sexta-feira, 8 de julho de 2022

Carta da Aldeia (tal&qual)

Cresce em Portugal, desde há uns anos, uma nova tribo urbana: a dos autodenominados ciclistas. Evidentemente, não me refiro aos ciclistas-ciclistas mesmo, aos rapazes do Penedo, de Lousa, de Manteigas, que trepam as madrugadas da serra, à força de perna e pulmão, longe do lixo e do ruído, entrelaçados na mãe-natura, por puro gozo, ou às mocinhas que devaneiam suas pasteleiras por veredas de flores e bosques encantados, pedalando entre sonhos, alfazemas e silvados de amoras. Não: refiro-me à tribo folclórica dos maduros citadinos que se tornaram clientes compulsivos da “fileira da bicicleta”, rendosíssimo negócio.

Dir-me-ão que é simples e autêntica a sua afeição às duas rodas. Mas ao olhar para o espalhafato e a artilharia de que se rodeiam, à fantochada com que se mascaram e à peça de teatro que montam sempre que fingem montar uma bicicleta, não consigo acreditar nestes bravos do pelotão.

Dir-me-ão que é verdadeiro o seu apego à velha máxima de Juvenal, mens sana in corpore sano. Mas olhando para as suas exuberantes licras, verdadeiros sacos de plástico com que se vestem e dentro dos quais fermentam velhos eflúvios em decomposição, combinando secreções pútridas com excreções fétidas, tenho dificuldade em acreditar nestes bandos de pardais à solta.

Dir-me-ão ainda que eles buscam os grandes espaços ecológicos, o diálogo supremo com o perfeito ambiente. Mas ao ver como insistem em encafuar-se no meio do trânsito compacto dos fins de semana e nos passeios dos tristes, pelas estradas mais movimentadas das metrópoles, entre filas ondeantes de carros, competindo com nuvens de ar poluído e buzinas impacientes, compreender-se-á o meu cepticismo sobre o seu apregoado amor à natureza.

Perdoem-me a franqueza: do que eles gostam, mesmo, é do estardalhaço em que se pintam, do desaforo tribal em que se envolvem, do pequeno poder de que se sentem donos quando saem à rua em suas licras para licrar o mundo com sua licrante e alicraminosa omnipresença. Chiça penico!

Já os tenho apanhado por aí, na estrada, pequenos tiranetes obrigando toda a gente a andar a dez à hora e a formar penosas filas atrás do pelotão. A sensação de superioridade deve ser enorme, para se disporem a receber em troca os gases dos tubos de escape das muitas pessoas que molestam. ¿E que dizer daquele risinho sardónico com que nos deixam finalmente passar, ao cabo de quilómetros e quilómetros de sadismo rodoviário?

Nada tenho contra o desporto do pedal e das duas rodas. Bem pelo contrário: considero-me um ciclista razoável, praticante de seis décadas com uns tantos joelhos e cotovelos esfolados no cadastro. Mas nunca me passou pela cabeça que o genuíno prazer da bicicleta, que eu conheço de calções de caqui, camisa aberta e cabelos ao vento, por montes e valados, pudesse vir um dia a transformar-se na palhaçada que é o autodenominado ciclismo desta tribo urbana. 

Pude há dias observar de perto um grupo destes maduros e aperceber-me da parafernália de que precisam para fingir que andam a praticar um desporto saudável: sapatilhas de pitons, soquetes com calcanhar de bisel, calções e camisola em plástico viscoso, pernitos e manguitos, mochila, luvas aderentes, creme hidratante e cantil de água energizada, câmaras de ar suplentes, conta-quilómetros, velocímetro, GPS, óculos-mosca e capacete em forma de cabeça de abóbora. Vistos assim, completos em todos os seus atavios, pareciam extraterrestres que tivessem vindo ao carnaval de Torres – fora de época!

Não sei que mais deplorar em tudo isto: hesito entre o grotesco da mascarada, a confusão da nuvem com Juno e a escravização da tribo no altar do negócio. O esforço, o tempo e o dinheiro gastos no exercício seriam bem melhor usados num belo passeio de pasteleira, corpo livre campos fora, longe do lixo e do ruído.

Tenham juízo, rapazes: façam ciclismo, sim, mas de verdade. E deixem de infernizar a vida às pessoas.


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