Pelo carácter atrabiliário e irascibilidade adolescente. Pela palavra gratuita, pela moral que muda, pela crueldade, pela hipocrisia: muitas destas pessoas não deviam ter acesso a postos de comando
Podemos ter a certeza: neste caso da TAP, dos respectivos antecedentes e das devidas sequelas, há, entre os seus intervenientes, um ou vários malfeitores. O problema consiste em saber se são todos ou só alguns.
É ainda certo que há alguém a preparar um roubo, a cometer uma fraude, a obter algo indevidamente, a tentar assassinar politicamente alguém, a liquidar um adversário e a destruir quem sabe segredos. Só não sabemos se é só um, se são vários ou se são todos os intervenientes.
Sabemos também que estão envolvidos titulares de cargos políticos, altos funcionários do Estado e altíssimos responsáveis da Administração Pública, universo este que pode incluir um primeiro-ministro, vários ministros e Ex-ministros, diversos secretários de Estado e Ex-secretários de Estado, chefes de gabinete, adjuntos, assessores, auditores jurídicos e administradores de empresas públicas. Uma vez mais, não sabemos se todos ou só alguns têm culpas e responsabilidades.
É seguro que algo está em causa, mais importante do que um computador, dois socos, três bofetadas e uma ameaça de agressão. Num ministério como este, das Infra-Estruturas, é difícil encontrar documentos confidenciais muito sérios. Também num país como o nosso, não é crível haver segredos de Estado vitais, ainda por cima gravados no computador de um adjunto! Muito dinheiro, muitos interesses, enormes favores e imensas negociações: eis o que pode estar em causa.
Temos diante de nós a coreografia ou o cenário perfeito da mentira: do mesmo acontecimento, dos mesmos factos, com os mesmos protagonistas, existem pelo menos duas versões contraditórias, dois elencos factuais diferentes e opostos e evidentemente dois perpetradores.
Um bando em funções de Estado, instituições supostamente respeitáveis, departamentos governamentais com responsabilidades, deputados eleitos e representantes directos dos cidadãos, empresas públicas, escritórios de advogados famosos, salteadores de capitais internacionais, funcionários de Estado obrigados a limpar as estrebarias e empresas internacionais de consultadoria estão atarefados à volta de um ministério. Este, por sua vez, ocupa-se de tudo quanto é importante na economia futura do país: aviões, aeroportos, comboios, caminho-de-ferro, portos fluviais e marítimos, grandes pontes, energia, rede eléctrica nacional, barragens e centrais térmicas e mais, tanto mais, em duas palavras, quase tudo, nas mãos de um ministro… É isso que está em causa! São decisões de muitos milhares de milhões! São os marcos da economia futura do país. É o maior investimento de que há memória e de que haverá crónica no futuro! É isso que está em causa, não é um computador, um telemóvel, uma ameaça contra quatro mulheres, um murro de um homem, uma grosseria de um ministro, um engano de um telefonema…
Já se percebeu que houve mentira, traição, ciúme, engano, ameaça, violência e abuso. Mas porquê? O que estava em causa realmente? Dinheiro? Interesses estrangeiros? A companhia de aviação? O aeroporto? O lítio? Os comboios e o TGV? A rede eléctrica nacional? As “renováveis”? Uma coisa parece certa: para que os intervenientes se tenham deixado enredar em cenas ridículas próprias de telenovela, é necessário estarem de acordo sobre um ponto: o silêncio sobre o essencial. Fica-nos a certeza de que este silêncio e a zanga têm origem num passado de cumplicidade.
Ao longo deste processo, pelo que se sabe, alguns ou todos se portaram mal, abusaram de poder e de funções, mentiram, esconderam, ameaçaram, agrediram, roubaram, destruíram, quebraram, negaram, tentaram liquidar, apagaram documentos, “limparam” telemóveis e computadores, sonegaram provas, esconderam fontes e acusaram falsamente outras pessoas. Todos? Só alguns? Quem?
