sexta-feira, 8 de julho de 2022

Acreditar no Pai Natal

Pedro Nuno Santos hipotecou numa cartada o crédito de uma vida. Agora, ou constrói o aeroporto, resolve os problemas de habitação dos portugueses, endireita a TAP sem necessidade de pedir mais milhões ao erário público e moderniza o transporte ferroviário, ou entra na galeria dos políticos falhados.


Acreditar, como alguns acreditam, que Pedro Nuno Santos, no auge de um maquiavelismo encartado, geriu bem a crise do célebre despacho clandestino dos três aeroportos, alegadamente para obrigar António Costa a sair da hesitação táctica de partilhar a decisão com o líder do PSD, ou coisa que o valha, é o mesmo que acreditar no Pai Natal.

A tese é simples. Pedro Nuno Santos não inventou o despacho. Ele foi fabricado em reuniões onde estavam outros ministros, como Fernando Medina e Mariana Vieira da Silva, e terá sido Costa a esquecer-se de partilhar a decisão com o Presidente da República, bem como com o novo líder do PSD.

Nesta narrativa, como diria um conhecido Ex-líder do PS que adora este tipo de jogatanas, o ministro é uma vítima de uma omissão de Costa e ter-lhe-á batido o pé, num quadro próximo da chantagem, dizendo que a sua demissão implicaria outras, em particular a dos restantes ministros envolvidos na decisão. Resumindo, o ministro terá acabado a safar Costa de uma crise institucional com Marcelo e, por isso, reforçado na corrida à sucessão deste. A solução bizarra da pantomina dá crédito a todo o tipo de teorias, incluindo esta, mas são só isso, teorias. Coladas com cuspo.

Caro leitor, como já percebeu, tudo o que conhecemos até hoje sobre a motivação de cada um dos intervenientes é absolutamente irrelevante.

Na perspectiva da defesa do interesse público, que é a única que importa, todos saíram muito mal. O ministro e o primeiro-ministro limitaram-se a criar um episódio de pura politiquice, apenas com o vespeiro interno do PS na mira, dispensável a um País que enfrenta a brutal incerteza da inflação, um galopante aumento do custo de vida, combustíveis e habitação a escaldar, uma saúde em cacos. Que enfrenta, ainda, as consequências de uma guerra na Ucrânia que, lá para o Outono, poderão ser ainda mais pesadas no bolso de cada um. A Alemanha e meia Europa estão já a racionar gás. Se a economia alemã destrambelha, lá virá o famoso espirro germânico, que dará uma gripe em todo o continente. O que interessa aqui a guerrilha entre Nuno Santos e Costa? O que interessa aqui a historieta do “erro de comunicação”, versão atabalhoada do “erro de percepção mútuo” de Mário Centeno nas conversas com o banqueiro António Domingues sobre a obrigatoriedade de entrega das declarações de rendimentos no Tribunal Constitucional? Tudo soa a desculpa esfarrapada, para um cínico acordo de base mínima entre duas pessoas que não se suportam. Que vivem num clima de permanente intriga e suspeição e testaram aqui os limites do poder de cada um sobre o outro.

Costa ganha duas ou três coisas com esta saída. Evita ter de substituir um ministro, a três meses apenas do início de um longo jogo de quatro anos e meio, desgastando ainda mais a sua já esburacada maioria absoluta. Com a dificuldade acrescida de encontrar um substituto para uma pasta recheada de dossiês muito difíceis. Por outro lado, evita a tal crise institucional com o Presidente da República e quase liquida as aspirações do ministro a ser líder do PS. Como bem se viu na irreprimível felicidade com que falou do erro do ministro e respectivo acto de contrição. Mas a sua autoridade sai ferida, a sua maioria e o Governo muito desgastados.

De resto, não subsistam ilusões sobre o futuro de Pedro Nuno Santos. Sai de rastos deste episódio. Maquiavelices saloias à parte, foi penosamente tratado como um político infantil, sem maturidade, apesar da muita experiência que já tem, obrigado a uma cruel e maoista retratação, naqueles que serão os cinco minutos de vida pública e televisão mais mortais de que há memória, em democracia e fora dela, e que lhe estarão literalmente colados à pele para toda a sua vida política.

Quem vai, a partir de agora, acreditar na palavra, na autoridade e autonomia deste ministro e deste dirigente político? A política não deixa de ser, é certo, o território da velha luta entre memória e esquecimento, que marca a vida de todos nós. Mas Pedro Nuno Santos hipotecou numa cartada o crédito de uma vida. Agora, ou constrói o aeroporto, resolve os problemas de habitação dos portugueses, endireita a TAP sem necessidade de pedir mais milhões ao erário público e moderniza o transporte ferroviário, ou entra na galeria dos políticos falhados. Acreditar que vai conseguir fazer tudo isso é outra história. Não deixa de ser, também, uma forma de acreditar no Pai Natal.

Eduardo Dâmaso

Sábado

08-07-2022

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