sexta-feira, 5 de junho de 2020

Notícia de um divórcio

Chegou ao fim o meu casamento de 17 anos com o Expresso.

Teve, como todos os casamentos, os seus momentos de glória e as suas fases mais rotineiras, aqui e ali interrompidas por pequenos conflitos domésticos, rapidamente sarados. No geral, foi bom enquanto durou.

Em 1990, quando nos casámos, eu tinha 34 anos, dois filhos, bigode, 80 quilos e onze anos de jornalismo, durante os quais vivera três relações mais ou menos estáveis (Norte Desportivo, Comércio do Porto e Semanário) e um número bastante razoável de escapadelas (Jornal do Comércio, Gazeta dos Desportos, Tripeiro, Diabo, Crime, entre outras).

Em 1990, quando nos casámos, o Expresso estava lamber as feridas da dolorosa e traumatizante separação do grupo de jornalistas liderado por Vicente Jorge Silva, que o tinha traído, primeiro às escondidas, depois à luz do dia, indo para a cama com Belmiro de Azevedo, relação de que resultaria um filho: o Público.

Tenho muito orgulho de ter integrado a legião de jornalistas (na sua maioria oriundos do Jornal e do Diário de Notícias) contratados pela dupla José António Saraiva/Joaquim Vieira para ajudar a cicatrizar as feridas abertas pela partida do grupo de Vicente.

Durante os 17 anos que durou o nosso casamento, tive o prazer, a liberdade e a oportunidade de fazer um pouco de tudo. Redigi notícias e escrevi reportagens sobre quase todas as faces da vida - economia, sociedade, desporto e política. Por três vezes fui editor - do Porto (cinco anos), da saudosa Revista (dois anos) e, finalmente, da Economia (três anos).

Tenho muito orgulho de ter dito que sim sempre que a direcção precisou de mim em Lisboa e me seduziu com desafios novos, apesar de isso me obrigar a viver emigrado.

Como me gabo de me conhecer razoavelmente bem e me esforço por compreender e antecipar o futuro, fiz sempre questão de sair pelo meu próprio pé das funções que fui chamado a desempenhar.

Sempre preferi agir a reagir, Sei que sou viciado em adrenalina, arrebatamentos e entusiasmos. Gosto de agarrar grandes empreitadas e de não descansar enquanto não atinjo os meus objectivos.

Mas também sei que deixo de ser a melhor opção para capitanear um navio assim que a rotina se apodera do meu dia-a-dia e que o projecto que comando entrou em velocidade cruzeiro.

Não sou daquelas marinheiros que aprecia navegar em mar chão. Prefiro as águas revoltas. Nunca enjoei com a turbulência.

Tenho muito orgulho nos quatro pontos cardeais que foram a marca de água da minha atitude durante os 17 anos que durou o casamento com o Expresso:

1. Sempre soube o que estava a fazer Admito (um pouco de modéstia fica sempre bem…) que por vezes a minha estratégia até podia não ser a mais acertada. Mas tive sempre uma estratégia. Antes de começar a navegar tirei sempre um azimute, tracei com cuidado a rota a seguir e apetrechei-me com rotas alternativas;

2. Nunca tive medo de decidir Ser director, editor ou jornalista significa estar permanentemente a escolher, a avaliar, a decidir. Escolher os temas que tratamos e os que deixamos cair. Avaliar as matérias que merecem destaque. Decidir os assuntos em que empenhamos as nossas forças. Nunca fui contaminado pelo vírus da indecisão. Nunca tive medo de falhar.

3. Sempre gostei de arriscar Após um Porto-Sporting comparei as estatísticas de Raul Meireles e João Moutinho. O médio portista tinha falhado quase metade dos passes. O sportinguista praticamente não tinha falhado nenhum. À vista desarmada, Moutinho tinha jogado muito melhor do que Meireles. Não foi verdade. Moutinho não falhou passes porque sempre que tinha a bola repassava-a, para trás ou para o lado, para o colega que estava mais perto. Meireles falhou mais porque fez muitos passes a 30 metros de distância, de ruptura, procurando entregar a bola a um colega  desmarcado e assim criar uma situação de golo.

