Há décadas que os oligarcas russos escondem dinheiro ilícito no estrangeiro e embora as sanções aplicadas recentemente tenham em vista impedir este tipo de actividades ilegais, uma grande fortuna continua oculta aos olhos das autoridades. Onde está escondido este dinheiro?
Segundo um relatório publicado em 2020 pela Atlantic Council, uma organização focada no estudo das relações internacionais, a Rússia é a detentora da maior fortuna ilícita do mundo escondida no estrangeiro. O dinheiro pertence a uma elite restrita de oligarcas russos, na qual está incluído o próprio Vladimir Putin, que constituem os principais alvos das sanções aplicadas pela esfera internacional a propósito da invasão da Ucrânia. O controlo destas actividades ilegais redobrou desde então, mas muito do dinheiro continua oculto: onde e como o escondem estas personalidades da elite russa? E acima de tudo: há forma de o impedir?
A lavagem de dinheiro não é uma novidade à elite russa: durante décadas, grandes quantias de dinheiro têm sido escondidas no estrangeiro por diferentes personalidades russas. A técnica sempre foi ilegal, mas desde a invasão da Ucrânia que uma atenção redobrada tem sido depositada na resolução da problemática, nomeadamente através de sanções dirigidas aos principais oligarcas russos naquela que é uma tentativa de dissuadir Vladimir Putin das suas intenções de conquistar a Ucrânia.
Embora vários bens obtidos em países como o Reino Unido ou os EUA já tenham sido congelados, muito do dinheiro escondido pelos oligarcas russos continua fora do alcance das autoridades por ser difícil de determinar a sua origem. Segundo o relatório, cerca de um bilião de dólares, ou seja, aproximadamente 900 mil milhões de euros, estão escondidos no estrangeiro, sendo que pelo menos um quarto será controlado não só pelos oligarcas, como pelo próprio Presidente da Rússia que “parece ser capaz de persuadir os oligarcas dependentes a ajudá-lo financeiramente nos seus empreendimentos de política externa”.
Este dinheiro pode, como realça o relatório analisado pela BBC, “ser explorado e dirigido pelo Kremlin para espionagem, terrorismo, espionagem, suborno, manipulação política, desinformação e muitos outros propósitos nefastos”.
De toda a riqueza russa, e segundo um relatório de 2017 da National Bureau o Economic Research, cerca de 60% está no exterior. Esta informação vai ao encontro à ideia de que muitos dos cidadãos mais ricos do país têm uma grande parte da sua fortuna no estrangeiro, escondendo-a com recurso a estratégias que tornam difícil determinar a sua origem. Isto porque “esses oligarcas contratam os melhores advogados, auditores, banqueiros e lobistas do mundo para desenvolver meios legais que possam ocultar e lavar os seus fundos. Eles, portanto, muitas vezes têm mais recursos do que os reguladores responsáveis de manter a integridade dos sistemas financeiros nacionais”, explica o relatório de 2020.
Como explica um dos membros do German Marshall Fund, “uma organização dedicada à defesa da democracia e ao reforço da relação transatlântica”, segundo o próprio site oficial, Josh Kirschenbaum à Quartz, é fácil encontrar um bilionário numa grande mansão ou um iate, mas “provar que é o proprietário é mais difícil”.
Um exemplo desta dualidade remete à divulgação dos Panama Papers de 2016, um conjunto vasto de documentos confidenciais vazados nesse ano, e que revelou, segundo um relatório da organização Transparency International contra a corrupção, que o antigo vice primeiro-ministro da Rússia e a sua mulher estavam na posse de um jato de cerca 44 milhões de euros, embora as suas riquezas combinadas rondassem apenas os 754 mil euros. As conclusões do relatório indicam que o jato não terá sido registado sob nenhum dos seus nomes, pelo que não seriam diretamente considerados os seus proprietários, mas antes por meio de uma empresa das Bermudas da qual seriam donos.
Empresas fachada, uma forma de esconder fortuna
Segundo um outro relatório desenvolvido pela National Endowment for Democracy, uma organização não governamental dedicada ao “crescimento e fortalecimento das instituições democráticas”, as grandes fortunas dos oligarcas russos são obtidas diretamente do próprio orçamento de Estado do país. Vladimir Putin terá, segundo o documento, encorajado algumas destas personalidades a “roubar do orçamento do Estado, extorquir dinheiro de empresas privadas e até orquestrar a apreensão total de empresas lucrativas”.
De acordo com um exemplo dado pela BBC, os líderes da oposição russa Boris Nemtsov e Vladimir Milov terão denunciado que 60 mil milhões de dólares foram transferidos dos fundos da petrolífera Gazprom para contas de amigos de Putin. Como este, muitos outros casos semelhantes ligam atividades ilegais e corruptas a Putin e a algumas pessoas que lhe são próximas, muitos deles identificados inclusive nos Pandora Papers, um outro conjunto de documentos confidenciais vazados e publicados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos a partir de 3 de outubro de 2021.
