terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Muito lá de casa: uma introdução ao nepotismo lusitano.

Todos estes casos são diferentes, mas sobre todos eles recai a temível pergunta: será que não havia ninguém mais competente?

João Miguel Tavares

Olhem para o mundo do futebol e dêem-me exemplos de pais, filhos e irmãos que tenham sido, todos eles, extraordinários jogadores. Não me estou a referir a pais, filhos e irmãos que tenham jogado futebol de forma profissional. Isso há muitos. Estou a pedir exemplos de absoluta excelência a saltar de uma geração para outra. Temos quantos? Lembro-me de Cesare e Paolo Maldini, no Milão. Os irmãos Laudrup, se quisermos ser generosos.

Agora olhemos para o mundo da arte e façamos o mesmo exercício. Pintores que tenham sido tão geniais quanto os seus pais? Escritores da mesma família que tenham ganho o Nobel da Literatura? Irmãos músicos que partilhem o mesmo número de discos de ouro? Não há – ou, se houver, são cisnes negros, eventos inesperados e de raríssima probabilidade.

Todos nós sabemos a razão porque isso acontece: são profissões, como aqui referi a propósito da decadência futebolística de Cristiano Ronaldo, “furiosamente, impiedosamente, incansavelmente meritocráticas”. É por isso que gostamos tanto delas. As famílias são magníficas a dar amor e consolo. Não são magníficas a reproduzir génios, ou sequer a garantir que pai, filho e irmão são igualmente excelentes no desempenho de uma mesma profissão.

Aliás, nem sequer costumam ser excelentes a manterem-se ricos. É por isso que no mundo dos negócios se fala da “third generation rule” – ou “a maldição da terceira geração” –, que diz que só um terço das empresas familiares sobrevivem à passagem para a segunda geração, e que após a terceira apenas uma ridícula percentagem consegue manter o império. Os Espírito Santo que o digam.

Em qualquer universo altamente competitivo, o nepotismo é uma tragédia. E é por isso que o pobre cidadão português – que mesmo que não saiba isto em teoria sabe com certeza na prática – se contorce todo quando vê esta abundância de pais, filhos, irmãos, mulheres e maridos a governar a pátria e seus infinitos afluentes.

A última semana foi dominada pelas relações afectivas: tivemos a notícia da companheira de um antigo secretário de Estado e porta-voz do PS que agora assumiu o cargo de directora jurídica da TAP (antes ocupado pela mulher do actual ministro das Finanças); tivemos a notícia do companheiro da secretária de Estado da Protecção Civil que assumiu o cargo de coordenador da Protecção Civil do Barreiro (nomeado pelo presidente da câmara de quem a secretária de Estado foi mandatária nas últimas eleições); e, para desenjoar do PS, tivemos a notícia de que a empresa da mulher do líder parlamentar da Iniciativa Liberal foi contratada pelo partido para prestar serviços de consultoria.

Todos estes casos são diferentes, mas sobre todos eles recai a temível pergunta: será que não havia ninguém mais competente? Será que, logo por coincidência digna de cisne negro, a pessoa certa e mais-que-perfeita para o lugar haveria de ser o companheiro de uma pessoa politicamente exposta, para usar um termo que está na moda?

Claro que não somos só nós. Os Estados Unidos estão cheios de dinastias políticas (Kennedy, Bush, Clinton), e o sexto presidente (John Quincy Adams) era filho do segundo (John Adams). Mas não costuma correr bem. Neste momento, o filho do primeiro-ministro é presidente da Junta de Freguesia de Campo de Ourique. Deixo-lhe aqui a triste notícia: as estatísticas da meritocracia são terríveis para filhos com a mesma profissão de um pai famoso. Quanto mais alto se sobe, menos provável é que se mereça lá estar.

O autor é colunista do PÚBLICO


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