quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Catarina e a beleza de calar fascistas

Em nome da suprema protecção da vida humana e do bem-estar social, as democracias tornam-se menos democráticas.

Vocês conhecem-me: nunca resisto a escarafunchar uma boa ferida. Vamos falar outra vez da invasão do Capitólio e dos edifícios dos Três Poderes? Houve uma reacção quase unânime ao meu último artigo, seja de gente que habitualmente discorda de mim, seja de gente que costuma concordar. A esmagadora maioria dos leitores considerou bárbara e abstrusa a minha proposta de que num sistema democrático a polícia deve ter a possibilidade de usar força letal para suster a invasão das sedes do poder executivo, legislativo ou judicial, como ameaça tornar-se moda.

A regra dos leitores é esta: se a multidão está desarmada, a polícia não pode disparar. Ou seja, se na próxima manifestação nas escadarias da Assembleia da República a polícia se mostrar incapaz de controlar a multidão com bastões e gás lacrimogéneo, aconselha a suprema defesa da vida humana que as autoridades se afastem e aguardem reforços enquanto o Palácio de São Bento é saqueado e vandalizado. O mesmo em relação ao Palácio de Belém: após garantida a segurança do Presidente da República, a polícia deve sacar não das pistolas mas dos telemóveis, esperar que a invasão se desvaneça, e depois fazer como no Brasil: analisar a urina e as fezes deixadas no local para identificar os criminosos.

Há um lado de radicalismo humanista nesta tese que é bonito de ver – sem ironias. São pessoas que embora odeiem bolsonaristas defendem que é preferível deixar destruir o Palácio da Alvorada de cima a baixo e atirar pela janela o mobiliário dos Niemeyer do que perder uma só vida humana – mesmo que seja a vida de um “fascista”. Adoraria subscrever essa tese, não fosse o meu duplo receio acerca das ameaças que recaem sobre os sistemas democráticos.

Receio 1: a ultrapassagem das linhas vermelhas. Foi o tema do último artigo e não me vou repetir. Noto apenas que a legítima defesa está prevista na lei, tanto para proteger as pessoas como o património. Essa legítima defesa necessita de ser proporcional, e o ponto é mesmo esse: pelos vistos, ninguém atribui importância vital – é mais uma constatação do que uma crítica – à defesa dos símbolos da democracia, ainda que na invasão do Capitólio tenham morrido cinco pessoas, incluindo um polícia e uma manifestante baleada pelas autoridades.

Receio 2: a limitação progressiva das liberdades políticas em nome da defesa da vida humana. Sendo as invasões inaceitáveis, como podem elas no futuro ser impedidas, para evitar a violência e o risco de derramamento de sangue? Não falta gente a dar a receita. A priori, colocando cercas ou até ilegalizando tudo o que cheira a direita radical, com o argumento de travar a ascensão de novos Trumps e Bolsonaros. A posteriori, permitindo que o poder executivo alargue as suas competências e autoridade para averiguar não só quem invadiu edifícios, mas todos os seus financiadores e colaboradores, numa vasta investigação aos “terroristas” e seus cúmplices.

Tantas tentações perigosas. Em nome da suprema protecção da vida humana e do bem-estar social, as democracias tornam-se menos democráticas, já que toda a dissensão mais vocal e todas as ideias que nos repugnam passam facilmente a ameaças intoleráveis. Para evitar pegar em armas contra o “povo”, colocamos os “deploráveis” e as suas tristes ideias atrás da cerca sanitária, amarrando as suas bocas para proteger os seus corpos. Vivos, mas caladinhos. Como dizia o outro, duas vezes sequestrado por manifestantes, é uma coisa que me chateia, pá.

joão Miguel Tavares

O autor é colunista do PÚBLICO

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