A fechar o ano com chave de ouro, tivemos as declarações absolutamente inclassificáveis, insultuosas e sem qualquer respaldo com a realidade, (se não a sua própria, distorcida, fantasiosa e a todos os títulos de uma alienação gritante) do Governador do Banco de Portugal, Dr. Mário Centeno.
O Super Mário das finanças, como em tempos foi apelidado, deve ter batido cert(eir)amente com o cocuruto com demasiada força nos tijolos que aqui a ali cabeceia, ou ingerido algum cogumelo estragado, enquanto recolhia com fulgor as moedas de todos os portugueses, numa ânsia contábil que nos cativou durante anos largamente em sentido literal, constrangendo a vida de todos nós, a um nível quer privado, quer de serviços públicos sem paralelo, até mesmo durante o período da “troika”.
Só esta metáfora poderá explicar a alarvidade das suas últimas declarações, feitas à margem de uma conferência de imprensa, e porque não dizer de qualquer resquício de realidade sensata, que apresentava o Boletim Económico de Dezembro e os inerentes desafios que Portugal teria pela frente. Se não foi a primeira opção, então teremos que concluir que o dito senhor é mesmo mal-intencionado e um demagogo exímio, que ameaça suplantar o mestre que tudo lhe ensinou em termos de política, sabem naturalmente bem a quem me refiro.
Mas passando à mais profunda desfaçatez que dá mote a este artigo, e que passo a citar, “…é de certo modo um mito afirmar-se a existência de famílias endividadas”, já que, segundo o próprio, só 8,8% do último quintil de rendimento mais baixos se encontrava sob o jugo do crédito à habitação, numa desonestíssima afirmação e falta de pejo, para não lhe chamar outra coisa, que é revelador pelo menos de dois fenómenos bastante comuns e particulares que acompanham normalmente o raciocínio deste tipo de declarações e de quem as profere na fauna política.
O primeiro é que o dito senhor não consegue já entender o drama e a realidade que os números e percentagens que tão bem gosta de dissecar de forma estéril nas suas conferências e palestras de autopromoção representam, uma vez que a sua vida burguesa e os rendimentos que aufere deslocaram-no de tal modo da realidade, que o tornam insensível e totalmente dissociado. Por outras palavras, a sua visão do mundo não lhe permite de modo algum entender as opções (ou falta delas) de vida de outros, o que o torna certamente um medíocre economista, dado que embora ele se tenha convencido da sua grande capacidade de analista e de técnico, há que relembrar que a economia que ele tão bem maneja não é de todo uma ciência exacta e lida com a sociedade e o homem nela inseridos. Sem entender essa dinâmica, ou sequer ter empatia pela avassaladora maioria, os tais que estão em risco de pobreza até mesmo com empregos, como há tempos mostrava um estudo, corresse o risco de deturpar certamente as suas conclusões.
A segunda é mais grave ainda e poderá indiciar que o mesmo Dr. Mário e os demais que por aí andam, em bom português, estão-se a marimbar para o facto das pessoas terem ou não poder de compra ou sequer garantias para contrair crédito, efabulando assim uma realidade outra, demagógica, para se convencerem a si e aos outros que estiveram presentes, e ao mesmo tempo ausentes, diria até mesmo deslocado do ponto fulcral desde o início daquilo que viria a dar lugar ao cenário social que temos em mãos.
Seja como for, esta é mais uma entre tantas outras formas de olhar para a realidade, retirando o ónus da culpa que as suas políticas e decisões anos a fio, como cativações, cargas fiscais, programas de contas certas, que são um eufemismo para a tal austeridade que tinha acabado, tiveram na vida daquelas pessoas, em que a vida está de tal modo estagnada que nem lhes é permitido adquirir crédito, limitando-se assim os outros 92% do quintil mais baixo a arrendar casas, muitos deles com rendas próximas de um quarto ou até mesmo metade do seu ordenado, que os faz cair na pobreza e que tanto e tanto querem que também caiam no esquecimento.
Só ignorando que tal cenário existe o Douto conseguirá manter a fachada de grande especialista entendido de várias matérias e, naturalmente, o craque que se reconhece.
Àqueles tais que não têm voz, excepto quando se fartam de ser ignorados e enveredam numa revolta “robspierriana”, como já aconteceu, ou quando a sua realidade dramática e visivelmente gráfica, surge representada numa coluna de barras, ou curva de tendência de forma abstracta e crua, não deixando margem para falácias ou escamoteios de espécie alguma, resta-lhes apenas continuar a empobrecer, dado que todas as suas incapacidades são constantemente negadas e desmentidas por quem os poderia de facto auxiliar, mostrando uma realidade que as abafa e mantêm-nas invisíveis contra a sua vontade.
Subvertesse dessa forma a função económica salutar, e que possui bases e ferramentas de diagnóstico, para prever, minorar e corrigir as situações, pela política bacoca, esta sim verdadeiramente teimosa e perfidamente negacionista e baixa, ignorante propositadamente da condição das pessoas e do seu dia-a-dia, que induz em erro todos aqueles que a olham e abarcam e descansa os espíritos daqueles que deveriam estar em pânico e também envergonhados pelo estado a que chegámos enquanto comunidade e país.
Em vez disso anulasse qualquer indício de que algo não está bem, mentindo com a verdade ou dizendo apenas meia dela.
Só admitindo os erros, as fragilidades, as debilidades sociais e não anulando as conclusões a que se chega, por via quer empírica, quer científica, por pura cegueira ideológica ou mero oportunismo carreirista de política, como aliás Centeno é o exemplo acabado e todo o seu percurso dos últimos anos, o comprovam, poderemos de facto ter uma sociedade bem mais equilibrada, justa, que a todos nos orgulha. Para isso não podemos constantemente martelar números e quando estes não podem mais ser negados, ou não irem ao encontro daquilo que são as nossas convicções e narrativas ou discursos, minimizá-los e extrair dele outra realidade e outro sentido que não seja aquela que eles mesmo contam.
Podemos continuar a alterar os gráficos e o “excel”, é-nos lícito e o programa assim permite, até mesmo os mais estapafúrdios e irreais, mas chega uma hora que os temos mesmo que confrontar, assumindo a quota de responsabilidade que temos, sem nos refugiarmos em desculpas e meias verdades. Esta é a lição que Centeno não aprendeu nos anos todos de estudo que cursou em tantas e tantas cadeiras onde se sentou, fazendo-nos lembrar aquela velha frase atribuída a Oscar Wilde, e aqui adaptada: Mário Centeno sabe os preços de tudo, a sua composição, formação e afectação a produtos, serviços e comportamentos, mas infelizmente e definitivamente não sabe o valor de nada.
Bruno Miguel Monarca
jornaldiabo
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