É impossível estar há quase 50 anos enfiado no aparelho socialista, como Costa está, e não fazer ideia do que é Vinhais ou desconhecer que Carla Alves é a esposa do homem que presidiu a câmara local.
Não façam de nós parvos. Não é aceitável que António Costa, sempre a encher a boca com os anos que já leva em funções executivas – e com razão: começou no século passado como secretário de Estado de Guterres –, venha agora armar-se em desmemoriado quando o nome de Carla Alves está em todas as manchetes. António Costa abordou o tema no Parlamento como se nunca tivesse ouvido falar da “senhora”. Ora, é impossível estar há quase 50 anos enfiado no aparelho socialista, como Costa está, e não fazer ideia do que é Vinhais ou desconhecer que Carla Alves é a esposa do homem que entre 2005 e 2017 presidiu à câmara local. Use as ferramentas de partilha que encontra na página de artigo.
O caso Carla Alves é muito mais grave do que o caso Alexandra Reis. A secretária de Estado só esteve no Governo 26 horas, mas as explicações de António Costa no Parlamento ficam para a eternidade – e são uma tristeza do princípio ao fim. O primeiro-ministro teve a suprema lata de dar lições de feminismo a Catarina Martins e de perguntar sonsamente: “Vou demitir a mulher de alguém só porque o marido é acusado?” A resposta é óbvia: claro que vai. Tal como se amanhã o Ministério Público descobrir centenas de milhares de euros suspeitos na conta da sua mulher, António Costa também terá de se demitir. É preciso explicar porquê?
Vinhais, onde o Ex-autarca socialista Américo Pereira está a braços com a justiça, não é uma vila qualquer. É socialista há tanto tempo quanto António Costa é governante. É a terra onde Armando Vara nasceu, cresceu e floresceu. Faz parte do núcleo do PS de Trás-os-Montes, que tem tido grande peso no partido desde o tempo de José Sócrates. Até a actual vice-presidência da Assembleia da República é ocupada por dois transmontanos: a socialista Edite Estrela e o social-democrata Adão Silva. Querem mesmo convencer-nos de que ninguém fazia ideia de quem era o marido de Carla Alves, excepto o Correio da Manhã?
António Costa visitou a Feira do Fumeiro de Vinhais em 2017. Foi recebido em festa por Américo Pereira, com Carla Alves a seu lado. Há vídeos e fotos. Elogiou “o contributo do autarca socialista para o desenvolvimento da sua terra”. Considerou-o “um bom sinal daquilo que é o novo papel dos autarcas”. Em troca, recebeu uma bela samarra, e foi o próprio Américo Pereira quem a colocou aos seus ombros. Essa samarra, à qual deu bom uso nos dias de frio (vimo-lo muitas vezes com ela), é uma excelente metáfora da posição em que o primeiro-ministro hoje se encontra: enrolado em mais um caso deplorável, por opção própria.
Em Maio de 2022, recebi um e-mail de um leitor de Vinhais. Alertava-me para a acusação contra Américo Pereira avançada pelo Jornal de Notícias. Explicou-me que tinham trabalhado de perto e que, por isso, era “um dia bom para aqueles", como ele, "que sofreram na pele as consequências de enfrentar o senhor presidente de câmara”. Ontem enviou-me um novo e-mail a destruir a tese do “não sabia”: “Não há erro de casting nenhum. Toda a gente no aparelho regional do PS sabe quem é Américo Pereira. E, já agora, a mulher.”
São mentiras, mentiras e mais mentiras. E enquanto o Governo se afunda sob o peso de tanta mentira, o Ministério da Agricultura responde à notícia do PÚBLICO – aquela em que se afirma que Carla Alves tinha informado a ministra das contas arrestadas – deste modo: “Maria do Céu Antunes não tinha conhecimento de qualquer envolvimento de Carla Alves em processos judiciais.” Eis a habilidade linguística a deslizar para a miséria moral. Até quando?
João Miguel Tavares
O autor é colunista do PÚBLICO
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