terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Linha vermelha é isto – e deve ser defendida com força letal

A polícia não pode deixar as armas no bolso quando uma multidão ululante invade e destrói a casa da democracia.

A entrada estrondosa do Chega na política portuguesa levantou de imediato a questão das “linhas vermelhas”. Ou seja, que tipo de ideias deve um partido político poder defender, e que tolerância deve um regime democrático oferecer em relação aos seus extremos, seja à esquerda, seja à direita.

Ao contrário daqueles que acreditam que se deve ilegalizar um partido só porque as suas ideias são repugnantes, a minha tese sempre foi a mesma, e mantenho-a: defendo o máximo de tolerância em matérias ideológicas, por mais abstrusas e abjectas que elas nos pareçam; ao mesmo tempo que defendo o mínimo de tolerância para quem ataca os pilares básicos de um Estado de direito democrático, a saber: a separação dos poderes executivo, legislativo e judicial; a liberdade de imprensa e de associação; as eleições livres e o respeito pelos resultados do sufrágio universal. Dentro destes limites, pode defender-se tudo. Fora destes limites, é sacar da pistola.

“A democracia só é fraca nos momentos em que falha estrondosamente na defesa das regras que permitem a sua própria existência – e isto, infelizmente, está a ocorrer vezes demais”

A democracia liberal não é tanto um conjunto de crenças, mas antes um método, uma arquitectura que permite a coabitação de várias crenças num espaço comum sem o recurso à violência. A democracia parece muitas vezes um sistema fraco por se mostrar tolerante a ideias tão divergentes – mas essa é precisamente a sua força. A democracia só é fraca nos momentos em que falha estrondosamente na defesa das regras que permitem a sua própria existência – e isto, infelizmente, está a ocorrer vezes demais.

O que aconteceu no Congresso americano há dois anos, ou aquilo que aconteceu neste domingo na Praça dos Três Poderes, em Brasília, não é apenas um evento condenável, que deve ser criticado por todos os democratas – é um ataque violentíssimo ao coração do sistema democrático, que deveria ter sido repelido com força letal. Os manifestantes não pareciam estar armados, nem planearam um atentado contra Lula da Silva ou contra os juízes do Supremo Tribunal.

Mas atentar simbolicamente contra os pilares da democracia, e vandalizar as sedes do poder executivo, legislativo e judicial – que no Brasil, ainda por cima, acumulam com o génio do poder artístico nos edifícios deslumbrantes de Óscar Niemeyer –, é não menos ameaçador. É ensaiar um golpe revolucionário que uma democracia não pode tolerar.

Linha vermelha é isto. Neste contexto, pouco interessa que Lula seja corrupto, como eu acredito que ele é. Infelizmente, a democracia tem muitas falhas, e não garante a eleição de anjos ou querubins. Mas ainda ninguém encontrou melhor sistema político. Não há alternativa disponível mais eficaz. Lula é corrupto? Esperemos que daqui a quatro anos apareça um político melhor para tomar o seu lugar. Entretanto, ele é o Presidente do Brasil. E quem pede ao Exército para o derrubar enquanto destrói o congresso é um inimigo da democracia que não se limita a exprimir uma opinião – age violentamente para a impor aos outros.

Daí a minha defesa do uso de força letal nestas circunstâncias. Ver a polícia recorrer a canhões de água ou a gás lacrimogéneo é um grande avanço civilizacional no controlo de manifestações violentas, em relação a um passado que acabava com gente morta. Mas a polícia não pode deixar as armas no bolso quando uma multidão ululante invade e destrói a casa da democracia. É tibieza. É fraqueza. E é trágico, porque passa a imagem de que é possível fazê-lo sem grandes consequências. Brasília não teria acontecido sem Washington. Esperemos que não aconteça mais.

João Miguel Tavares

Publico

Do pântano ao pantanal

O futuro deste Governo depende de saneamentos, de cumprimentos de promessas não realizadas, de exame de consciência e até de retirada de conclusões sobre eleições. Não esquecer que a Madeira vai a votos em Outubro.

Dezembro de 2001: António Guterres dispunha de uma quase maioria absoluta (o parlamento estava efectivamente empatado), mas tivera maus resultados nas autárquicas.

Num discurso célebre, o então PM anunciou que pedia a demissão ao PR, porque se quebrara o elo “entre governantes e governados”.
Invocou dois argumentos: a “crise internacional” que exigia unidade pátria, e a verificação de que esta (já) não existia. Na verdade, o PS ficara com 37% dos eleitos locais, contra 44,95% do PSD e CDS.
Guterres disse então querer a evitar a criação de um “pântano político”, que não se resolveria com uma “moção de confiança na AR”, apesar de antes ter afirmado existir precisamente um problema de “confiança” entre representantes e representados.
No Verão de 2004, Jorge Sampaio empossava Santana Lopes como PM. O PR agia, como veio a confessar, contra muitos dos seus apoiantes, que achavam dever ser a saída de Durão Barroso para Bruxelas sucedida de eleições legislativas antecipadas.
Sampaio não o fez, por entender, como disse em palavras esquecidas, que uma mudança ou impedimento de um PM não implicaria a dissolução da AR, desde que a maioria de apoio ao governo garantisse que o novo executivo mantinha “consistência”, “vontade” de continuar o programa sufragado e “legitimidade”.
Meses depois, o mesmo Sampaio dissolveu a AR (nos termos dos artigos 133 e 172 da CRP) sem demitir o governo.
Tratou-se de um lapso que poucos notaram. Significava que, mesmo sem parlamento efectivo, o executivo mantinha todas as suas capacidades. Apesar do que equivocadamente o PR referiu no discurso de dissolvente, afirmando que a equipa de Santana Lopes passava a governo de gestão.
Ora isto só sucede se o PR demitir o executivo, invocando a impossibilidade de regular funcionamento das instituições (CRP, art. 195, nº 2).
Sampaio acabou por demitir Santana, depois de anotado o erro, embora no anúncio de dissolução já tivesse apontado o que estava errado no gabinete: “uma sucessão de contradições, declarações e descoordenações” entre membros do executivo, embora não as pormenorizasse, “por serem conhecidas do público”.
Coloquemos o controlo remoto do tempo para a frente, em velocidade rápida.
Chegamos a 2022, e verificamos as “contradições, declarações e descoordenações” de Sampaio, amplificadas e chegadas ao paroxismo, com demissões rotundas de ministros e secretários de Estado.
Chegamos a 2022, com demasiados casos de suspeitas e verificações de nepotismo, e de promiscuidade entre o público e o privado.
Chegamos a 2022 com escândalos repetidos na gestão do património dos contribuintes, e com ex-ministros em crise a darem-se ao luxo de falar pelo PM, antes de este se pronunciar.
É assim impossível não ligar o atual plano governativo ao que sucedeu em 2001 e 2004.
As maiorias não geram por si mesmas bom governo. Em geral, o bom governo obtém maiorias.
E a “estabilidade política” não é o bem maior.
Quem o disse foi o insuspeito Guterres, ao referir que poderia ter continuado a governar, porque possuía mandato. Mas essa continuação do poder não obstaria ao já dito “pântano”.
Na situação presente, seria assim importante que o PR – à falta de instância superior entre a consciência individual e Deus – pedisse especificamente uma garantia ao Executivo, para que não tivesse de o demitir, nem dissolver o parlamento.
Não se trataria nem de abuso nem de infração constitucional. Sampaio enunciou uma lista de exigências, quando empossou o também governo de maioria absoluta de Santana Lopes.
Que garantia seria esta? A de que António Costa chefiaria um novo governo, ou um governo remodelado, onde cessassem as ligações familiares e se investigasse a fundo – entre outras empresas públicas ou parapúblicas – a TAP; que gostaríamos de ver como companhia de bandeira, mas não a qualquer preço.
A não ser assim, o charco ameaça transformar-se em pantanal.
Por definição, “uma grande extensão de pântano”.


