O Tal&Qual resolveu testar no terreno a famosa política ferroviária do ministro Pedro Nuno Santos e meteu-se no comboio em Santa Apolónia com destino a Madrid. Íamos dando em doidos! Penámos mais de onze horas para percorrer os 600 quilómetros de linha, com três mudanças de composição – em contraste com os 60 minutos em qualquer avião ‘low cost’. Desde que acabou a ligação ferroviária directa entre as duas capitais ibéricas, a viagem por caminho de ferro transformou-se num longo calvário. Num dos troços parámos em todas as 16 estações e viajámos a uma média de 58 km/h. Exausto, o repórter escreveu ao ministro…
Caro Pedro Nuno Santos,
Escrevo-lhe, mal sentado e aos solavancos, a bordo de uma velha automotora que se arroja carris afora, barulhenta e cansada, na incerteza se vou chegar ao destino. É uma máquina movida a ‘diesel’, importada da Holanda nos anos 50 do século passado. Era originalmente vermelha e tinha bancos de madeira. As oficinas da CP, que a necessidade especializou na arte de fazer do velho novo, prolongaram-lhe o tempo de vida. Até que a automotora, irremediavelmente derreada sob o peso da idade, ganhou o estatuto de antiguidade com interesse histórico e foi retirada de circulação. Voltaram a dar-lhe vida. Percorre a linha do leste, entre o Entroncamento e Badajoz, uma vez por dia, ida e volta.
Já não é encarnada e perdeu os bancos de madeira. Agora, é verde. Os novos assentos, almofadados e coloridos, ficaram acanhados – ainda que os passageiros não tenham a corpulência de lutadores de ‘sumo’. Parada na linha 8 da estação do Entroncamento, a automotora resplandece orgulhosa ao sol. Nem uma arreliadora marca do tempo. Ninguém diz que a pintura imaculada esconde quase 75 anos de esforço. Brilha como nova. Mas é tudo fogo de vista.
Quando o chefe da estação dá ordem de partida, o maquinista acelera – mas a automotora hesita no arranque como um idoso trôpego: falta-lhe entusiasmo. Se o barulho do motor fosse proporcional à força produzida, teria a velocidade de um foguete. Mas não. Vai indo, lentamente, pouca-terra-pouca-terra, parece que se desconjunta, treme, e lá vai a baloiçar, desengonçada, ganhando embalagem.
Lisboa e Madrid, separadas por apenas 600 quilómetros, não têm uma ligação directa por caminho-de-ferro. A separação entre as duas capitais ibéricas vai no sentido contrário da política da Comissão Europeia que aposta nas viagens ferroviárias de longa distância e transfronteiriças – em desfavor do avião e do automóvel, mais poluentes, emissores de maior quantidade de gases com efeito de estufa.
Por estes dias, em que tanto se fala de transição energética, não é possível repetir a gloriosa viagem de 8 de Outubro de 1881 – quando o rei D. Luís, de Portugal, e D. Afonso XII, de Espanha, inauguraram a primeira ligação directa as duas capitais. O monarca português seguiu pelo ramal do Marvão, inaugurado meses antes, no Alto Alentejo, e o soberano espanhol partiu da estação das Delicias (hoje, um museu ferroviário), em Madrid: encontraram-se na povoação espanhola de Valência de Alcântara.
Hoje, quase 150 anos depois da viagem histórica, ir de Lisboa a Madrid é uma aventura para dar em doido. A rede ferroviária ibérica é uma prenda para as companhias de aviação de baixo preço – e elas agradecem de mãos postas aos céus. Até o viajante com um irreprimível temor a aviões há de preferir a inquietação de cruzar os céus ao enfadonho destino de subir o Ribatejo, entrar na Beira Baixa, descer o Alto Alentejo, atravessar a Estremadura espanhola e chegar, por fim, a Castela e à cidade de Madrid. Uma hora no ar passa num instante. Mas a longa jornada sobre carris, que obriga a três mudanças de comboio, dura para cima de 11 horas – uma eternidade.
