Qualquer calamidade – inundação, tremor de terra, vulcão, avalancha e, claro, pandemia – afectará sempre os mais pobres. Neste caso também os velhos, mas entre os velhos, os velhos mais pobres. Aliás, havia uma ironia que rezava assim: “mais vale ser rico, bonito, novo e ter saúde, do que pobre, feio, velho e ser doente”.
Sou a favor de que tudo se estude e tudo o que é possível saber se saiba. Penso que é um desejo ancestral do ser humano conhecer todos os pormenores do que o rodeia. Porém, não sei se o mal está nos estudos, se na forma como são divulgados, mas alguns deles parecem exemplos de tautologias, para não lhes chamar ‘óbvios ululantes’, na expressão do grande jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues.
Li em vários locais que a pandemia não é democrática, porque os mais letrados com empregos mais estáveis conseguiram, no geral, manter os rendimentos durante o tempo em que estiveram confinados. “Trabalho e desigualdades no grande confinamento”, um estudo feito por um organismo do ISCTE, diz que apenas 14% das pessoas mais qualificadas foram abrangidas pelo lay-off, e 55% destas tiveram possibilidade de teletrabalho.
Longe de mim criticar o estudo, que não conheço, até porque pode divulgar aspetos e conclusões interessantes para a definição de políticas públicas (que, mais do que a curiosidade, deve nortear estas iniciativas). O que me interpela é a sua divulgação ser na base da incidência e resistência à pandemia consoante os rendimentos. Qualquer calamidade – inundação, tremor de terra, vulcão, avalancha e, claro, pandemia – afetará sempre os mais pobres. Neste caso também os velhos, mas entre os velhos, os velhos mais pobres. Aliás, havia uma ironia que rezava assim: “mais vale ser rico, bonito, novo e ter saúde, do que pobre, feio, velho e ser doente”. A frase sublinhava, justamente, a evidência, o completo ‘óbvio ululante’.
O que, no fundo, me preocupa é pensar que quem divulga, ou mesmo quem faz o estudo, não veja este óbvio e sinta a necessidade de o demonstrar cientificamente. Mas… e terá sempre de haver vários mas num estudo, quando não existem, quer dizer que o trabalho não foi suficientemente escrutinado pelos pares e outros especialistas. Mas porquê? Na teoria da ciência, para serem considerados credíveis, os estudos têm forçosamente de resistir ao crivo da falsificação ou da negação.
Vamos, pois, à questão da pobreza na pandemia. Ela é muito mais severa para os que pouco ou nada têm, todos o sabem. Salvo, provavelmente, quem vive do campo e tem o seu magro sustento na terra, à volta da pequena casa isolada, onde pode viver o confinamento com relativa segurança, o pobre paga a dobrar.
Os estudos, no geral, referem pobres urbanos, que vivem nas periferias, em casas sobrelotadas, tendo de trabalhar durante o confinamento para que outros ficassem em casa. E a esses é óbvio que a pandemia os afetou muito mais.
Mesmo em termos psicológicos, uma família num T2 com pai, mãe e dois filhos tem um potencial de conflito várias vezes superior do que quem vive numa casa grande com piscina e jardim, várias salas com televisão e quartos de sobra.
Posto isto, não é o vírus que não é democrático. É a sociedade que é desigual e tem elementos mais vulneráveis do que outros.
Assim sendo, os trabalhos necessários são sobre o modo como pretendemos mitigar ou terminar com tais desigualdades. O que pretendemos? A igualdade absoluta, sabendo-a utópica? Criar condições para que a desigualdade seja menor? Por que modos? Constatar um facto que já todos sabíamos é voltar ao ululante óbvio.
E o que é verdadeiramente temível nestes estudos é o facto de muitos existirem com uma única preocupação: justificarem-se a si mesmo e aos centros de que emanam.
Recentemente, e o que será mais interessante estudar, do meu modesto ponto de vista, é por que razão tantos estudos – mesmo da área da saúde pública – são colocados na esfera pública sem estarem sedimentados? Por que se oscila entre andar de máscara e andar sem ela? Descalçar os sapatos para entrar em casa e considerar-se esse gesto indiferente? Aqueles que foram pacientes de Covid-19 já não poderem infetar outros, ou continuarem a ser positivos?
Por que motivo se fazem tantos estudos com amostras pouco significativas? Que ânsia existe em dar um enfoque ao estudo que seja ‘vendável’ em jornais? Temem que não acreditemos se um centro qualquer de uma universidade ou instituto qualquer não o disser? E os líderes dessas equipas tornaram-se numa espécie de editores sensacionalistas? Os referees académicos passaram a ser os títulos de jornais?
Se assim for, a pandemia também anda a matar a ciência.
Expresso 17-06-2016
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