Um salário vale pelo que conseguimos comprar com ele. Sofrer um corte de €1200 para €1000 no salário e ter de continuar a pagar uma renda de casa de €1200 é o mesmo que manter um salário de €1000 se a renda da casa passar de €1000 para €1200. Em ambos os casos a perda de rendimento é de €200. Se esse salário for fixado pelo Estado, a decisão política de reduzir o salário, sem que a renda desça, ou de não o aumentar, quando a renda sobe, é também igual. Essas decisões têm a mesma consequência no rendimento disponível. Acontece que, como explica a ciência do comportamento, nem sempre somos racionais e a forma diferente como lidamos com esses cortes iguais é um dos exemplos mais usados dessa irracionalidade. As pessoas tendem a ter uma percepção diferente quando lhes tiram dinheiro directamente do bolso face a quando lhes continuam a dar o mesmo dinheiro embora esse dinheiro deixe de poder comprar o mesmo. Muitos portugueses não têm consciência de que a perda de salário real foi superior no ajustamento de 1983-1984 (-13,8%) do que no de 2011-2014 (-9,3%). A única diferença teve a ver com a forma como a diferença no mecanismo de ajustamento produziu essa austeridade (por via dos salários nominais ou reais).
O primeiro-ministro explora esta irracionalidade para dizer que não há austeridade. Mas há. A decisão de aumentar os salários nominais em 1% se a inflação for de 5% corresponde a um corte salarial de 4%. A questão que devemos discutir é se esta austeridade se justifica. Compreendo por que o Governo sente necessidade de a fazer: teme alimentar as expectativas inflacionistas dos actores económicos, contribuindo assim para que a inflação se autoperpetue. Por isso, e ainda que impopular, não me oponho a esta austeridade. Mas também não podemos ignorar as suas consequências sociais para muitos (e os mais pobres em particular). A recusa do PM em assumir que se trata de austeridade não é apenas uma fuga à responsabilidade política. Ela dificulta um debate sério sobre quais as medidas necessárias para proteger os mais expostos a essa austeridade.
O PM recusa-se a ter esta discussão porque construiu a sua identidade e sucesso político com base na narrativa de que a austeridade é sempre uma escolha, e não apenas desnecessária, mas perversa. É assim que continua a classificar a austeridade que outros tiveram de aplicar em resultado da acção do seu próprio partido.
É-lhe mais útil atribuir a responsabilidade à consequência (a austeridade) do que à causa (o que a tornou necessária).
O PM vê-se hoje forçado a aplicar a austeridade que continua a negar poder ser alguma vez necessária. Ao negar o que faz, não se limita a colocar em causa o pressuposto da confiança (na) política.
Essa opacidade também nos impede de discutir como melhor mitigar os custos sociais e desiguais da austeridade que se revela, afinal, necessária.
Nota. Os dados relativos aos salários reais são uma actualização (fonte AMECO) do livro de Vítor Bento “Euro Forte, Euro Fraco” e os dados sobre a desigualdade resultam de um estudo de Sofia A. Perez e Manos Matsganis (‘The Political Economy o Austerity’) na “New Political Economy” e de um relatório do FMI (“Fiscal Policy and Income Inequality”).
Miguel Poiares Maduro
política@expresso.impresa.pt
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