quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Museológica da batata

Tiago Dores

Somos um povo com inclinação para a filosofia, com dotes de abstracção tão bons, tão bons, que acabamos por ser mais fortes a discorrer sobre museus imaginários do que a visitar museus reais.

É verdade que desde 2015 Portugal já foi ultrapassado em termos de PIB per capita pela Estónia, Lituânia e Eslováquia. Mas que diabo, o dinheiro não é tudo. O progresso de um país vê-se em inúmeros outros aspectos. Por exemplo no nível de desenvolvimento cultural. E aí Portugal pede meças aos melhores. Basta ver os casos recentes com os hipotéticos Museu Salazar e Museu dos Descobrimentos: ainda nem se sabe se vão existir e já incendeiam paixões mais fortes nos portugueses que um Museu do Louvre. O que faz particular sentido no caso do eventual museu sobre o Estado Novo porque, digam o que disserem, ao nível de olhares de carneiro mal morto o do Salazar é ainda superior ao da Mona Lisa. E não deixemos passar em claro que estas polémicas também comprovam que somos um povo com inclinação para a filosofia. Temos uma capacidade de abstracção tão boa, tão boa, que acabamos por ser mais fortes a discorrer sobre museus imaginários do que a visitar museus reais.

Um dos museus que estava na calha era o tal Museu dos Descobrimentos. Foi aliás uma promessa de campanha do presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina. Mas houve um grupo que se identificou como sendo de “cem pessoas negras” que assinaram uma carta aberta intitulada “Não a um museu contra nós!” e Medina acagaçou-se. O que me leva a crer que se calha ter sido Fernando Medina e não Vasco da Gama a comandar a frota que se propôs descobrir o caminho marítimo para a Índia não tinha sido necessário chegar ao Cabo da Boa Esperança e enfrentar o Adamastor para ponderar voltar para trás. À primeira tainha mais robusta que Medina avistasse à saída do Tejo ali para os lados do Bugio – ala! – era meia volta e casa. A chorar. E com um pinguinho nas ceroulas. Apostrofaria o Velho do Restelo:

Ó glória de mandar! Ó vã cobiça Espera, paremos a ladainha

Afinal já estão a regressar, chiça Retiro o que disse, estupidez minha

O que mais impressiona na tal carta “Não a um museu contra nós!” do grupo de “cem pessoas negras” — para quem “descobrimentos” e “escravatura” são uma e a mesma palavra –, é o facto dessas exactas pessoas serem a prova viva que afinal, ao contrário de tudo o que aprendemos na escola, os escravos eram tratados principescamente. Só assim se explica que este grupo de indivíduos, claramente eles próprios (o “nós” na carta não deixa dúvidas) vítimas do tráfico de escravos, tenham chegado a provectas idades de mais de 500 anos. Ou isso, ou, para além de Vasco da Gama ter descoberto o caminho marítimo para a Índia e Pedro Álvares Cabral ter descoberto o Brasil, houve algum outro explorador português que descobriu a criopreservação.

Agora que penso nisso, também vou enviar uma carta ao presidente da câmara de Lisboa a exigir o encerramento de um espaço museológico. O documento chamar-se-á “Não a um museu contra mim!” e nele argumentarei que o meu trisavô, funcionário da Companhias Reunidas Gás e Electricidade, faleceu depois de levar um valente esticão ao desatarraxar uma lâmpada em 1878. Portanto, o Museu da Electricidade tem de fechar as portas e é com carácter de extrema urgência.

O caso do Museu Salazar é ainda mais complicado. Desde logo porque parece nunca ter havido a ideia de criar um museu chamado Museu Salazar. Esse nome terá sido invenção do PCP, que ganhou tanta experiência a reescrever a historia que já o consegue fazer ainda antes dos acontecimentos terem sequer ocorrido. E na Assembleia da República os comunistas viram aprovado o seu voto de condenação do museu sobre o Estado Novo sem que nenhum partido se opusesse. O que mostra que o museu talvez seja de facto desnecessário. Quando um petiz perguntar “Ó pai, qual é a diferença entre o Parlamento do tempo do Salazar e o de hoje?”, a resposta é simples: “Filho, essa é fácil. No tempo do Salazar havia basicamente um partido e todos os deputados defendiam o mesmo. Hoje em dia há vários partidos.”

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