Como são, então, ocultas estas grandes quantias de dinheiro obtidas ilegalmente? Na maioria dos casos a resposta é a mesma: empresas fachada.
Uma empresa fachada corresponde a uma empresa que não mantém operações comerciais ativas ou qualquer tipo de ativo significativo e que pode assumir formatos ilegais se, por exemplo, for apenas uma forma de esconder dinheiro ilegítimo. Estas empresas serão depois utilizadas para efetuar variadíssimas compras que não serão associadas ao seu factual proprietário, mas antes ficarão sob o nome da empresa.
Esta estratégia é muito utilizada no esquema da lavagem de dinheiro e é uma das soluções encontradas pelos oligarcas russos que devem saber também onde sedear estas empresas. Segundo o relatório da Atlantic Council, cerca de 36 mil milhões de dólares, ou 32 mil milhões de euros, foram escondidos no Chipre apenas no ano de 2013, concedendo-lhe o título de “Moscovo do Medterrâneo”, como recorda a BBC, sendo que uma grande parte desse dinheiro estava sob o nome de diferentes empresas de fachada.
Nesse mesmo ano, e segundo o mesmo órgão de comunicação, o Fundo Monetário Internacional terá persuadido o Chipre a fechar dezenas de milhares de contas bancárias mantidas por empresas fachada.
Outros territórios como as Ilhas Virgem Britânicas ou as Ilhas Cayman são também muito concorridos no contexto das empresas fachada. Um relatório da Global Witness, citado pela BBC, indica que, em 2018, os oligarcas russos tinham cerca de 414 mil milhões de euros nessas regiões.
“Enquanto que os governos geralmente operam no seu próprio país, um oligarca russo vive (com segurança eminente) em meia dúzia de países, tem camadas de empresas de fachada anónimas em várias jurisdições offshore, e seus fundos movem-se à velocidade da luz entre eles”, explica o relatório da Atlantic Council.
Este tipo de esquemas permite à elite russa armazenar a sua riqueza em locais como o Reino Unido ou mesmo nos EUA no formato de, por exemplo, mansões. Estas propriedades são adquiridas pelos oligarcas sem que os mesmo utilizem diretamente o seu nome até porque indivíduos que escondem a sua fortuna no estrangeiro “não vão comprar imóveis residenciais ou comerciais sob o seu nome real”, como explica, segundo a Quartz, Scott Greytak, diretor de advocacia da Transparência Internacional. Só no Reino Unido estima-se que cerca de 87 mil propriedades sejam anónimas, ou sob o nome de empresas, e mais de mil milhões pertençam a russos acusados de crimes financeiros ou com ligações ao Kremlin.
Em 2016, o Consórcio Internacional de Jornalistas revelou, aquando da sua investigação dos Panama Papers, que uma única empresa tinha sido responsável por criar mais de duas mil empresas fachadas para cidadãos russos.
O que tem sido feito?
Várias medidas têm sido tomadas no sentido de combater a corrupção fomentada pela elite russa, mas foi desde a invasão orquestrada por Putin à Ucrânia que esta problemática ganhou um outro peso e os oligarcas russos passaram a estar no centro de um conjunto vasto de sanções.
Os EUA ocuparam-se de criar uma nova força, “KleptoCapture”, “dedicada a aplicar as sanções abrangentes, restrições à exportação e contramedidas económicas que os Estados Unidos impuseram, juntamente com aliados e parceiros, em resposta à invasão militar não provocada da Ucrânia pela Rússia”, explica, em comunicado, o Departamento de Justiça dos EUA.
Por sua vez, o Reino Unido, investiu na Unexplained Wealth Orders (UWOs), “uma ordem de investigação colocada sob um réu cujos ativos parecem desproporcionais à sua renda, de modo explicar as origens de sua riqueza”, de acordo com o site oficial do governo do Reino Unido. Embora já existisse, a UWO ganhou uma outra dimensão depois do começo da guerra, nomeadamente como uma forma de sancionar os oligarcas russos.
O Reino Unido suspendeu também o seu sistema de vistos gold, que atribuía direitos de residência a quem investisse grandes quantias no país, o que poderia facilitar que os oligarcas russos estabelecessem residência no país.
Malta, um outro destino favorável à lavagem de dinheiro e popular entre a elite russa, suspendeu o mesmo sistema, assim como o Chipre e a Bulgária, que já o haviam feito em 2020.
As sanções aos oligarcas têm sido bem-sucedidas?
As respostas à questão referida dividem-se. Há quem acredite que sim, que os oligarcas russos são uma peça fundamental no jogo de xadrez de Putin, mas há quem acredite que não seja assim tão simples por várias razões.