Cinco anos depois da viagem real, inaugurava-se a linha Sud Expresso – um comboio com restaurante e carruagens-cama que permitia viajar de Lisboa a Salamanca, Madrid, Paris e Calais. Em 1943, ainda a tempestade da Segunda Guerra Mundial incendiava a Europa, o Lusitânia Comboio Hotel começou a ligar diariamente as duas capitais: partia de Lisboa às 10 da noite – primeiro, do Rossio; mais tarde de Santa Apolónia – e chegava a Madrid pelas oito da manhã.
Amália Rodrigues viajou no Lusitânia, escassos meses depois da inauguração da linha, na primeira vez que saiu do país. Foi cantar numa festa da representação diplomática portuguesa em Madrid a convite do embaixador Pedro Theotónio Pereira. Levou os seus acompanhadores habituais, Armandinho (guitarra) e Santos Moreira (viola). Não perdeu o comboio por pouco. Conseguiu saltar para a carruagem mesmo em cima do apito de partida. Simone de Oliveira representou Portugal no Festival da Eurovisão de 1969, realizado em Madrid, com a canção ‘Desfolhada’. A representação portuguesa apanhou um avião para Espanha. Regressou a Lisboa pelo mesmo comboio.
O Lusitânia Comboio Hotel, uma parceria entre a CP e a empresa espanhola Renfe, era deficitário – e o prejuízo repartido pelas duas partes. A pandemia virou o mundo de patas ao ar. A população foi obrigada a confinar-se, as fronteiras foram encerradas e as viagens canceladas. O comboio foi suspenso. Quando as medidas de controlo sanitário foram levantadas, você, caro Pedro, esperava que o Lusitânia voltasse aos carris. Mas do outro lado da fronteira as notícias não eram boas – tão más como o vento e tão malvadas como o casamento. Os espanhóis, à pala do deve e haver do negócio, cancelaram o comboio. E o Pedro, vai-me perdoar a franqueza, não teve argumentos para convencer ‘nuestros hermanos’ de que a suspensão desse autêntico hotel sobre rodas era uma provocação.
Estivesse você nas boas graças do primeiro-ministro, voluntarioso como é, já teria mandado a CP comprar o comboio a Espanha. Mas o tempo não lhe corre de feição. A trapalhada que arranjou com o aeroporto, tão oportuna para o Governo como uma mosca afogada no prato da sopa, aconselha prudência. Arranje lá maneira de pôr o Lusitânia nos eixos, ou outro comboio qualquer que assegure uma ligação directa a Madrid, que as coisas tal como estão não lembra ao diabo!
Abandonei Santa Apolónia às oito e um quarto da manhã de domingo, a bordo de um ronceiro Intercidades com destino à Guarda. Apeei-me no Entroncamento, à tabela, mais minuto menos minuto, cerca das nove e 24. Esperava-me a velha automotora recauchutada, comprovado milagre da engenharia, capaz, segundo o maquinista, de andar a 100 à hora. Mas o estado da linha impõe cautela. Os 175 quilómetros entre o Entroncamento e Badajoz são habitualmente percorridos em três horas – à estonteante média de 58 quilómetros por hora. Partiu, como previsto, à dez horas e vinte e quatro minutos. Seguia a bordo um grupo de três turistas, mochilas às costas, estafados, com o mesmo destino final – Madrid.
É um passeio agradável. O comboio pachorrento acompanha o Tejo entre a Barquinha e a Praia do Ribatejo. A vista, invulgarmente bela, é um regalo. A automotora baloiça como um berço e os três turistas, embalados, dormem indiferentes ao rio e ao castelo de Almourol. O comboio pára em todas as 16 estações. A maior parte está abandonada. Os bilhetes são cobrados a bordo. Os trocos são um problema. Mas os poucos passageiros que entram aqui e ali são conhecidos dos revisores e levam o dinheiro à conta.
A velha automotora com ar de nova passa por Abrantes, Ponte de Sor, Portalegre. À medida que desce o Alentejo, sem pressa, a caminho de Elvas, a paisagem altera-se. A planície estende-se agora à frente dos olhos, seca e desolada. As únicas manchas esverdeadas entre a imensidão cor de palha são as copas dos sobreiros e azinheiras.