O futuro dos menos velhos
Trava-se uma discussão atrasada, mas sempre bem-vinda, sobre a sorte dos jovens portugueses.
Apesar de às vezes gastarem sem nexo, ou de viverem acima das possibilidades, a grande maioria está esmagada pela falta de trabalho pleno, desadaptação entre escola e empresa, impostos indiretos, taxas e emolumentos, tantas vezes absurdos, que agravam o custo de vida, e salários baixos, mesmo ou sobretudo para profissionais qualificados.
Não esperem – sem olhar para isto de frente – travar a razia da imigração, nem pensem que se combate a pobreza sem substituir meras políticas de assistência por estratégias de emprego inteligentes.
Há caminhos. Devia existir acordo nacional sobre eles.


Dois ou três Papas
O Papa da minha geração, que moveu montanhas, é João Paulo II. Já Bento XVI, que não quis ser moderno, mas exato, expôs, de forma original, com clareza e profundidade, a relação íntima entre fé e conhecimento objetivo. A sua lição de 2006 em Regensburg, é um dos grandes marcos da Filosofia (religiosa e política) contemporânea.
No Pontificado, a sua renúncia deveu-se ao vislumbre do mal absoluto, disfarçado dentro da Igreja, e a necessidade de alguém menos frágil para o combater eficazmente.
Ainda, a propósito de Ratzinger e Francisco, lembro o filme Os Dois Papas. Dividiu as opiniões, mas é soberbo ao explicar um universo geralmente caricaturado, quando chega à cultura de massas.


Experimentar sons (em Portugal)
No piano, João Barreto evoca The Lonely Tree, aproximação entre o autodidatismo e o erudito (Storm tem também percussão e um enigmático teclado distorcido), e António Rosado combina, entre trevas e luz, variação e rigor, Goya e Granados, em Goyescas. Fado Malvado tem ares de tango em Pontos de Passagem, e os Palankalama colocam o cavaquinho no jazz étnico, com Lama Pela Anca. Quanto a Surma, cria uma espécie de pós-rock ambiental expressionista, em Alla, enquanto Alexandre Soares investe no minimalismo eletrónico e na música concreta, no soberbo Ouvido Interno, e os Torn Fabricks expõem o seu metal mortal em Impera. Lugar especial para André Santos, com Embalo: a guitarra enquanto meditação.

Nuno Rogeiro

Sábado

domingo, 8 de janeiro de 2023

8 perguntas e respostas sobre o caso que levou à queda de mais um secretário de Estado do Governo Costa

Luís Rosa

Mais de 228 mil euros de rendimentos não declarados pelo Ex-autarca de Vinhais passaram pelas contas de Carla Alves. O que contraria informação dada por António Costa no Parlamento.

Ao contrário do que António Costa assegurou esta quinta-feira na Assembleia da República, a Polícia Judiciária (PJ) detectou movimentos alegadamente não declarados ao Fisco nas contas bancárias que tinham Carla Alves, a secretária de Estado da Agricultura que se demitiu esta quinta-feira.

São 228 mil euros dos 762 mil euros que o Ministério Público (MP) imputa a Américo Pereira, Ex-presidente da Câmara de Vinhais entre 2005 e 2017, como não tendo sido declarados fiscalmente e que estão na origem do pedido do arresto preventivo decretado pelo Tribunal de Instrução Criminal do Porto para serem declarados perdidos a favor do Estado na eventualidade do Ex-autarca socialista ser condenado.

Conheça os oito pontos essenciais deste caso que levou a um mandato de pouco mais do que 26 horas.

1 Que caso é este que envolve Carla Alves e o seu marido Américo Pereira?

Trata-se de um caso iniciado em 2014 e que levou à acusação de Américo Pereira (Ex-presidente da Câmara de Vinhais, eleito pelo PS, entre Outubro de 2005 e 2017), Luís Morais (padre, reitor do Seminário Nossa Senhora da Encarnação em Vinhais) e Nuno Gomes (sócio da empresa TecVinhais – Consultores e Investimentos Lda e 1.º Secretário da Assembleia Municipal de Vinhais entre 2005 e 2008) por parte da 1.ª Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal Regional do Porto.

Curiosamente, o cargo na Assembleia Municipal desempenhado por Nuno Gomes ocorreu quando Armando Vara era o líder do órgão legislativo municipal.

Américo Pereira e Nuno Gomes foram acusados em regime de co-autoria do crime de corrupção activa, prevaricação e participação económica em negócio, enquanto que Luís Morais foi acusado de prevaricação, participação económica em negócio e abuso de confiança qualificado.

O caso gira em torno de diversas negócios de compra e venda de vários prédios rústicos do Seminário da Nossa Senhora da Encarnação e das consequentes operações urbanísticas que permitiram a conversão de parte desses terrenos em prédios urbanizáveis, que permitiam a construção de habitação.

O procurador Bruno Pereira Castro entende que Américo Pereira terá favorecido Luís Morais, Nuno Gomes e a sua empresa TecVinhais em mais de 900 mil euros.

2 Como é que aparece a secretária de Estado da Agricultura no processo?

Carla Alves aparece neste caso por ser casada com Américo Pereira, união que foi consagrada a 1 de Julho de 2006 em regime de comunhão de adquiridos. Ou seja, a agora Ex-secretária de Estado da Agricultura não foi acusada (nem foi constituída arguida), mas detinha várias contas bancárias por onde terão passado fundos que estavam à disposição do seu marido.

Isto é, durante a investigação patrimonial realizada ao casal foram detectadas contas bancárias conjuntas entre Américo Pereira e Carla Alves que demonstravam, no entendimento do Ministério Público, que o Ex-presidente da Câmara de Vinhais possuía um “património incongruente com os rendimentos lícitos” por si declarado.

O que significa isto? Que entrou mais dinheiro nas contas bancárias de Américo Pereira e Carla Alves do que aquele que foi declarado pelo casal junto da administração fiscal.

3 O que garantiu António Costa na Assembleia da República?

A uma pergunta durante o debate da moção de censura apresentada pela Iniciativa Liberal, o primeiro-ministro foi muito claro, citando uma conversa que alguém do Governo tinha tido com a então ainda secretária de Estado da Agricultura:

“Perguntámos à secretária de Estado [Carla Alves] se constavam na conta conjunta os montantes referidos na notícia [publicada de manhã na edição do Correio da Manhã]. E ela disse que não, que na conta conjunta só constavam rendimentos do trabalho. Perguntámos se havia dúvidas sobre as declarações fiscais que fez. Ela disse que ‘não’, que tinha declarado todos os rendimentos”.

O que António Costa quis dizer é que Carla Alves assegurou que os montantes alegadamente não declarados pelo seu marido não tinham passado pelas suas contas, nomeadamente as conjuntas.

4 Isso é mesmo assim? Os fundos não declarados por Américo Pereira não passaram pelas contas conjuntas do casal ou da própria Carla Alves?

Não. Na parte da acusação em que o procurador Bruno Pereira Castro faz a “liquidação do património incongruente”, através do regime de “perda alargada”, é claro que no seu entender existem fundos que passaram por contas bancárias tituladas por “Carla Maria Gonçalves Alves”.

Sendo que os mesmos fundos correspondem a um património “incongruente com os rendimentos lícitos” auferidos por Américo Pereira.

E porquê por Américo Pereira? Porque o MP entende que os fundos que passaram pelas contas bancárias aqui em causa correspondem a bens na “disponibilidade do arguido” — e não de Carla Alves.

Seja como for, o despacho de acusação não esclarece se a conta é individual ou se Carla Alves é apenas a primeira titular, sendo o seu marido o segundo titular.

As contas bancárias são duas:

  • Conta na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Vinhais
  • Conta na Caixa Geral de Depósitos

Passaram mais de 228 mil euros por essas duas contas que, segundo o MP, não foram declarados nos anos fiscais entre 2014 e 2019. A saber:

  • 2014 — 89.062,03 euros
  • 2015 — 113.635,86 euros
  • 2016 — 3.633,90 euros
  • 2017 — 10.816,79 euros
  • 2018 — 4.343,61 euros
  • 2019 — 7.498,50 euros

Total: 228.990, 69 euros

Ou seja, este facto contradiz em absoluto o que foi transmitido por António Costa no Parlamento.