Um dos problemas frequentemente apontados a este tipo de sanções está relacionado com o tempo que pode demorar às autoridades encontrarem e apreenderem, de facto, os ativos dos oligarcas no exterior. Numa grande parte dos países bloquear o aceso a apartamentos e outros ativos é, de facto, relativamente fácil, mas, confiscá-los permanentemente não é a mesma história.
Para reivindicar e redistribuir ativos estrangeiros congelados, as autoridades, por exemplos, dos EUA, precisam de provar que os mesmo foram usados para cometer crimes ou obtidos enquanto produto de um crime, o que pode ser um processo demorado. Um exemplo deste tipo de situações seria o caso de um prédio de escritórios em Manhattan que pertencia parcialmente a uma fundação iraniana. Em 2008 foi aberto um processo contra a fundação sob a base de que teria violado algumas das sanções impostas pelos EUA ao Irão. O julgamento só foi concluído quase dez ano depois, em 2017, acentuando a demora destes processos. Esse é apenas um prédio de muitos, e os oligarcas russos podem ser proprietários de um conjunto vasto de propriedades.
Definir quem deve ser parte da lista de sancionados pode ser um outro ponto difícil. Diferentes países têm diferentes listas de possíveis pessoas a sancionar, mas, muitas vezes, existe toda uma rede de outros nomes que se relacionam de alguma forma com os principais alvos das sanções e que podem, ou não, ser considerados. “É muito difícil descobrir em que ponto colocamos a ex-namorada de um oligarca na lista porque ela tem um apartamento de luxo”, explica à Slate John Smith, antigo diretor do Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros.
A batalha contra a corrupção terá ainda um “trabalho longo e árduo pela frente”, admite Smith, até porque “é um desafio incrivelmente complexo e difícil para os EUA e outros governos cavar fundo o suficiente através de todas as camadas de empresas fachada e locais offshore para localizar todas as propriedades envolvidas”.
Ainda assim, e mesmo que estas questões não constituíssem um problema, continua a impor-se uma outra questão: as sanções impostas aos oligarcas estão a influenciar Vladimir Putin? Num relatório desenvolvido pelo economista russo Vladislav Inozemtsev, e citado pela Slate, o autor critica as sanções aos oligarcas defendendo que se baseiam numa ideia antiquada de Putin e da Rússia. Atualmente, e segundo o economista, o Presidente russo tem incentivado a uma “nacionalização das elites”, ou seja, um regresso dos ativos e atividades empresariais aos contornos da Rússia.
As “sanções contra os oligarcas afetariam a parte das grandes empresas russas cujos proprietários são mais críticos do regime atual e resultariam num efeito oposto ao desejado: o valor dos ativos dos ‘oligarcas sancionados’ cairia drasticamente e as suas empresas seriam rapidamente compradas pelo Estado ou por funcionários corruptos que estão no mercado há muito tempo”, explica Inozemtsev. Aqueles próximos a Putin, por sua vez, “seriam cobertos pelas novas leis russas, estabelecendo que o orçamento do Estado deve compensá-los pelas perdas causadas pelas atividades de nações estrangeiras”.
Também Angus Roxburgh, ex-correspondente da BBC em Moscovo e consultor do Kremlin, explicou num artigo escrito no The Guardian, que as sanções não estavam a ser eficazes ao seu propósito. “Estas são realmente as sanções certas? Estão direcionadas às pessoas certas? E, crucialmente, já tiveram algum efeito sobre o comportamento de Putin? A resposta às três perguntas é não”, explica.
Embora não negue que possa haver uma relação entre Putin e os oligarcas, Roxburgh acredita que se trata de uma “relação se sentido único”. “Putin permite que eles (os oligarcas russos) prosperem sob duas condições: que eles paguem o dinheiro quando ele precisar e que fiquem fora da política. A ideia de que eles influenciam as suas políticas é pura fantasia”, escreve o ex-correspondente. A prova disso? “As sanções regularmente impostas aos oligarcas desde 2014 não fizeram a menor diferença nas políticas de Putin”.
A corrupção deve ser combatida, mas a ideia de que encontrar oligarcas russos corruptos e expô-los influenciará, de alguma forma, Putin é, segundo Roxburgh, errada. Uma solução “mais ousada e imaginativa”, e possivelmente mais eficaz, seria sancionar “os membros da Duma, o Senado, o conselho presidencial, os altos escalões dos serviços de segurança e defesa, os principais funcionários da televisão estatal”. Ser membro da Duma ou do Senado tem as suas regalias: “és bem pago, podes fazer um discurso ocasional se quiseres, mas basicamente estás lá para votar nas decisões do Kremlin e, acima de tudo, podes extorquir os subornos que quiseres”, explica Roxburgh “essas são as pessoas a serem alvejadas”. Para Inozemtsev a solução seria um “embargo estrito à importação de energia”.
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