As empresas fazem reestruturações e o Estado também. Em curso está uma mudança de competências, que vão passar das direcções regionais para as CCDR.
É comum ouvir falar de reorganizações empresariais – tarefas que passam de um departamento para outro ou departamentos que absorvem competências que estavam disseminadas. Mas o Estado também pode alterar a forma como se organiza. É o que está a acontecer.
As Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) vão ter um papel reforçado com a decisão do Governo de integrar nestas entidades os serviços desconcentrados do Estado central que estavam a cargo das diferentes direcções regionais. Esta passagem de competências comporta muitas dúvidas e confusões, desde logo a ideia de que se trata de um processo de descentralização, quando, na verdade, consiste em integrar serviços já descentralizados nas direcções regionais nas CCDR. O PÚBLICO tenta responder a algumas das perguntas sobre o assunto.
O que são as CCDR?
As CCDR são serviços que pertencem à administração directa do Estado, mas que estão situados de forma periférica no território. Ou seja, não estão em Lisboa (com excepção da CCDR de Lisboa e Vale do Tejo), mas sim junto da região que representam. Funcionam como uma espécie de pólos do Estado nas regiões. Existem cinco CCDR: a do Norte, com sede no Porto, a do centro, com sede em Coimbra, a de Lisboa e Vale do Tejo, que tem sede em Lisboa, a do Alentejo, que se situa em Évora, e a do Algarve, que fica em Faro.
Estes serviços têm autonomia administrativa e financeira e cabe-lhes coordenar e articular várias políticas sectoriais, como as de ambiente, ordenamento do território e cidades, prestam apoio técnico às autarquias e têm um papel activo na gestão de fundos europeus.
Quem vai liderar as CCDR e como serão escolhidos?
A ministra da Coesão Territorial tutela as CCDR. Actualmente, cada uma tem um presidente e dois vice-presidentes. Tanto o presidente como um dos "vices" são eleitos de forma indirecta. Ou seja, o presidente da CCDR é eleito por um conjunto alargado de eleitos locais da respectiva área de incidência da CCDR. Um dos vice-presidentes é eleito pelos presidentes das câmaras municipais da área geográfica da CCDR. O outro é indicado pelo Governo, depois de consultados o presidente e o vice-presidente eleitos das CCDR.
Quando foram as últimas eleições para as CCDR?
As primeiras eleições, e até agora únicas, para as CCDR aconteceram a 13 de Outubro de 2020. A eleição, embora indirecta, é uma novidade recente, já que antes os responsáveis máximos das CCDR eram nomeados directamente pelo Governo. A regra é que os mandatos sejam de quatro anos, mas na primeira eleição ficou estabelecido que o mandato inaugural seria de cinco anos para que os responsáveis acompanhassem as negociações dos fundos de Bruxelas.
Qual é o calendário da transferência de competências?
Até ao final deste mês de Janeiro, está previsto que sejam alteradas as leis orgânicas das CCDR para que possam receber de forma total ou partilhada as atribuições que até agora estavam concentradas nos serviços desconcentrados da administração pública. Depois, até ao final de Março deste ano, devem ser reestruturados os serviços desconcentrados que vão perder ou partilhar com as CCDR essas atribuições. A última fase prevista no calendário decorre até ao final do primeiro trimestre de 2024. Esta etapa serve para concluir todos os processos anteriores.
Qual é a diferença entre este processo e o da transferência de competências para as autarquias?
São processos diferentes e que vão passar a acontecer em paralelo. A descentralização de competências para as autarquias permite à administração central passar para as câmaras municipais uma responsabilidade que era sua até agora. Por exemplo: na educação, as autarquias passaram a assumir a responsabilidade pelas refeições escolares. No caso da transferência de competências para as CCDR, a passagem é feita dos serviços regionais das várias direcções para as CCDR. O que dará mais responsabilidades a estas, que passam a agrupar competências em várias áreas relativamente ao espaço geográfico em que actuam.
Ou seja, ganham escala e uma visão de conjunto do território. Voltando ao exemplo da educação. Uma das atribuições actualmente assumidas pelas cinco direcções regionais da Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares e que passarão para as CCDR é a de identificar as intervenções nos edifícios escolares.
Vão ter um orçamento?