5 Como se chegou a esta investigação patrimonial a Américo Pereira e Carla Alves?

Como é habitual em processos do crime económico-financeiro, e também nos casos de tráfico de droga, o MP solicita uma investigação patrimonial ao Gabinete de Recuperação de Activos da Polícia Judiciária (PJ) com o fim de perceber se há incongruências entre o património declarado (bens imóveis, móveis ou contas bancárias, por exemplo) e eventuais rendimentos não declarados.

A chamada “incongruência” é precisamente a diferença entre os rendimentos declarados e os não declarados. Detetada essas incongruências, o MP descreve as mesmas na parte final do despacho de acusação, solicita o arresto preventivos dos bens (imóveis, saldos bancários, etc.) que tenham alegada origem ilícita e solicita a perda alargada dos bens a favor do Estado com o trânsito em julgado de uma eventual pena condenatória.

6 Como surgiu essa lei?

A ironia de tudo neste caso que volta a causar danos políticos ao Governo, é que a lei teve o seu primeiro pontapé de saída com António Costa, enquanto ministro da Justiça de António Guterres. Se não fosse a Lei n.º 5/2002 de 11 de Janeiro que criou o mecanismo de perda alargada de bens, provavelmente Carla Alves ainda seria secretária de Estado da Agricultura.

Apesar de a lei ter sido criada em 2002, só mais tarde é que foram criados outros mecanismos legais e apenas em 2008 é que a Procuradoria-Geral da República criou um manual de boas práticas, num projecto coordenado pelo procurador-geral adjunto Euclides Dâmaso que foi apelidado de “Projecto Fénix”, para que os magistrados do MP aplicassem este regime de perda alargada de bens e adaptassem a Decisão n.º2007/845/JAI do Conselho de 6 de Dezembro.

Foram assim criados o Gabinete de Recuperação de Activos e o Gabinete de Administração de Bens — o primeiro funciona na órbita da PJ, enquanto que o segundo foi criado para ser gerido pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça.

7 Não tendo nada a ver com o caso, Carla Alves podia deduzir oposição ao arresto dos bens?

Sim, pode. Ao que o Observador apurou, terá sido precisamente isso que a agora Ex-secretária de Estado da Agricultura terá feito, solicitando, como é seu direito, a separação do seus bens do arresto preventivo decretado.

Como o arresto preventivo foi decretado sem audiência prévia dos visados (algo normal, visto que a notificação pode levar à dissipação do património que se pretende arrestar), Carla Alves só podia ter deduzido oposição após ter sido notificada do arresto.

O Observador questionou Carla Alves por escrito sobre a data do seu requerimento de oposição ao arresto mas não obteve resposta.

8 A Ex-secretária de Estado da Agricultura só soube da acusação quando a comunicação social noticiou o arresto das suas contas?

Não é plausível que assim seja, por duas razões. Em primeiro lugar, o seu marido Américo Pereira foi notificado da acusação em Março de 2022, sendo certo que o despacho de encerramento de inquérito tem a data de 14 de Fevereiro de 2022.

A própria Procuradoria-Geral Distrital do Porto publicitou a mesma, tendo vários órgãos de comunicação social noticiado na altura tal acusação.

Por outro lado, o arresto preventivo foi decretado antes da acusação ter sido deduzida, sendo que foram arrestados os saldos de várias contas conjuntas do casal, incluindo as duas acima referidas em que Carla Alves aparece como titular. O que significa que Carla Alves não pode mexer nos saldos das contas que foram arrestados desde aquela data.

Acresce, finalmente, que também o arguido Nuno Santos e a sua empresa TecVinhais viram ser decretados arrestos preventivos até ao valor, respectivamente, de cerca de 943 mil euros e 1,8 milhões de euros.

Observador

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Centenas de milhares de pobres e Centeno em negação

A fechar o ano com chave de ouro, tivemos as declarações absolutamente inclassificáveis, insultuosas e sem qualquer respaldo com a realidade, (se não a sua própria, distorcida, fantasiosa e a todos os títulos de uma alienação gritante) do Governador do Banco de Portugal, Dr. Mário Centeno.

O Super Mário das finanças, como em tempos foi apelidado, deve ter batido cert(eir)amente com o cocuruto com demasiada força nos tijolos que aqui a ali cabeceia, ou ingerido algum cogumelo estragado, enquanto recolhia com fulgor as moedas de todos os portugueses, numa ânsia contábil que nos cativou durante anos largamente em sentido literal, constrangendo a vida de todos nós, a um nível quer privado, quer de serviços públicos sem paralelo, até mesmo durante o período da “troika”.

Só esta metáfora poderá explicar a alarvidade das suas últimas declarações, feitas à margem de uma conferência de imprensa, e porque não dizer de qualquer resquício de realidade sensata, que apresentava o Boletim Económico de Dezembro e os inerentes desafios que Portugal teria pela frente. Se não foi a primeira opção, então teremos que concluir que o dito senhor é mesmo mal-intencionado e um demagogo exímio, que ameaça suplantar o mestre que tudo lhe ensinou em termos de política, sabem naturalmente bem a quem me refiro.

Mas passando à mais profunda desfaçatez que dá mote a este artigo, e que passo a citar, “…é de certo modo um mito afirmar-se a existência de famílias endividadas”, já que, segundo o próprio, só 8,8% do último quintil de rendimento mais baixos se encontrava sob o jugo do crédito à habitação, numa desonestíssima afirmação e falta de pejo, para não lhe chamar outra coisa, que é revelador pelo menos de dois fenómenos bastante comuns e particulares que acompanham normalmente o raciocínio deste tipo de declarações e de quem as profere na fauna política.

O primeiro é que o dito senhor não consegue já entender o drama e a realidade que os números e percentagens que tão bem gosta de dissecar de forma estéril nas suas conferências e palestras de autopromoção representam, uma vez que a sua vida burguesa e os rendimentos que aufere deslocaram-no de tal modo da realidade, que o tornam insensível e totalmente dissociado. Por outras palavras, a sua visão do mundo não lhe permite de modo algum entender as opções (ou falta delas) de vida de outros, o que o torna certamente um medíocre economista, dado que embora ele se tenha convencido da sua grande capacidade de analista e de técnico, há que relembrar que a economia que ele tão bem maneja não é de todo uma ciência exacta e lida com a sociedade e o homem nela inseridos. Sem entender essa dinâmica, ou sequer ter empatia pela avassaladora maioria, os tais que estão em risco de pobreza até mesmo com empregos, como há tempos mostrava um estudo, corresse o risco de deturpar certamente as suas conclusões.

A segunda é mais grave ainda e poderá indiciar que o mesmo Dr. Mário e os demais que por aí andam, em bom português, estão-se a marimbar para o facto das pessoas terem ou não poder de compra ou sequer garantias para contrair crédito, efabulando assim uma realidade outra, demagógica, para se convencerem a si e aos outros que estiveram presentes, e ao mesmo tempo ausentes, diria até mesmo deslocado do ponto fulcral desde o início daquilo que viria a dar lugar ao cenário social que temos em mãos.

Seja como for, esta é mais uma entre tantas outras formas de olhar para a realidade, retirando o ónus da culpa que as suas políticas e decisões anos a fio, como cativações, cargas fiscais, programas de contas certas, que são um eufemismo para a tal austeridade que tinha acabado, tiveram na vida daquelas pessoas, em que a vida está de tal modo estagnada que nem lhes é permitido adquirir crédito, limitando-se assim os outros 92% do quintil mais baixo a arrendar casas, muitos deles com rendas próximas de um quarto ou até mesmo metade do seu ordenado, que os faz cair na pobreza e que tanto e tanto querem que também caiam no esquecimento.

