quarta-feira, 13 de julho de 2022

As manhãs formidáveis

Quando, há vinte anos, tive a primeira experiência de vida no campo, fui um dia ao dentista. Não era um médico local, mas um pipi urbano todo bem posto, ali radicado por matrimónio, com quem conversei dois dedos. Confiou-me então uma informação que me deixou atónita: além dos velhos dali, que não o consultavam ou só apareciam em avançado estado de infecção para arrancar mais um dente, havia “o problema dos rapazes”. Ao contrário das meninas, não criavam na infância o hábito de lavar os dentes.

Nem de manhã nem depois das refeições nem em sonhos: nunca! Achei aquilo suspeito, mas o médico assegurou-me: “Chegam aqui com complicações chatas, algumas graves, e eu, além de os tratar, ainda tenho que os catequizar e, muitas vezes, de lhes ralhar!” Não chegámos a especular sobre o motivo desta diferença de padrão, mas fui pensando nele: “Será que se julgam tão soberanos e irresistíveis que pensam poder conquistar as mulheres mesmo com mau hálito ou dentes podres?” A pergunta pode ser preconceituosa, mas dada a sagacidade da História, é legítima. Até porque sabemos que uma mulher descompensada pode ver no esgar escurecido de um homem a oportunidade de o tornar sorriso. Enfim. Passou-se há anos, mas desconfio que a educação que os progenitores dão aos rapazes continua a ser condescendente, e que é nessa complacência que estarão as raízes não só de certas enfermidades, mas também de alguns defeitos indesculpáveis, como a presunção de impunidade face ao desleixo.

Ainda sobre dentes: no tribunal da consciência desta que vos escreve, mais implacável do que outros por diariamente me constituir arguida, não reconheço nem a mulheres nem a homens o direito de acumularem riqueza sem antes tratarem dos seus dentes. Deparar com o dono de um Mercedes refulgente a abrir-nos a porta do carro com um sorriso falhado é uma incongruência que não consigo perdoar. E há tantos e tantas por aí, a conduzir topos de gama ou a carregar jóias nos decotes, impantes de uma superioridade desmentida ao primeiro esgar!  Não falo, claro, de quem se deixa abandonar por falta de meios, com quem todos nos solidarizamos e que tantas vezes já protagonizámos, mas com aqueles que, prósperos, negligenciam o valor supremo da boa apresentação iludindo-nos com outros polimentos. A minha avó dizia “Mais vale ter charme do que um curso superior”. Não vou tão longe: mais vale um sorriso bem tratado do que esta pindérica trilogia de sucesso que vai mantendo felizes certos humanos: carro, casa, piscina. Apresentar um sorriso decente a quem nos saúda é uma habilitação mínima para se viver em sociedade. E não me venham falar dos orçamentos de 50 mil euros justificados por implantes com o preço gatuno de 1500 euros a unidade! Por Deus: continua a existir a velha prótese, por um quinquagésimo do valor, e, se têm medo de ir ao dentista ou de se deixarem anestesiar, que tenham sempre presente, ao menos, a tristeza que vão passando ao Mundo com o espectáculo deprimente dos seus sorrisos cavernosos.

450 euros: valor do montante que acabo de pagar na oficina por estragos no motor do carro causados por ferradelas de ratos. Junto ao depósito da água até se acumulavam corcovos de flora não identificada para a construção explícita de ninho. Primeiro, foi o alarme de avaria no painel: VEÍCULO A SOLICITAR REPARAÇÃO. Segundo, o diagnóstico do electricista, depois de usar aquele artefacto futurista para detecção de problemas electrónicos, que nos preparou para a falência da correia de transmissão. Redondo engano, e fui eu a detectá-lo ao abrir a tampa do motor: três tubos ratados a céu aberto. A casa de campo onde vivo não tem garagem e o carro dorme ao relento, como as vacas dos prados açorianos. Conselho do mecânico: “Coloque uma ou duas pastilhas de veneno algures no motor, bem entaladas para não caírem ao chão e envenenarem os seus cães.” Como se não bastasse.

Richard Zenith, escritor, tradutor e crítico literário americano-português, residente em Lisboa, vencedor do Prémio Pessoa em 2012, escreveu a maior biografia de Pessoa até hoje publicada. Mais de mil páginas temperadas de humor, o que é raríssimo entre académicos. Assim, para quem pensa tudo saber sobre o nosso poeta maior, antes ou depois da devassa das suas arcas inéditas, prepare-se: encontrará um ror de informações preciosas que permaneceram desconhecidas até este trabalho.  “Pessoa teve a sorte de encontrar em Zenith um amigo póstumo”, diz o New York Times. O Fernando e nós, felizmente. Assim que tive um exemplar nas mãos, prantei-o na mesa ao lado do sofá onde costumo sentar-me e, todos os dias, salivo e hesito. Sei que, depois de penetrar no túnel da sua leitura, obcecada como sou quando raramente me entusiasmo, me privarei durante pelo menos um mês de tudo o que se passa no exterior. Depois, lembro-me que não há nada fora ou dentro de nós que o Pessoa não tenha tratado com maior profundidade e consciência. Em todos os continentes Pessoa é festejado como um rei, escreveu ainda alguém – que privilégio ser seu súbdito!

Para a semana há mais. 

Rita Ferro

talequal

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