Raramente, nestas décadas que levamos de democracia, se atingiu um ponto tão baixo de miséria moral, de atentado político, de vilania, de imoralidade e de sem vergonha! Há gente que, por bem menos, reside actualmente na penitenciária, em Custóias ou em Pêro Pinheiro. Raramente como agora a justiça portuguesa esteve tanto em causa. Raramente como agora o Estado de direito esteve tão ameaçado.
Na máfia, nos gangs de Nova Iorque, entre oligarcas de Moscovo, nas redes de tráfico de droga, no mercado do sexo e de trabalhadores clandestinos, nos serviços de imigrantes, no comércio de armamento, nos arranha-céus de magnates do petróleo ou nos resorts dos bilionários dos metais raros, há procedimentos parecidos com aqueles que se adivinham neste processo. Com a diferença de montantes e de pessoas envolvidas, com certeza. Mas com uma similitude moral indiscutível.
Pelo que se julgam superiores e infalíveis. Pela superioridade moral de que crêem usufruir. Pela inteligência sistémica com que tratam as estratégias de longo prazo e nada entendem da vida real. Pelo desprezo com que avaliam os outros, a opinião pública e os eleitores. Pelo modo como substituem as regras e as leis pelos seus gestos, os seus gostos e os seus valores. Pelo seu carácter atrabiliário e pela irascibilidade adolescente. Pela palavra gratuita, pela moral que muda, pela crueldade constante, pelo cinismo indisfarçável e pela hipocrisia como hábito e regra: por estes e outros atributos, estas pessoas, algumas destas pessoas, muitas destas pessoas não deveriam ter acesso a postos de comando, nem ter a capacidade de influenciar a vida de outros. Estamos perante pessoas que só têm regras claras e precisas: eles próprios, os seus amigos, os seus partidos, as suas famílias, as suas empresas e as suas auréolas de glória narcisista que designam por interesse público. Estes Garotos divertem-se com o mal dos outros, brincam e desprezam os inferiores e os menos dotados, odeiam e perseguem os superiores e mais capazes. E têm enorme consideração por si próprios.
Parece a República dos Garotos. Pelo que se julgam superiores e infalíveis. Pela superioridade moral de que crêem usufruir. Pela inteligência sistémica com que tratam as estratégias de longo prazo e nada entendem da vida real. Pelo desprezo com que avaliam os outros, a opinião pública e os eleitores. Pelo modo como substituem as regras e as leis pelos seus gestos, os seus gostos e os seus valores. Pelo seu carácter atrabiliário e pela irascibilidade adolescente. Pela palavra gratuita, pela moral que muda, pela crueldade constante, pelo cinismo indisfarçável e pela hipocrisia como hábito e regra: por estes e outros atributos, estas pessoas, algumas destas pessoas, muitas destas pessoas não deveriam ter acesso a postos de comando, nem ter a capacidade de influenciar a vida de outros. Estamos perante pessoas que só têm regras claras e precisas: eles próprios, os seus amigos, os seus partidos, as suas famílias, as suas empresas e as suas auréolas de glória narcisista que designam por interesse público. Estes Garotos divertem-se com o mal dos outros, brincam e desprezam os inferiores e os menos dotados, odeiam e perseguem os superiores e mais capazes. E têm enorme consideração por si próprios.
Como é possível que alguns ministros capazes, alguns governantes decentes, alguns altos funcionários competentes, alguns deputados honestos e alguns profissionais honrados se deixem enlamear por estes Garotos? Nunca se perceberá a razão pela qual académicos probos, professores dedicados, engenheiros competentes, autarcas responsáveis, sindicalistas empenhados, intelectuais com sentido moral da vida e políticos ciosos do bem comum se deixam envolver nesta história a todos os títulos tão sórdida.
António Barreto
O autor é colunista do PÚBLICO
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