Só ignorando que tal cenário existe o Douto conseguirá manter a fachada de grande especialista entendido de várias matérias e, naturalmente, o craque que se reconhece.

Àqueles tais que não têm voz, excepto quando se fartam de ser ignorados e enveredam numa revolta “robspierriana”, como já aconteceu, ou quando a sua realidade dramática e visivelmente gráfica, surge representada numa coluna de barras, ou curva de tendência de forma abstracta e crua, não deixando margem para falácias ou escamoteios de espécie alguma, resta-lhes apenas continuar a empobrecer, dado que todas as suas incapacidades são constantemente negadas e desmentidas por quem os poderia de facto auxiliar, mostrando uma realidade que as abafa e mantêm-nas invisíveis contra a sua vontade.

Subvertesse dessa forma a função económica salutar, e que possui bases e ferramentas de diagnóstico, para prever, minorar e corrigir as situações, pela política bacoca, esta sim verdadeiramente teimosa e perfidamente negacionista e baixa, ignorante propositadamente da condição das pessoas e do seu dia-a-dia, que induz em erro todos aqueles que a olham e abarcam e descansa os espíritos daqueles que deveriam estar em pânico e também envergonhados pelo estado a que chegámos enquanto comunidade e país.

Em vez disso anulasse qualquer indício de que algo não está bem, mentindo com a verdade ou dizendo apenas meia dela.

Só admitindo os erros, as fragilidades, as debilidades sociais e não anulando as conclusões a que se chega, por via quer empírica, quer científica, por pura cegueira ideológica ou mero oportunismo carreirista de política, como aliás Centeno é o exemplo acabado e todo o seu percurso dos últimos anos, o comprovam, poderemos de facto ter uma sociedade bem mais equilibrada, justa, que a todos nos orgulha. Para isso não podemos constantemente martelar números e quando estes não podem mais ser negados, ou não irem ao encontro daquilo que são as nossas convicções e narrativas ou discursos, minimizá-los e extrair dele outra realidade e outro sentido que não seja aquela que eles mesmo contam.

Podemos continuar a alterar os gráficos e o “excel”, é-nos lícito e o programa assim permite, até mesmo os mais estapafúrdios e irreais, mas chega uma hora que os temos mesmo que confrontar, assumindo a quota de responsabilidade que temos, sem nos refugiarmos em desculpas e meias verdades. Esta é a lição que Centeno não aprendeu nos anos todos de estudo que cursou em tantas e tantas cadeiras onde se sentou, fazendo-nos lembrar aquela velha frase atribuída a Oscar Wilde, e aqui adaptada: Mário Centeno sabe os preços de tudo, a sua composição, formação e afectação a produtos, serviços e comportamentos, mas infelizmente e definitivamente não sabe o valor de nada.

Bruno Miguel Monarca

jornaldiabo

Estamos muito longe de sermos uma democracia.

Henrique Neto

O ano de 2022 está a chegar ao fim, sem grandes razões para deixar saudades à generalidade dos portugueses. Foi mais um ano em que cresceu a pobreza das famílias, em que o país se continuou a atrasar relativamente a outros países europeus do nosso campeonato, seja na questão do crescimento económico, seja na distribuição do rendimento das famílias em unidades de poder de compra.

Porventura mais grave, durante 2022 acentuou-se o modelo político de crescimento do poder do Estado à custa do papel da sociedade e da economia. Ou seja, o Governo do PS, confrontado com cada vez mais frentes de mau funcionamento dos serviços públicos e com as dificuldades crescentes das famílias na habitação, nos transportes, na saúde e a sofrerem uma forte redução do seu poder compra devido aos efeitos do crescimento da inflação, decidiu-se pela continuação de políticas sociais de subsidiação.

Não posso afirmar se esta política do Governo se deve a preocupações sociais legítimas, sem dúvida necessárias no actual contexto, ou se é apenas a continuação de políticas anteriores de manter dependentes do Estado sectores da sociedade mais próximas do partido no poder. Mas nem isso é muito relevante agora, porque as dificuldades das famílias portuguesas no actual contexto são reais e muito graves. Todos os relatos que nos chegam diariamente das instituições de solidariedade social sobre situações de fome, de dificuldades na habitação, do crescimento do número de cidadãos estrangeiros sem condições de sobrevivência dignas em Portugal, revelam de forma crescente um panorama preocupante relativamente ao nosso futuro colectivo. Ou seja, a questão é, principalmente, a de saber se esta política do Governo de acorrer às dificuldades da população portuguesa através de dádivas avulsas do Estado é sustentável e, pessoalmente, penso que não é por várias razões:

Economia

O que seria normal num país normal, seria o crescimento da economia, da produção nacional, do investimento, da produtividade e dos salários, com o resultado das famílias dependerem menos do Estado para a sua sobrevivência e deixando margem para o Governo melhorar a sua própria organização e produtividade, contribuindo pelo seu lado para a modernização do país e para a competitividade nacional. É isso que ao longo dos tempos foi feito pelos países de democracia avançada da União Europeia e não por uma economia controlada por decisões avulsas do Estado.

Organização

Infelizmente, a organização não é o forte do actual Governo, o que é bem visível no caos instalado no Serviço Nacional da Saúde, na resolução dos graves problemas existentes na educação, nos trágicos atrasos na Justiça e no facto de serem precisos cada vez mais funcionários e com menor produtividade em geral. Pior, os sucessivos programas de ajuda social são geralmente complexos, cobrem uns enquanto outros ficam de fora, envolvem diversos ministérios e serviços durante tempos variáveis, um verdadeiro quebra-cabeças organizativo que indicia falhas, descontentamento e alguma anarquia. A crescente tentação de isolar a administração pública dos cidadãos e das suas necessidades é um passo mais no mau caminho.

• Leia este artigo na íntegra na edição em papel desta semana já nas bancas

jornaldiabo

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Ao pé disto Santana era de chocolate como aqueles chapeuzinhos que se dão às crianças

Maria João Avillez

Mas não temos aqui um PR, interessado em oferecer a governação ao seu partido original.


O novo par do Executivo, o aparatoso Galamba e a jovem que o acompanha pertencem ambos à galáxia privativa do “pedronunismo”: de que é que Costa tem medo?

1 - Prodigioso: com o mesmo guião, os mesmos protagonistas, os mesmos actores nos mesmos papéis, começou uma outra peça política. Protagonistas velhos para novas circunstâncias. O governo saltou da letargia para a ficção alimentada por uma segunda ficção que é Belém achar verosímil a primeira. Só Pedro Nuno se apressou a trocar expeditamente o mito do “responsável governante” que nunca foi, pela mística do “sucessor exitoso” que as pitonisas — e os pitonisos — do PS garantem que será. Não me espanta que garantam: que interessa a acumulação dos desastres governativos do Ex-ministro e dos milhões atirados pela borda fora da TAP, comparada com a possibilidade de acabar de vez com um PS que sempre conhecemos? Sepultando-o de vez e fazendo do “novo” (?) um partido socialista oficialmente de esquerda radical, em mandamentos e escolhas. Ao pé desta ansiada mutação que interessa que os portugueses continuem a pagar os milhões que Pedro Nuno Santos desperdiçou e sofram com as promessas que não cumpriu?

A peça continuará em cartaz por tempo indeterminado, enquanto nos bastidores Pedro Nuno Santos não deixará cair o estatuto de “protagonista”. Se conseguir, far-lhe-á um arranjão, agora que está à solta na pele (que no seu íntimo nunca largou) de general-guerrilheiro com tropas.