Sim. Está previsto que juntamente com as novas atribuições sigam para as CCDR os recursos humanos, patrimoniais e financeiros necessários à nova missão. Actualmente – e ainda antes desta alteração – as CCDR já têm um orçamento. Por exemplo, a CCDR Norte tinha 302 trabalhadores em 2021 com os quais gastava mais de 11 milhões de euros.
Porque é que este processo surgiu agora?
Este processo surge na sequência de outro – o da descentralização. Em 2018, o Governo e o PSD assinaram um acordo para a descentralização de competências para as autarquias. Depois, o Governo incluiu no seu programa a transferência de competências das direcções regionais da administração central para as CCDR. A lógica é promover a unidade do território nacional concentrando num único serviço de cada região serviços que estavam separados de forma sectorial.
O que são as direcções regionais?
São serviços periféricos da administração directa do Estado, com uma competência territorialmente limitada e que respondem directamente ao respectivo ministério. Na prática, são um braço da tutela (Cultura ou Agricultura e Pescas, por exemplo) numa dada região.
Quais os serviços periféricos da administração directa e indirecta do Estado que vão passar para as CCDR?
De acordo com a resolução do Conselho de Ministros de Dezembro, são nove as áreas que serão "objecto de transferência e de partilha com as CCDR": Economia; Cultura; Educação; Formação Profissional; Saúde; Conservação da Natureza e das Florestas; Infra-estruturas; Ordenamento do Território; Agricultura e Pescas.
Poderá haver despedimentos devido a eventuais duplicações entre serviços?
Não, pelo menos é essa a garantia dada pelo Governo e em particular pela ministra da Coesão Territorial. Ana Abrunhosa explicou ao PÚBLICO que "os serviços das antigas direcções regionais não desaparecem" e que os trabalhadores das diferentes direcções regionais não serão despedidos e irão continuar a exercer as suas funções, com uma diferença: passam a trabalhar sob a coordenação das respectivas CCDR e deixam de responder a Lisboa.
E os trabalhadores poderão ter de mudar de local/cidade?
Outra das garantias dadas pelo Governo é a de que ninguém terá de mudar de local de trabalho. "Os serviços e postos de trabalho mantêm-se, as pessoas não vão mudar de local de trabalho. Há uma garantia que eu posso dar, não vamos tirar as pessoas do sítio onde estão, se estão em Mirandela continuarão a trabalhar em Mirandela", assegurou a ministra Ana Abrunhosa.
Como será feita a transferência para as CCDR na área da saúde?
A resolução do Conselho de Ministros prevê um conjunto de atribuições actualmente exercidas pelas administrações regionais de saúde e que passam para as CCDR. São três, uma delas a atribuição será partilhada e duas delas passam para as CCDR. "Assegurar o planeamento regional dos recursos humanos, financeiros e materiais, a execução e acompanhamento dos necessários projectos de investimento das instituições e serviços prestadores de cuidados de saúde, em articulação com a direcção executiva do Serviço Nacional da Saúde" é uma das missões que passa para a esfera das CCDR. No entanto, a resolução determina que o director Fernando Araújos ainda terá uma palavra a dizer. Ao PÚBLICO, a ministra da Coesão, Ana Abrunhosa, admitiu que tanto o calendário geral deste processo como as próprias atribuições podem ser revistos pela direcção executiva do SNS.
A contratação dos professores passa a ser feita pelas CCDR?
Não. A resolução do Conselho de Ministros, publicada no final do ano, é clara e o ministro da Educação, João Costa, sublinhou-o na última ida ao Parlamento, marcada já pelas greves dos docentes. A transferência de competências em curso “não comporta nenhuma atribuição na área do recrutamento de professores”, disse o governante.
Em matéria de recursos humanos, a única transferência de competências diz respeito ao pessoal não docente (assistentes operacionais e assistentes técnicos) que já eram da responsabilidade das câmaras municipais.
As 13 competências a transferir para as CCDR estavam, até agora, todas entregues à Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares. Este organismo já funciona descentralizadamente, tendo herdado parte das equipas das antigas direcções regionais de Educação no Norte, centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve.
As comissões regionais ficam com responsabilidades, por exemplo, pela definição e acompanhamento da requalificação e conservação da rede de escolas. No entanto, as obras continuam a ser feitas pelos municípios. A definição da rede escolar mantém-se centralizada no Ministério da Educação.
Muda alguma coisa na gestão dos fundos europeus?