Já agora, caro Pedro, diga lá à sua colega da Agricultura que as varas de porcos pretos de focinho no chão, a esgravatarem a terra à sombra dos montados, não são de cá. Vêm de Espanha. Os produtores espanhóis tomam a terra de renda, trazem os animais e deixam-nos ali a engordar à conta da bolota. Quando os porcos atingem o peso conveniente, são carregados para o outro lado da fronteira – onde acabam no matadouro.
É quase uma da tarde, duas horas em Espanha, e ainda não chegámos a Elvas. O comboio espanhol para Puertollano, estação de transbordo para Madrid, parte de Badajoz às duas e meia. A preguiçosa automotora, se conseguir cumprir o horário, chegará a Elvas à uma em ponto, hora portuguesa, e a Badajoz quinze minutos depois – escasso quarto de hora antes da partida do comboio espanhol. “Geralmente, chegamos a horas”, diz o revisor, confiante. Olha para o relógio – e confirma: “Estamos à tabela”.
“À tabela”, neste caso, significa um atraso de dois ou três minutos. A relíquia de ferro, que há muito reclama merecido descanso, esfalfou-se com sacrifício entre o Entroncamento e Badajoz – e conseguiu superar a prova no tempo previsto. Mas sabe o que me fazem lembrar os seus comboios, caro Pedro Nuno Santos? Fazem-me lembrar a Lili Caneças: parecem novas, mas são velhas. Tirando um ou outro caso de modernidade, o resto foi resgatado à ferrugem dos anos – legítimas antiguidades dignas do museu ferroviário recuperadas para o serviço à custa de cirurgias por talentosos serralheiros.
O comboio espanhol, focinho aguçado, imponente, parece pronto a disparar por ali a fora a desafiar a barreira do som. É um engano. Os espanhóis têm a segunda maior rede de alta velocidade do mundo, a seguir à China, mas ela não se aproxima da fronteira portuguesa – nem está previsto que venha a aproximar-se nos tempos mais próximos. Mas isso já o Pedro Nuno sabe…
Aquele comboio espanhol estacionado na estação de Badajoz assemelha-se a um furioso TGV, mas anda à mesma velocidade dos demais. Tem quatro horas e meia de viagem pela frente – até Puertollano. Faz 14 paragens pelo caminho: pára em todas as estações e apeadeiros. Apenas em escassos troços da linha atinge os 120 quilómetros por hora. É confortável. Não abana, não treme, não chocalha – e é silencioso. Não tem ‘wi-fi’, apenas uma tomada em cada banco para carregar baterias.
A paisagem espanhola é diferente. Atravessa-se em Portugal hectares e hectares de terra ao abandono – ou, pelo menos, descurada. Aqui, é ao contrário. Estremadura fora, até em Castela, é difícil encontrar uma leira de terra que não esteja cultivada.
O comboio chega ao destino, às 19h05, com escassos três minutos de atraso. Em Puertollano cruzam-se linhas de toda a sorte de Espanha. É altura do último transbordo antes de Madrid. A operação é demorada. Toda a bagagem tem que passar pelo ‘raio-X’ antes do embarque. Após o brutal atentado terrorista na maior estação ferroviária da capital, em 11 de Março de 2005, que provocou 192 mortos e quase dois milhares de feridos, os passageiros para Atocha têm de ir à revista. O comboio enche-se em Puertollano com viajantes desembarcados do TGV procedente de Sevilha. Arrancou para Madrid às 19h20, com um ligeiro atraso. Chegou, finalmente, a Atocha pouco passava das oito e meia da noite, hora espanhola, a tempo do jantar. Mais de onze horas depois de ter partido de Santa Apolónia…
Não sei, caro Pedro Nuno, se você devia ter sido demitido pelo caldinho do aeroporto que arranjou ao primeiro-ministro. Mas sei que merecia fazer esta viagem de quase meio dia, em quatro comboios, entre Lisboa e Madrid.
Do seu,
Manuel Catarino
https://talequal.pt/600-km-de-calvario/
PS: Eu fiz esta viagem,por mais de uma vez,em férias de Verão e não me recordo de precisar de mudar vez alguma. Como escreve o jornalista, saia á noite e chegava d e madrugada, o que era óptimo.Dormia no comboio e chegava a Madrid, no inicio do dia. O regresso era do mesmo modo.
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