2 - Se, à excepção do general-guerrilheiro, tudo se mantém, o que mudou então? Mudou a natureza das coisas: pela primeira vez António Costa foi atingido em cheio. À vista desarmada a vulnerabilidade fez uma “fracassante” entrada em cena. Passou a ser um dado da governação: o chefe do governo é vulnerável, o governo está irreversivelmente vulnerabilizado. Além disto, que é muitíssimo, o factor dúvida — do qual a política não gosta — oficializou-se: o PS não sabe o que pensar, as suas gentes não sabem como proceder. Duvidam. Balançam. As divisões internas subiram à luz do dia, saindo da penumbra onde germinavam. A mediocridade socialista – governativa e partidária — é indisfarçável, está na montra do país. António Costa — não é novidade — não é fadado para o mau tempo e vem aí pior tempo. O fastio com que tem governado passou a desnorteio e agora estacionou numa espécie de “fechamento” que as suas temerárias e desclassificantes nomeações governamentais desta semana exibem desapiedadamente: o novo par do Executivo, o aparatoso Galamba e a jovem que o acompanha, pertencem à galáxia privativa do “pedronunismo”: de que é que Costa tem medo, ele que não costuma tê-lo? (Não se invoquem os “equilíbrios internos”. Por favor).

3 - Em face desta degradação que todos os dias nos confunde pela velocidade do seu galope sobram duas perguntas não despiciendas: António Costa conseguirá sair dos escombros de si próprio? Olhando para o seu entricheiramento que começou pelos amigos do peito — que depois tratou mal – passou depois para ajudantes, se agora para servos e “factotum”, custa a crer que consiga. As coisas estão, porém, mais nas suas mãos do que nas do Presidente da República, embora aos distraídos pareça o contrário. O primeiro-ministro tem muito tempo pela frente mas pouquíssimo para dar um golpe de rins, respirar fundo e agarrar em Portugal com ambas as mãos. Se não o fizer, acaba politicamente. Mesmo que dure.

4 - Ouvi elogiar o speech de Belém, no primeiro dia deste ano: que o Presidente deixara o discurso politicamente amável e edolcurante e “desta vez” se zangara. Não me parece que o Chefe de Estado tenha usado — com consequências úteis — da responsabilidade e autoridade que tem para denunciar os lesivos efeitos que a governação tem provocado no país. A sua suposta exigência nunca”cobre” a dramática acumulação desses efeitos. Sim, deixou avisos, acendeu luzes intermitentes, mostrou desagrado; aparentou severidade e autoridade, o que não é o mesmo do que as exercer. Fez os serviços mínimos. A forma pode ter iludido, o fundo, não: o Chefe de Estado não pediu contas, não avisou que iria pedir (e o embaraço era escolher por onde pedi-las). Numa só coisa se pode – se deve — segui-lo: o ter afugentado de imediato a lamúria por eleições antecipadas. Qualquer pessoa normalmente constituída — e não só Luis Montenegro – concordará com o seu “não”.

Isso, esta cidadã agradece-lhe. (Achando que começa a ser difícil lidar com a quantidade de doidos com responsabilidades que grassa pelo país.)

“Crash and burn”!

Alexandra Reis é o perfeito paradigma que serviu de bandeira de campanha do Partido Socialista e representou, na perfeição, a estratégia das novas oportunidades. Desde logo, porque, apesar de engenheira de formação (na área da electrónica), conseguiu palmilhar caminho noutras vertentes, chegando ao Tesouro, depois de ter passado pelos recursos humanos. É um percurso bonito, até porque faz ruir uma data de mitos como aquele “convém que percebas um bocadinho do lugar que vais ocupar”. Ou seja, da próxima vez que esteja a perder cabelo e com as pestanas a queimar porque o seu filho tem média negativa e só pode entrar em optometria veterinária para gatos cor-de-rosa num politécnico de Arrabaldes-de-Baixo e você achar que aquilo é desemprego na certa e vai ter que pôr algum da sua reforma para complementar o RSI, não desanime, que o petiz pode sempre chegar a presidente do Conselho de Administração de uma empresa pública qualquer. Pouco tardará a termos talhantes como ortopedistas ou cabeleireiros como farmacêuticos. E está bem, porque isto de termos advogados e economistas como caixas de supermercado, não pode ser de sentido único. Portugal na frente no reino da paridade e igualdade de oportunidades.

Voltando à Alexandra, cujo percurso profissional foi feito, maioritariamente, na área das compras, passando pela PT, REN e Netjets antes de sentar o bendito na TAP. O facto de grande parte dessas empresas ter capital estatal, é mera coincidência, seguramente… Assim, chegada em 2017, foi em 2020 que chegou a funções executivas, já com o actual Governo em funções e não sob gestão do grupo Barraqueiro. Mas percebe-se a confusão dos “media”, já que, ao que parece, a sua nomeação foi uma completa barraca, porquanto rapidamente foi de lá corrida… Entretanto, e com a dita nomeação, passou a receber um vencimento ao nível dos jogadores de futebol, apesar da pandemia e das dificuldades financeiras da empresa, intervencionada pelo Estado. O que também se compreende, não tanto pelas explicações de Pedro Nuno Santos, à data, mas porque dispunha do toque de Midas: despediu quase 3000 pessoas da TAP, que, a partir de então, se tornou muito mais eficiente e passou a dar lucros extraordinários. Aliás, basta olhar para os interessados a fazer filas e ofertas pornográficas, com o Governo a recusar vender a galinha dos ovos de ouro…

O facto de ser amiga de Stéphanie (não a princesa do Mónaco, mas a Governanta de Lisboa, casada com Medina que tutela a TAP), é, seguramente, outra coincidência que nada pesou na nomeação e, menos ainda, na posterior indigitação para a NAV (mas já lá vamos…)!

Não se tendo aguentado em funções, sai Alexandra da TAP, fosse por vontade da empresa (como diz a própria), fosse por vontade própria (como comunicou a TAP à CMVM, por escrito, nos termos da lei e em documento oficial). Sabendo que ia para a fila do desemprego, Alexandra tratou de comprar uns sapatinhos confortáveis (presume-se que os mesmos que usou na tomada de posse do Executivo) por seiscentos euros, não sem antes assegurar a indemnização que lhe apontou a porta da rua. Numa negociação meio marroquina, começou por pedir um milhão e meio (de euros, não de dinares), para acertar em quinhentos mil. Arrebatado, lá se tratou de formalizar verbalmente o acordo já que o documento que o deveria titular ninguém sabe onde ele pára e teima em não aparecer. Também não é preciso, que são todas pessoas de bem e a palavra é para cumprir…

Garante Alexandra que jamais aceitaria um euro a que não tivesse direito e que não fosse legal, devolvendo-o, se fosse o caso, imediatamente. Fica uma novidade e um esclarecimento gratuito para a (Ex)governante: se a conduta fosse ilegal, a devolução não é um acto de boa-fé ou demonstração de seriedade. É crime e dá cadeia! Lá está: é das coisas que um secretário de Estado do Tesouro deveria saber…

jornaldiabo

Deixem estragar, senão vem o Chega e estraga

Uma coligação PS/Chega para a cada vez mais acelerada agonia do regime democrático é o que se anuncia até ao fim da legislatura. Habituem-se.

Pedro Nuno Santos não faz grande falta no Governo. Como ministro das Infra-estruturas e Habitação, o seu legado é uma crise habitacional dramática, agravada pela transformação do imobiliário em produto de exportação para clientes de Vistos Gold e de abébias fiscais para estrangeiros ou "nómadas digitais" – políticas problemáticas, até pelos riscos de corrupção e lavagem de dinheiro sujo, que o PS nunca contrariou e alegremente promoveu –, sem qualquer avanço na regulação eficaz do mercado ou na oferta de habitação pública.