No imediato, não. As actuais CCDR já participam nas autoridades de gestão dos fundos europeus e assim continuará a ser, como o confirma o decreto-lei publicado esta semana e que estabelece o modelo de governação do PT 2030. Por inerência, os presidentes das cinco CCDR do continente presidem à comissão directiva dessas autoridades. Porém, acredita-se que a partilha ou transferência de novos poderes para as CCDR pode dar um novo enquadramento à gestão dos fundos europeus, sejam os de âmbito regional, sejam os temáticos.
Que diagnóstico faz o relatório da Comissão Independente para a descentralização?
Em termos de fundos europeus, conclui que o modelo vigente era muitas vezes “cego” às especificidades regionais.
No relatório final, a Comissão presidida por João Cravinho propôs que “na primeira fase, de arranque e transição”, as CCDR devem ver “reforçadas capacidades de intervenção”, designadamente “em termos de decisão e de coordenação”, em domínios como desenvolvimento regional, ordenamento do território e cidades, ambiente e cooperação regional transfronteiriça.
Mas isto tem de ser acompanhado por “maior intervenção dos poderes regionais na concepção dos programas regionais e dos programas temáticos, com particular incidência na região que beneficia de Fundos Europeus Estruturais e de Investimento” – ou seja, Norte, centro e Alentejo.
Os programas já estão definidos e aprovados, pelo que qualquer ganho a partir daqui pode vir a acontecer na gestão, acompanhamento e aprovação de projectos. Ou seja, na execução.
O relatório recorda que a OCDE considera Portugal “um dos países mais centralizados da UE e da OCDE”. E lembra que isso pode ser combatido através das CCDR, que ganharam nas últimas décadas “uma influência e um reconhecimento crescentes à medida que foram ocupando uma posição relevante na gestão de programas e fundos comunitários”.
Além disso, a administração central do Estado encontra-se “fortemente sectorializada (reforçada por uma gestão igualmente sectorializada dos fundos europeus), pouco articulada entre si (favorecendo a fragmentação de políticas) e, em alguns domínios, com uma tradição de formulação de políticas nacionais territorialmente cegas, isto é, não regionalmente diferenciadas”.
As CCDR vão agilizar a execução de fundos europeus?
As CCDR já têm experiência e competência na execução de fundos e são, no quadro actual, parte importante do modelo de governação. Conseguiriam ser mais eficazes e rápidas na resposta e na gestão desses fundos se receberem outros poderes que hoje em dia estão delegados na tal administração pública “fortemente sectorializada”? Nesta fase de arranque, é difícil dizer que sim. Embora essa seja a expectativa. Mesmo que, por agora, não se passe de uma transferência ou partilha de tarefas administrativas, pode-se ganhar dias, semanas, meses na tramitação dos processos.
Mas vai ser preciso esperar para ver como é que a partilha ou transferência de competências se concretiza, e com que meios. É apenas aliviar trabalho burocrático das direcções regionais ou há uma efectiva cedência de meios e poder? Essa é a pergunta a que ainda ninguém responde, mas há sinais.
Na Agricultura e Pescas, as direcções regionais deverão ceder às CCDR o poder de “executar, de acordo com as normas funcionais definidas pelos serviços e organismos centrais, as acções necessárias à recepção, análise, aprovação, acompanhamento e validação dos projectos de investimento apoiados por fundos nacionais e europeus, bem como promover a tramitação relativa à recepção, análise e validação conducente ao pagamento dos respectivos apoios".
Museus e monumentos vão passar para as CCDR?
Ninguém sabe ainda o que acontecerá ao importante conjunto de museus, monumentos e áreas arqueológicas tutelados pelas Direcções Regionais de Cultura – do visitadíssimo Paço dos Duques de Bragança, em Guimarães, às principais sés do país – quando estas forem extintas e as respectivas competências integradas nas CCDR. O Ministério da Cultura esclarece que a resposta dependerá da reestruturação em curso da Direcção-Geral do Património (DGPC), que por sua vez justifica que a Cultura tenha sido “excepcionada do calendário previsto para outras áreas governativas”.
E adianta apenas que “não está prevista a transferência de monumentos e museus para as CCDR”, reconhecendo que esta é uma “questão particularmente relevante no quadro da reorganização da DGPC e do processo de descentralização também a decorrer”. Uma frase compatível com muitos cenários. Por exemplo este: vincular alguns museus mais relevantes à DGPC, num movimento que seria, aliás, inequivocamente recentralizador, passando o resto para os municípios, no âmbito do citado “processo de descentralização”.
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