terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Do pântano ao pantanal

O futuro deste Governo depende de saneamentos, de cumprimentos de promessas não realizadas, de exame de consciência e até de retirada de conclusões sobre eleições. Não esquecer que a Madeira vai a votos em Outubro.

Dezembro de 2001: António Guterres dispunha de uma quase maioria absoluta (o parlamento estava efectivamente empatado), mas tivera maus resultados nas autárquicas.

Num discurso célebre, o então PM anunciou que pedia a demissão ao PR, porque se quebrara o elo “entre governantes e governados”.
Invocou dois argumentos: a “crise internacional” que exigia unidade pátria, e a verificação de que esta (já) não existia. Na verdade, o PS ficara com 37% dos eleitos locais, contra 44,95% do PSD e CDS.
Guterres disse então querer a evitar a criação de um “pântano político”, que não se resolveria com uma “moção de confiança na AR”, apesar de antes ter afirmado existir precisamente um problema de “confiança” entre representantes e representados.
No Verão de 2004, Jorge Sampaio empossava Santana Lopes como PM. O PR agia, como veio a confessar, contra muitos dos seus apoiantes, que achavam dever ser a saída de Durão Barroso para Bruxelas sucedida de eleições legislativas antecipadas.
Sampaio não o fez, por entender, como disse em palavras esquecidas, que uma mudança ou impedimento de um PM não implicaria a dissolução da AR, desde que a maioria de apoio ao governo garantisse que o novo executivo mantinha “consistência”, “vontade” de continuar o programa sufragado e “legitimidade”.
Meses depois, o mesmo Sampaio dissolveu a AR (nos termos dos artigos 133 e 172 da CRP) sem demitir o governo.
Tratou-se de um lapso que poucos notaram. Significava que, mesmo sem parlamento efectivo, o executivo mantinha todas as suas capacidades. Apesar do que equivocadamente o PR referiu no discurso de dissolvente, afirmando que a equipa de Santana Lopes passava a governo de gestão.
Ora isto só sucede se o PR demitir o executivo, invocando a impossibilidade de regular funcionamento das instituições (CRP, art. 195, nº 2).
Sampaio acabou por demitir Santana, depois de anotado o erro, embora no anúncio de dissolução já tivesse apontado o que estava errado no gabinete: “uma sucessão de contradições, declarações e descoordenações” entre membros do executivo, embora não as pormenorizasse, “por serem conhecidas do público”.
Coloquemos o controlo remoto do tempo para a frente, em velocidade rápida.
Chegamos a 2022, e verificamos as “contradições, declarações e descoordenações” de Sampaio, amplificadas e chegadas ao paroxismo, com demissões rotundas de ministros e secretários de Estado.
Chegamos a 2022, com demasiados casos de suspeitas e verificações de nepotismo, e de promiscuidade entre o público e o privado.
Chegamos a 2022 com escândalos repetidos na gestão do património dos contribuintes, e com ex-ministros em crise a darem-se ao luxo de falar pelo PM, antes de este se pronunciar.
É assim impossível não ligar o atual plano governativo ao que sucedeu em 2001 e 2004.
As maiorias não geram por si mesmas bom governo. Em geral, o bom governo obtém maiorias.
E a “estabilidade política” não é o bem maior.
Quem o disse foi o insuspeito Guterres, ao referir que poderia ter continuado a governar, porque possuía mandato. Mas essa continuação do poder não obstaria ao já dito “pântano”.
Na situação presente, seria assim importante que o PR – à falta de instância superior entre a consciência individual e Deus – pedisse especificamente uma garantia ao Executivo, para que não tivesse de o demitir, nem dissolver o parlamento.
Não se trataria nem de abuso nem de infração constitucional. Sampaio enunciou uma lista de exigências, quando empossou o também governo de maioria absoluta de Santana Lopes.
Que garantia seria esta? A de que António Costa chefiaria um novo governo, ou um governo remodelado, onde cessassem as ligações familiares e se investigasse a fundo – entre outras empresas públicas ou parapúblicas – a TAP; que gostaríamos de ver como companhia de bandeira, mas não a qualquer preço.
A não ser assim, o charco ameaça transformar-se em pantanal.
Por definição, “uma grande extensão de pântano”.


O futuro dos menos velhos
Trava-se uma discussão atrasada, mas sempre bem-vinda, sobre a sorte dos jovens portugueses.
Apesar de às vezes gastarem sem nexo, ou de viverem acima das possibilidades, a grande maioria está esmagada pela falta de trabalho pleno, desadaptação entre escola e empresa, impostos indiretos, taxas e emolumentos, tantas vezes absurdos, que agravam o custo de vida, e salários baixos, mesmo ou sobretudo para profissionais qualificados.
Não esperem – sem olhar para isto de frente – travar a razia da imigração, nem pensem que se combate a pobreza sem substituir meras políticas de assistência por estratégias de emprego inteligentes.
Há caminhos. Devia existir acordo nacional sobre eles.


Dois ou três Papas
O Papa da minha geração, que moveu montanhas, é João Paulo II. Já Bento XVI, que não quis ser moderno, mas exato, expôs, de forma original, com clareza e profundidade, a relação íntima entre fé e conhecimento objetivo. A sua lição de 2006 em Regensburg, é um dos grandes marcos da Filosofia (religiosa e política) contemporânea.
No Pontificado, a sua renúncia deveu-se ao vislumbre do mal absoluto, disfarçado dentro da Igreja, e a necessidade de alguém menos frágil para o combater eficazmente.
Ainda, a propósito de Ratzinger e Francisco, lembro o filme Os Dois Papas. Dividiu as opiniões, mas é soberbo ao explicar um universo geralmente caricaturado, quando chega à cultura de massas.


Experimentar sons (em Portugal)
No piano, João Barreto evoca The Lonely Tree, aproximação entre o autodidatismo e o erudito (Storm tem também percussão e um enigmático teclado distorcido), e António Rosado combina, entre trevas e luz, variação e rigor, Goya e Granados, em Goyescas. Fado Malvado tem ares de tango em Pontos de Passagem, e os Palankalama colocam o cavaquinho no jazz étnico, com Lama Pela Anca. Quanto a Surma, cria uma espécie de pós-rock ambiental expressionista, em Alla, enquanto Alexandre Soares investe no minimalismo eletrónico e na música concreta, no soberbo Ouvido Interno, e os Torn Fabricks expõem o seu metal mortal em Impera. Lugar especial para André Santos, com Embalo: a guitarra enquanto meditação.

Nuno Rogeiro

Sábado

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