Na sua proclamada paixão pela ferrovia, o balanço é um conjunto de obras a falhar prazos e a derrapar custos, desaproveitando a chuva de dinheiro europeu que lhe permitiu anunciar muito, mas concretizar pouco. No novo aeroporto de Lisboa foi o que se viu: um anúncio histórico a romper uma indecisão de 50 anos, rompido ao fim de 50 minutos. E na TAP, pior ainda: uma bomba-relógio de 3200 milhões de euros, entregue a uma gestão predatória, mais empenhada nas vantagens pessoais dos administradores do que na recuperação da empresa.
Claro que Pedro Nuno Santos teve a elevação de se demitir, face ao escândalo indefensável de Alexandra Reis e da sua escalada da TAP para a NAV e para o Governo. Só essa noção básica de responsabilidade política deixa-o uns furos acima de Fernando Medina, a quem bastou dizer que não sabia de nada para que a sua ignorância táctica o salvasse. Um ministro das Finanças tontinho é mesmo o que o país precisa. Nos Governos de António Costa, uns são decididamente filhos e outros enteados.
Também foi simpático para Pedro Nuno vermos quem veio para o seu lugar: João Galamba, o amigo de Sócrates sob escrutínio judicial que fez amizades nos lóbis da energia e que agora as fará nos lóbis da construção; e Marina Gonçalves, que mais uma vez demonstra a estreiteza dos mecanismos de recrutamento de António Costa: do partido para os gabinetes ministeriais, dos gabinetes ministeriais para as secretarias de Estado, das secretarias de Estado para os ministérios, numa escalada que premeia a obediência e fidelidade ao chefe. Pouco inspirador.
O que faz com que tantos suspirem por Pedro Nuno é a recordação do seu papel na Geringonça como agregador das esquerdas e, num plano mais estrutural, a admiração viciosa que Portugal continua a ter por políticos autoritários, que cortam a direito – um estilo de voz grossa com antecedentes bem-sucedidos, de Costa e Sócrates a Cavaco, até ao remoto Salazar. Uma medida, enfim, da fragilidade da nossa democracia e da nossa queda para o iliberalismo como remédio mal-amanhado para a falta de instituições sólidas e eficazes.
Sucede que todo o caso de Alexandra Reis é exemplar dos custos de termos más instituições e demasiada concentração de poderes, precisamente os traços de regime que as lideranças afoitas de políticos como Pedro Nuno Santos agravam. Alexandra Reis ilustra o sistema de carreiras clientelares que tomou conta da gestão pública em Portugal, nas direcções-gerais, reguladores e empresas do Estado, onde se progride por nomeação governamental feita por fidelidade ao chefe, sem demonstração de currículo ou competência técnica.
Há décadas que a Administração Pública autónoma e competente tem vindo a ser enfraquecida e esvaziada, por vários Governos. O PS assalta esse poder institucional do Estado para o distribuir pelos amigos; o PSD assalta-o para o privatizar aos amigos. Se alguém acha que um dos vícios é menos nocivo e mais defensável do que o outro, boa noite e bons sonhos.
Neste contexto, as reacções da oposição ao último caso da TAP não vão além do oportunismo imediatista, procurando capitalizar votos para uma eleição que não vem a caminho (e que os próprios só exigem porque sabem que ninguém vai topar o seu bluff), sem perceber a dimensão estrutural de um caso que demonstra, mais do que as trapalhadas de um Governo, um Estado em desagregação. É também por isso que eleições antecipadas não serviriam de nada: a oposição que as exige não percebe, ela própria, o que tem de mudar.
Fora da oposição, também é proibido fazer perguntas. O PS já decretou o assunto como encerrado (o PS tem mais jeito para "encerrar" assuntos do que para resolvê-los) e quem insistir no escrutínio é arrumado como "chegano" pela matilha do partido no poder, nas declarações públicas, caixas de comentário e redes sociais.
O Chega transformou-se no grande álibi do PS. A cada caso de caciquismo, a cada escândalo de má gestão, a cada mancha de opacidade, a cada negócio mal explicado, PS e Governo arrumam o assunto com um apelo à resignação e ao medo, insistindo que a discussão pública é uma ferramenta de promoção da extrema-direita. O Chega, por sua vez, retribui o favor, cavalgando a degradação das instituições democráticas como ativo eleitoral. Funcionou lindamente para os dois partidos nas últimas eleições. Continuará a funcionar até que o próprio regime democrático esteja reduzido a uma caricatura disforme.
Que se lixe o país. António Costa e André Ventura têm uma relação simbiótica de promoção cruzada para obtenção de poder pessoal. Costa argumentando que é preciso deixar espatifar o país e as suas instituições, porque senão vem o Chega espatifá-las. E Ventura demonstrando que há cada vez menos para salvar; e que mais vale partir a loiça. O pântano de que António Guterres fugiu há mais de 20 anos é hoje o habitat natural da política portuguesa. Sem um sobressalto democrático (que terá de vir de fora dos partidos), estamos em maus lençóis.

João Paulo Batalha

sabado

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

O ministro socialista perfeito segundo António Costa

Não recruta ministros na sociedade civil pela mais simples das razões – porque não quer. Porque acha que é uma má ideia. Porque considera um risco desnecessário.


Existe a ideia de que António Costa já não consegue recrutar ministros na sociedade civil, fora dos círculos políticos do Partido Socialista. Essa ideia parece-me totalmente errada. Num país dominado pelo Estado, em que a administração pública gasta anualmente cerca de 50% do PIB português, ser ministro da República pode ser um mau investimento durante um intervalo limitado de tempo – infelizmente, ganha-se mal a servir a pátria –, mas costuma ser um excelente investimento para o futuro. Basta comparar as carreiras profissionais dos ministros antes e depois de passarem pelo governo.

António Costa não recruta ministros na sociedade civil pela mais simples das razões – porque não quer. Porque acha que é uma má ideia. Porque considera um risco desnecessário. É uma escolha totalmente deliberada; não é por falta de opções – é por estratégia política. Aliás, quando na conferência de imprensa desta segunda-feira ele foi confrontado com o facto de os novos ministros saírem de dentro do seu Governo, António Costa respondeu que a anterior secretária de Estado (Alexandra Reis) “não estava no Governo e não tinha experiência governativa”. Que é como quem diz: vejam no que deu ir recrutar gente nova à sociedade civil, sem qualquer tarimba política.

Costa justificou a escolha de João Galamba e de Marina Gonçalves salientando três características fundamentais, que ambos partilham. Reparem bem nelas, porque acredito que está mesmo a falar a sério: “São duas pessoas com experiência governativa” e “que (1) conhecem os meandros da administração, que (2) não se embaraçam com as exigências da transparência e da burocracia necessárias à boa contratação pública, e que (3) dão garantias de que não haverá descontinuidade na execução das políticas”.

Este é o retracto do ministro socialista perfeito. 1) Alguém que domine a administração pública; 2) alguém que domine a burocracia do pilim europeu; 3) alguém que resista à tentação de pensar pela própria cabeça, ao ponto de alterar o rumo político definido. E tudo isto, claro, sem se deixar “embaraçar” com as “exigências de transparência” – uma estranhíssima expressão, na qual a transparência surge mais como um obstáculo que é preciso saber ultrapassar do que como uma necessidade elementar dos sistemas democráticos.

Eis o resumo da tese de António Costa sobre os novos nomeados: dois excelentes burocratas socialistas que fazem o que ele manda. E que, claro, asseguram a “boa execução dos fundos europeus”. Num Governo sem ideias e num Estado sem dinheiro, o bom ministro é o bom funcionário que sabe distribuir com competência o dinheiro de Bruxelas. Entre escolher ministros para melhorar a vida do país ou escolher ministros para melhorar a sua vida, António Costa não hesita.

E, no entanto, há um certo gosto em brincar com o fogo; um estranho prazer em arriscar mortais em cima do arame. A não ser que tenha acontecido a João Galamba na Secretaria de Estado da Energia o mesmo que a São Paulo na estrada de Damasco – uma epifania que o transformou em homem novo –, o novo ministro das Infra-estruturas tem fama (e proveito) de ser um barril de pólvora de pavio curto. Ventura já veio aquecer o ambiente com a história das investigações ao negócio do lítio, que surgiram há dois anos, desapareceram, e ninguém sabe em que ponto se encontram. António Costa, pelos vistos, mete as mãos no fogo por Galamba. Rezem por ele, porque basta um fósforo no Correio da Manhã – e bum.

