Uma coligação PS/Chega para a cada vez mais acelerada agonia do regime democrático é o que se anuncia até ao fim da legislatura. Habituem-se.
Pedro Nuno Santos não faz grande falta no Governo. Como ministro das Infra-estruturas e Habitação, o seu legado é uma crise habitacional dramática, agravada pela transformação do imobiliário em produto de exportação para clientes de Vistos Gold e de abébias fiscais para estrangeiros ou "nómadas digitais" – políticas problemáticas, até pelos riscos de corrupção e lavagem de dinheiro sujo, que o PS nunca contrariou e alegremente promoveu –, sem qualquer avanço na regulação eficaz do mercado ou na oferta de habitação pública.
Na sua proclamada paixão pela ferrovia, o balanço é um conjunto de obras a falhar prazos e a derrapar custos, desaproveitando a chuva de dinheiro europeu que lhe permitiu anunciar muito, mas concretizar pouco. No novo aeroporto de Lisboa foi o que se viu: um anúncio histórico a romper uma indecisão de 50 anos, rompido ao fim de 50 minutos. E na TAP, pior ainda: uma bomba-relógio de 3200 milhões de euros, entregue a uma gestão predatória, mais empenhada nas vantagens pessoais dos administradores do que na recuperação da empresa.
Claro que Pedro Nuno Santos teve a elevação de se demitir, face ao escândalo indefensável de Alexandra Reis e da sua escalada da TAP para a NAV e para o Governo. Só essa noção básica de responsabilidade política deixa-o uns furos acima de Fernando Medina, a quem bastou dizer que não sabia de nada para que a sua ignorância táctica o salvasse. Um ministro das Finanças tontinho é mesmo o que o país precisa. Nos Governos de António Costa, uns são decididamente filhos e outros enteados.
Também foi simpático para Pedro Nuno vermos quem veio para o seu lugar: João Galamba, o amigo de Sócrates sob escrutínio judicial que fez amizades nos lóbis da energia e que agora as fará nos lóbis da construção; e Marina Gonçalves, que mais uma vez demonstra a estreiteza dos mecanismos de recrutamento de António Costa: do partido para os gabinetes ministeriais, dos gabinetes ministeriais para as secretarias de Estado, das secretarias de Estado para os ministérios, numa escalada que premeia a obediência e fidelidade ao chefe. Pouco inspirador.
O que faz com que tantos suspirem por Pedro Nuno é a recordação do seu papel na Geringonça como agregador das esquerdas e, num plano mais estrutural, a admiração viciosa que Portugal continua a ter por políticos autoritários, que cortam a direito – um estilo de voz grossa com antecedentes bem-sucedidos, de Costa e Sócrates a Cavaco, até ao remoto Salazar. Uma medida, enfim, da fragilidade da nossa democracia e da nossa queda para o iliberalismo como remédio mal-amanhado para a falta de instituições sólidas e eficazes.
Sucede que todo o caso de Alexandra Reis é exemplar dos custos de termos más instituições e demasiada concentração de poderes, precisamente os traços de regime que as lideranças afoitas de políticos como Pedro Nuno Santos agravam. Alexandra Reis ilustra o sistema de carreiras clientelares que tomou conta da gestão pública em Portugal, nas direcções-gerais, reguladores e empresas do Estado, onde se progride por nomeação governamental feita por fidelidade ao chefe, sem demonstração de currículo ou competência técnica.
Há décadas que a Administração Pública autónoma e competente tem vindo a ser enfraquecida e esvaziada, por vários Governos. O PS assalta esse poder institucional do Estado para o distribuir pelos amigos; o PSD assalta-o para o privatizar aos amigos. Se alguém acha que um dos vícios é menos nocivo e mais defensável do que o outro, boa noite e bons sonhos.
Neste contexto, as reacções da oposição ao último caso da TAP não vão além do oportunismo imediatista, procurando capitalizar votos para uma eleição que não vem a caminho (e que os próprios só exigem porque sabem que ninguém vai topar o seu bluff), sem perceber a dimensão estrutural de um caso que demonstra, mais do que as trapalhadas de um Governo, um Estado em desagregação. É também por isso que eleições antecipadas não serviriam de nada: a oposição que as exige não percebe, ela própria, o que tem de mudar.
Fora da oposição, também é proibido fazer perguntas. O PS já decretou o assunto como encerrado (o PS tem mais jeito para "encerrar" assuntos do que para resolvê-los) e quem insistir no escrutínio é arrumado como "chegano" pela matilha do partido no poder, nas declarações públicas, caixas de comentário e redes sociais.
O Chega transformou-se no grande álibi do PS. A cada caso de caciquismo, a cada escândalo de má gestão, a cada mancha de opacidade, a cada negócio mal explicado, PS e Governo arrumam o assunto com um apelo à resignação e ao medo, insistindo que a discussão pública é uma ferramenta de promoção da extrema-direita. O Chega, por sua vez, retribui o favor, cavalgando a degradação das instituições democráticas como ativo eleitoral. Funcionou lindamente para os dois partidos nas últimas eleições. Continuará a funcionar até que o próprio regime democrático esteja reduzido a uma caricatura disforme.
Que se lixe o país. António Costa e André Ventura têm uma relação simbiótica de promoção cruzada para obtenção de poder pessoal. Costa argumentando que é preciso deixar espatifar o país e as suas instituições, porque senão vem o Chega espatifá-las. E Ventura demonstrando que há cada vez menos para salvar; e que mais vale partir a loiça. O pântano de que António Guterres fugiu há mais de 20 anos é hoje o habitat natural da política portuguesa. Sem um sobressalto democrático (que terá de vir de fora dos partidos), estamos em maus lençóis.
João Paulo Batalha
sabado
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