terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Linha vermelha é isto – e deve ser defendida com força letal

A polícia não pode deixar as armas no bolso quando uma multidão ululante invade e destrói a casa da democracia.

A entrada estrondosa do Chega na política portuguesa levantou de imediato a questão das “linhas vermelhas”. Ou seja, que tipo de ideias deve um partido político poder defender, e que tolerância deve um regime democrático oferecer em relação aos seus extremos, seja à esquerda, seja à direita.

Ao contrário daqueles que acreditam que se deve ilegalizar um partido só porque as suas ideias são repugnantes, a minha tese sempre foi a mesma, e mantenho-a: defendo o máximo de tolerância em matérias ideológicas, por mais abstrusas e abjectas que elas nos pareçam; ao mesmo tempo que defendo o mínimo de tolerância para quem ataca os pilares básicos de um Estado de direito democrático, a saber: a separação dos poderes executivo, legislativo e judicial; a liberdade de imprensa e de associação; as eleições livres e o respeito pelos resultados do sufrágio universal. Dentro destes limites, pode defender-se tudo. Fora destes limites, é sacar da pistola.

“A democracia só é fraca nos momentos em que falha estrondosamente na defesa das regras que permitem a sua própria existência – e isto, infelizmente, está a ocorrer vezes demais”

A democracia liberal não é tanto um conjunto de crenças, mas antes um método, uma arquitectura que permite a coabitação de várias crenças num espaço comum sem o recurso à violência. A democracia parece muitas vezes um sistema fraco por se mostrar tolerante a ideias tão divergentes – mas essa é precisamente a sua força. A democracia só é fraca nos momentos em que falha estrondosamente na defesa das regras que permitem a sua própria existência – e isto, infelizmente, está a ocorrer vezes demais.

O que aconteceu no Congresso americano há dois anos, ou aquilo que aconteceu neste domingo na Praça dos Três Poderes, em Brasília, não é apenas um evento condenável, que deve ser criticado por todos os democratas – é um ataque violentíssimo ao coração do sistema democrático, que deveria ter sido repelido com força letal. Os manifestantes não pareciam estar armados, nem planearam um atentado contra Lula da Silva ou contra os juízes do Supremo Tribunal.

Mas atentar simbolicamente contra os pilares da democracia, e vandalizar as sedes do poder executivo, legislativo e judicial – que no Brasil, ainda por cima, acumulam com o génio do poder artístico nos edifícios deslumbrantes de Óscar Niemeyer –, é não menos ameaçador. É ensaiar um golpe revolucionário que uma democracia não pode tolerar.

Linha vermelha é isto. Neste contexto, pouco interessa que Lula seja corrupto, como eu acredito que ele é. Infelizmente, a democracia tem muitas falhas, e não garante a eleição de anjos ou querubins. Mas ainda ninguém encontrou melhor sistema político. Não há alternativa disponível mais eficaz. Lula é corrupto? Esperemos que daqui a quatro anos apareça um político melhor para tomar o seu lugar. Entretanto, ele é o Presidente do Brasil. E quem pede ao Exército para o derrubar enquanto destrói o congresso é um inimigo da democracia que não se limita a exprimir uma opinião – age violentamente para a impor aos outros.

Daí a minha defesa do uso de força letal nestas circunstâncias. Ver a polícia recorrer a canhões de água ou a gás lacrimogéneo é um grande avanço civilizacional no controlo de manifestações violentas, em relação a um passado que acabava com gente morta. Mas a polícia não pode deixar as armas no bolso quando uma multidão ululante invade e destrói a casa da democracia. É tibieza. É fraqueza. E é trágico, porque passa a imagem de que é possível fazê-lo sem grandes consequências. Brasília não teria acontecido sem Washington. Esperemos que não aconteça mais.

João Miguel Tavares

Publico

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