João Miguel Tavares

Publico

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

A QUALIDADE DA GESTÃO DA TAP

A notícia:

TAP gasta 20 milhões de euros a converter e reconverter avião

A TAP decidiu converter dois aviões de passageiros em cargueiros mas, um ano e meio depois, só um deles está a voar. O outro regressou ao hangar para voltar ‘à estaca zero’. Esta decisão terá custado aos cofres da TAP mais de 18 milhões de euros, aos quais acrescem os custos de estacionamento.”


Comentário:

O lucro médio que um passageiro representa para uma companhia aérea é de 4 euros (não sabia, pois não?).

Portanto esta decisão da gestão da TAP foi equivalente a perder 4,5 milhões de passageiros!

Fixe os nomes dos ‘administradores executivos’ da TAP:

  • Chief Executive Officer: Christine Ourmières-Widener
  • Chief Financial Officer: João Weber Gameiro
  • Chief Operations Officer: Ramiro Sequeira
  • Chief Corporate Officer: Alexandra Reis
  • Chief Commercial Officer:  Sílvia Mosquera

O acontecimento do ano é também o mais perigoso

Após a anexação pela Federação Russa de partes da Ucrânia, não há solução pactuada, ou há rendição ou derrota. Foi Putin que iniciou a guerra e foi Putin que destruiu qualquer possibilidade de qualquer negociação.

Toda a gente é unânime em considerar que a invasão russa da Ucrânia é o “acontecimento do ano”. Mas há que acrescentar outra coisa: é o acontecimento mais perigoso desde que Hitler invadiu a Polónia em 1939, provocando a II Guerra Mundial. Insisto: muito e muito perigoso, porque apesar dos lugares comuns sobre como “tudo tem solução, basta querer”, nesta altura não tem a “solução” que as pessoas estão a pensar, e a que tem é igualmente muito perigosa, embora isso não seja argumento para não a defender.

Essa solução é a vitória da Ucrânia sobre a Federação Russa, sobre Putin, porque a alternativa, a derrota da Ucrânia não é uma verdadeira solução e não acaba com nada. O dilema dos nossos dias é que qualquer solução, mesmo negociada, que não seja uma de derrota ou de vitória não é possível por muito que em abstracto seja desejável. Há uma forte razão para que haja este dilema: após a anexação pela Federação Russa de partes da Ucrânia, não há solução pactuada, ou há rendição ou derrota. Foi Putin que iniciou a guerra e foi Putin que destruiu qualquer possibilidade de qualquer negociação.


A indemnização de 500 mil euros
Na casuística que tem sido ofensiva da comunicação social, com colaboração secundária dos partidos, em particular o PSD, contra o governo misturam-se coisas sérias com irrelevâncias e má-fé. Mas o caso da indemnização dos 500 mil euros, mesmo que a história esteja mal contada como está, mesmo que seja legal como avalizou o Presidente, é inaceitável sob todos os pontos de vista. Moral, para começar, embora a moral tenha costas largas e eu não gosto de a utilizar como argumento. Mas se o que se passou não foi imoral, imoral de abusivo seja em que circunstâncias for, pode esticar-se a legalidade para maximizar as vantagens. Tal só é possível, claro, com a conivência de cima e o carneirismo dos debaixo.
Quando for grande quero ficar dois anos numa empresa paga pelos contribuintes, sair, seja porque me correram, seja porque quis, ir para outra igual na hierarquia do mando, e receber meio milhão…


A sorte para os ucranianos…
…foi ter Biden na Casa Branca. Em toda a sua carreira Biden era um dos raros políticos americanos que sabia alguma coisa sobre política externa e um “atlantista” de toda a vida. Conheci-o pessoalmente nessas andanças da OTAN e era tido como um senador que não se limitava a chegar às reuniões e a ter um estatuto de primeiro entre os pares, como acontecia por regra nas delegações americanas, mas que participava e mostrava genuíno interesse. Se há coisa que ele sabe, é o que é que Putin quer, e por que razão não se lhe deve dar o que ele quer. De forma aliás bastante intransigente, porque nestas matérias as hesitações pagam-se caro.


Não sei se o diabo ainda faz tratos como fez com Fausto…
…mas presumo que no caso vertente, como não é pela Gretchen, fique mais barato do que uma alma inteira. Eu explico-me esperando que a mensagem chegue a Mefistófeles. Do meu lado direito está uma pilha de livros que não foram para as estantes porque estão na categoria dos livros “que eu queria ler”. Do meu lado esquerdo, idem. Ambas estão no limite do equilíbrio, uma tem 200 livros mais ou menos, a outra cerca de 150. Acumularam-se nos últimos dois anos. Incluem uma antologia de Joan Didion, vários volumes da tradução da Bíblia de Frederico Lourenço, o último volume publicado da biografia de Staline de Stephen Kotkin, cerca de 1000 páginas, e a grande edição Landmark da História da Guerra do Peloponeso de Tucídides. Isto só para nomear alguns dos livros que mesmo antes de irem para esta pilha já foram folheados e lidos, um ensaio, um capítulo, as primeiras páginas (de Tucidides, para responder à minha curiosidade sobre como é que começa um grande livro clássico…).
Se há sítio que tenho a certeza Mefistófeles, o diabo que apareceu a Fausto, frequenta são as redes sociais, onde eu não estou porque para aprendizes menores de diabo, esgotam-me a paciência. Por isso se alguém lhe chamar a atenção de que preciso de tempo para ler isto tudo e mais alguma coisa, podemos fazer um tracto. Razoável, claro.

José Pacheco Pereira

Sábado

A indemnização milionária

Este não é um “casinho”. É um episódio grave que subverte a imagem do governo perante a opinião pública e que lhe coloca a obrigação democrática de esclarecer tudo, sem subterfúgios e sem o recurso ao rolo compressor da maioria absoluta.

O episódio da indemnização milionária dada pela TAP à secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis, é um exemplo acabado do estado a que isto chegou, como diria Salgueiro Maia.

Do que conhecemos ao momento que escrevo, terça-feira, dia 27, restam poucas dúvidas sobre o que representa este episódio em matéria de percepção pública do estado desta democracia, tão maltratada pelas redes de nepotismo, amiguismo e clientelismo que dominam os partidos de poder em Portugal, melhor dizendo, PS e PSD.
Em primeiro lugar, foi encapotada uma renúncia de Alexandra Martins ao lugar, portanto, sem direito a indemnização, num acordo de conveniências – que urge conhecer - entre as partes.
Por outro lado, a lei que a gestora da TAP Alexandra Martins andou a aplicar, enquanto responsável pelos recursos humanos da empresa, a centenas ou milhares de trabalhadores, foi a chamada lei laboral “da troika”. Traduzindo: uma lei que alterou radicalmente, em desfavor do trabalhador, as regras de indemnização por cessação de contracto de trabalho. Miraculosamente, pelo que se sabe, a senhora secretária de Estado escapou à severidade da dita lei.
As actuações da secretária de Estado, da TAP e do próprio Governo tresandam a duplicidade moral. Também a duplicidade política, traduzida na falência absoluta de todos os critérios de decência e, eventualmente, da lei, por parte de dois ministros do Governo.
Pedro Nuno Santos deve explicar se conhecia ou não os termos do acordo entre a então gestora da TAP e esta empresa, no momento em que a convidou para presidente da NAV.
Se conhecia é muito grave. Significa que pactuou com a mentira de mascarar uma renúncia contratual num acordo de partes. Significa, também, que pactuou com uma lógica de administração danosa, um crime previsto e punido pela lei penal, ao aceitar que o mesmo patrão, o Estado, pague uma indemnização milionária e depois contrate, para outra empresa, em termos não menos milionários. Sabendo, é claro, que isso não seria neutro numa empresa em que os contribuintes já meteram para cima de 3,2 mil milhões de euros, que despediu a torto-e-a-direito, que se rege por regras de direito público, onde deve ser exemplar. Espera-se o douto entendimento do Ministério Público.
Se não sabia da indemnização é igualmente grave. Coloca-se, obviamente, a questão de saber o que anda o ministro a fazer no cargo. É um problema político para o Governo, mais um, e um espinho brutal cravado no futuro de um ministro e de um político que aspira a ser líder do PS e primeiro-ministro.
Já o ministro das Finanças, Fernando Medina, tem de explicar o que é que conhecia, afinal, de toda esta história mal contada. Tem de dissipar o ruído de algo que não o compromete, ainda, mas que lhe coloca, para já, um problema político muito complicado. Deve clarificar, desde logo, se conta ou não com Alexandra Reis para dirigir a reprivatização da TAP. Mas deve também clarificar o que sabia da trajectória da gestora. Se conhecia a indemnização, se o incomoda um potencial conflito de interesses pelo facto de a sua mulher, alto quadro da TAP até Fernando Medina ser ministro das Finanças, ter trabalhado em contacto estreito com Alexandra Martins.
Este não é um “casinho”. É um episódio grave que subverte a imagem do governo perante a opinião pública, o eleitorado, e que lhe coloca a obrigação democrática de esclarecer tudo, sem subterfúgios e, sobretudo, sem o recurso ao rolo compressor da maioria absoluta. É um episódio grave que traduz um dos problemas da democracia portuguesa. A mensagem é simples e letal, em matéria de confiança nas instituições e no regime. Se estás longe ou mesmo na periferia das esferas de influência do poder e do dinheiro, estás dependente da vontade do imperador. Recebes umas esmolas e umas graças imperiais de vez em quando. Se estás perto da centralidade do poder, estás perto de Deus e do Imperador, das suas graças, da simpatia, da cumplicidade, do favor, da cunha, do jeitinho, da atenção, da informação privilegiada, da assinatura decisiva, da “construção” da vontade que molda a lei aos acordos de conveniência. E isso, num espírito republicano e laico, socialista, social-democrata, de esquerda ou de direita, é inaceitável. Espera-se do Governo e de todos os socialistas o mesmo músculo que têm evidenciado no combate a ameaças da democracia, como o Chega e outras…

