quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Os juízes inamovíveis e as inamovíveis cabeças.

O presidente do Tribunal da Relação de Lisboa respondeu às críticas acerca do regresso de Rui Rangel às secções criminais do tribunal (onde é chamado a avaliar recursos de crimes dos quais ele próprio é suspeito) com o argumento de que “uma das características do estatuto dos juízes é a sua inamovibilidade”. Ou seja, no entender de Orlando Nascimento, neste momento ninguém tem direito a tirar Rangel do seu lugar, porque ele ainda não foi acusado de nada, e muito menos condenado, e “mudar um juiz de um lado para o outro” numa situação destas seria “um caminho perigosíssimo”. A inamovibilidade é a única forma, diz o presidente da Relação de Lisboa, de ter “juízes independentes e sem medo”, que possam “decidir em consciência, sem depender de ninguém”. O que ele está a dizer está certo? Em abstracto, está certíssimo. No caso em concreto, é um absurdo — e é por isso que nunca convém transformar bons princípios em dogmas cegos. Fazê-lo é sempre um caminho para a inflexibilidade descerebrada e para a desgraça moral. A razão é simples: a realidade supera sempre a imaginação mais destemida dos legisladores, e a história da nossa vida em sociedade é a de um conflito permanente entre estimáveis princípios que subitamente se tornam incompatíveis. A inamovibilidade do juiz é um bom princípio? É, sim senhor. E a preservação da confiança dos cidadãos no exercício da Justiça? Também. O que fazer quando os dois princípios são inconciliáveis? Nesses casos, só o recurso ao bom senso e à discussão racional nos pode salvar. Ora, as personalidades dogmáticas não costumam ser boas nem numa coisa, nem na outra. Se, por um lado, há que agradecer ao presidente do Tribunal da Relação de Lisboa ter apresentado as suas justificações à comunicação social para o regresso de Rui Rangel ao local onde se suspeita que andou a cometer crimes; por outro lado, as suas justificações são extremamente problemáticas pela insensibilidade que revelam. Dir-me-ão: mas porque é que você está tão convencido da sua razão, e porque é que só Orlando Nascimento é que está a ser dogmático? Não é difícil perceber — é porque me parece bastante evidente, e do mais elementar senso comum, que o princípio do juiz inamovível está subordinado à confiança na Justiça. O juiz é inamovível por uma única razão: para que os cidadãos possam ter confiança no exercício do cargo, por saberem à partida que o juiz não precisa de recear as consequências na sua carreira de uma sentença difícil. O problema no caso de Rui Rangel é que essa confiança já não existe à partida. Não há nada para preservar. Explodiu. A confiança está destruída. Os indícios fortíssimos de um comportamento duvidoso estão espalhados por todos os jornais. Donde, Rui Rangel não só pode, como deve, ser movido para outro lado. Ao Jornal de Notícias, Orlando Nascimento chegou a declarar que tirar Rangel das secções criminais seria um “atentado à democracia”. A sério? Já o que se está a passar é bastante pacífico e deixa a democracia em excelente estado. Tivessem os jornalistas insistido, e é possível que Orlando Nascimento ainda acabasse a invocar um outro princípio, igualmente estimável: o da presunção de inocência. E, aí, o juiz Rui Rangel teria de permanecer no seu cargo, como nos bons velhos tempos, até sentença transitada em julgado. A verdade é esta: quando não se quer mexer uma palha, há sempre imensos bons princípios à mão, que justificam impecavelmente a nossa passividade.

João Miguel Tavares

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