocultação ou confusão.

Voltando de novo ao orgasmo matinal da Rádio Observador, é muito evidente como uma qualquer acção governativa pode ser tratada tanto de uma maneira como o seu contrário: o Governo gastou X, mas devia gastar Y, ou X é demais e devia gastar Y, que é menos; um dia são despesistas, noutro dia unhas de fome; num dia o controlo do défice é fundamental, noutro dia o Governo devia abrir os cordões à bolsa; nestes dias, todos os dias, as greves e manifestações que habitualmente eram intrinsecamente más, agora, são boas; até um dos casos portugueses é apresentado como sendo da natureza de “justificação” para a raiva bolsonarista, enquadrado na culpabilidade de Lula na tentativa de golpe de Estado; uma vez é porque falam, noutra porque estão calados – há apenas uma constante que nada tem que ver com escrutínio, mas com o uso político da má-fé. Não é jornalismo, é propaganda política.

A única coisa que não muda são os alvos, António Costa em primeiro lugar e os ministros que estão na lista de abate, nalguns casos os que pensam ser mais eficazes e por isso mais perigosos. E há também um grande silêncio sobre os interesses privados, quer na TAP, quer na crise hospitalar, quer no comportamento dos senhorios, quer no contraste entre os baixos salários e os lucros, quer em toda a agenda económica e social do tipo da IL.

Há um outro efeito perverso, que é deixar para o populismo a tarefa de erodir o Governo e manter o PSD capturado, impedindo uma crítica séria e reformista da governação, que é bem precisa e necessária e que nada tem que ver com isto. E como acontecerá se chegarem ao poder, vão ver como começam a falar de “populismo de esquerda” e a pôr na ordem os mesmos que agora atiçam. Com a polícia, claro.

O autor é colunista do PÚBLICO

José Pacheco Pereira

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