Eduardo Dâmaso

Sábado

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

De Belém a Bruxelas

O escândalo de corrupção no Parlamento Europeu é gravíssimo. Com uma grande diferença em relação ao que temos por cá: em Bruxelas não se varre a sujeira para debaixo do tapete.

Dificilmente podia ser mais grave o caso de corrupção que abalou o Parlamento Europeu. Estamos a falar de uma deputada – a vice-presidente do Parlamento Eva Kaili –acusada de vender o cargo, colocando o seu poder de influência, as suas posições políticas e a sua capacidade de determinar a agenda em Bruxelas ao serviço de quem lhe pagava, em malas de dinheiro vivo. Tudo embrulhado com ONG de fachada que serviam para mascarar a agenda corrupta e criar relações de simpatia com gente influente nos círculos europeus.

Mais grave ainda é a identidade do alegado corruptor: um Estado estrangeiro, o Qatar, que não se terá inibido de infiltrar uma das principais instituições da União Europeia, num ataque frontal à soberania dos Estados-membros. Isto depois do escândalo de corrupção na FIFA para ganharem a organização do Mundial de 2022. A ofensiva de charme com que o emirado quis comprar uma posição respeitável no mundo saiu-lhe definitivamente mal. Antes de tudo isto, ninguém sabia o que era o Qatar; agora todos sabem; e sabem que não é flor que se cheire. Tanto dinheiro gasto para descobrirem que não se compra a respeitabilidade.
À escala portuguesa, onde não nos faltam casos sob investigação, a única coisa que me ocorre de dimensão comparável é a Operação Marquês, em que o Ex-primeiro-ministro José Sócrates é acusado de ter posto o cargo à venda, conduzindo as políticas públicas do país em favor de quem lhe assegurava o enriquecimento pessoal. Escusamos de comparar a eficiência com que as autoridades portuguesas e belgas investigaram cada um dos casos, ou a celeridade com que os tribunais agora farão o julgamento – seria demasiado deprimente para o nosso lado.
O que interessa comparar, no entanto, é a resposta das instituições envolvidas nos casos de corrupção, cá e lá. No Parlamento Europeu, o grupo parlamentar socialista, de que fazia parte Eva Kaili, expulsou-a imediatamente da bancada (o PASOK grego também a destituiu do partido) e anunciou até que se constituirá como "parte lesada" no processo judicial, para que possa pedir reparação do mal que a deputada causou à sua família política. Por cá, no caso Sócrates e em tantos outros, moita-carrasco. Os partidos agarram-se ao chavão "à Justiça o que é da Justiça", cruzam os dedos e não fazem nada.
Foi aliás essa a reacção do ministro dos Negócios Estrangeiros: confrontado com o caso, à entrada de um Conselho de Ministros da UE em Bruxelas, João Gomes Cravinho mostrou-se preocupado, mas não foi além de apelar a que tudo se investigue. Questionado sobre a reforma dos mecanismos de integridade nas instituições europeias – nomeadamente, a criação de um organismo independente de ética há muito exigido por organizações não-governamentais e finalmente prometido pela Comissão Europeia, em resposta ao escândalo – o ministro não se mostrou muito para aí virado. Os tribunais que resolvam.
Não admira: na mesma ocasião, Gomes Cravinho foi questionado sobre a bizarra decisão de, em 2021, quando era ministro da Defesa, ter nomeado para a presidência da empresa ETI - Empordef Tecnologias de Informação o Ex-director-geral de Recursos da Defesa Alberto Coelho, já então sob suspeita de corrupção e agora apanhado na Operação Tempestade Perfeita, sobre o negócio pornográfico das obras no Hospital Militar de Belém, que derraparam dos 750 mil para os 3,2 milhões de euros. Sobre a sua responsabilidade política directa e objectiva na promoção de um homem que já estava sob suspeita, desviou para canto com a sonsice habitual nestes casos, despachando que "este é o momento da justiça e acho que não nos devemos envolver com comentário político sobre um procedimento judicial".
É essa a grande diferença entre Belém e Bruxelas. Em Belém, quando alguém rouba nas obras de um hospital especial para a Covid, cai um silêncio sepulcral, quase religioso, sobre as responsabilidades políticas: os portugueses têm de engolir a ladainha "à Justiça o que é da Justiça" e assistir à inércia institucionalizada de quem tinha a obrigação de pôr ordem na casa. Em Bruxelas, apesar de tudo, as instituições reagem: "o Parlamento Europeu está sob ataque, a democracia europeia está sob ataque", disse a presidente do Parlamento, Roberta Metsola, no plenário da instituição em Estrasburgo. "Este é um teste aos nossos valores e aos nossos sistemas. Não haverá impunidade, não varreremos nada para debaixo do tapete", acrescentou, ao anunciar uma reforma das normas e controlos internos sobre a actividade dos deputados e os riscos de corrupção na instituição.
Em contraste, o que vimos do presidente do Parlamento português, Augusto Santos Silva, foi o elogio ao Qatar pelo apoio que deram à retirada de afegãos na fuga aos talibãs – precisamente um dos argumentos que Eva Kaili desfiava em defesa do emirado. A diferença é que a eurodeputada grega impingia a propaganda oficial a troco de malas de dinheiro, enquanto Augusto Santos Silva o fez apenas para ter bilhetes para a bola.
Por cá, a mesma família socialista que se constituiu assistente no processo belga contra Eva Kaili manteve-se muda e surda sobre o caso Sócrates, e tantos outros. O silêncio, o encobrimento e a fuga à responsabilidade mantêm-se a regra em resposta a casos de corrupção. O sistema judicial é o álibi atrás do qual se escondem os que têm a obrigação de prevenir a corrupção e fortalecer as instituições democráticas e quem quiser reformas internas, responsabilização política e mecanismos de integridade é populista. Quando a democracia soçobrar sob o peso desta brutal inércia, os que a fizeram cair dirão que a culpa é de quem não alinhou na lei do silêncio e violou o código de omertà da República.

João Paulo Batalha

Sábado