Num momento em que o factor escasso é a défice de atenção humana, o empate não chega. Acho criminoso passar para o lado, com medo de arriscar e de ser assobiado pelos adeptos. Para ganhar é preciso não ter medo de fazer passes de 30 metros. E não marcamos golos se não arriscarmos atirar à baliza.

4. Nunca perdi o leitor de vista Nunca na minha vida perdi de vista que neste negócio vivemos em função do nosso cliente: o leitor. E tenho muita pena alguns colegas com menos memória esqueçam por vezes esta verdade de sangue. Sempre que escolho um tema, penso no título, selecciono o ângulo de ataque, preparo a maneira como matéria vai ser apresentada em página, e, finalmente, me sento a escrever, tenho sempre presente que não estou a trabalhar para brilhar juntos dos meus colegas jornalistas ou das minhas fontes. Estou a dar o meu melhor para seduzir e satisfazer o meu cliente leitor.

Não acho que haja motivo de espanto por o nosso casamento de 17 anos ter chegado ao fim. A relação estava emocionalmente desidratada. Eu e o Expresso já estávamos um bocadinho fartos um do outro. E o Tom Jobim estava carregadinho de razão quando disse que "a única coisa que importa é ser feliz".

Neste mundo efervescente, abundante em novas novidades de vidas e de costumes, manter um casamento profissional de 17 anos é pouco comum.

Uma das grandes lições de vida, que o Expresso me proporcionou, aprendi-a com Guterres. Numa campanha para as legislativas que acompanhei como jornalista, o antigo primeiro ministro analisou com esta simplicidade a evolução das relações laborais.

No tempo dos nossos pais, era normal uma pessoa ter um único emprego durante toda a sua vida.

(O meu pai conheceu apenas um patrão: o STCP. Entrou para a empresa de transportes colectivos do Porto no final da sua adolescência, como escriturário, e por lá se demorou até ser atirado para a reforma antecipada pela revolução tecnológica da máquina de escrever que tornou dispensável e obsoleta a sua bonita caligrafia)

Na nossa geração, é normal uma pessoa trabalhar em diferentes empresas mas manter a sua profissão.

No tempo dos nossos filhos já não será possível atravessar a vida usando como ferramenta uma única profissão.

Nesta hora em que estou a concluir o divórcio, ainda não sei como vou continuar a minha carreira profissional. Para já, vou agravar a estatística dos desempregados qualificados, que é uma das maiores dores de cabeça para Sócrates.

Não sei se vou continuar a tentar manter-me no paradigma da minha geração, seguindo como jornalista. Ou se, em alternativa. Vou dar o salto para o da geração dos meus filhos e mudo de profissão.

No ocaso de 2007, nesta hora em que me estou a divorciar do Expresso, tenho 51 anos, três filhos, 94 quilos e 28 anos de jornalismo - e já não uso bigode.

Estou com um bocadinho de medo do vazio. Às vezes sinto-me como quando na recruta na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, fazia o salto para o escuro - em que saltamos sem ver se o chão está a 20 centímetros ou a dois metros de distância.

Mas a outra face deste salto do escuro é a injecção de adrenalina que ele desperta. Sinto-me excitado por estar de novo livre. Sinto-me orgulhoso por não ter deixado o meu casamento com o Expresso arrastar-se para o pântano (achei que uma imagem guterrista ficava bem, qual é a vossa opinião?).

No trabalho, como na vida, prefiro viver apaixonado - e exijo que a paixão seja correspondida.

FIM

Jorge Fiel

PS. A interrupção deste blogue é um dos efeitos secundários deste divórcio. Agradeço, curvado e emocionado, a todas as preclaras e preclaros que através da sua presença activa fizeram do Roupa para Lavar o blogue mais visitado e comentado do Expresso durante o seu curto mas trepidante ano de vida. Sinto muito, mas mesmo muito, orgulho em ter sido o vector deste espaço de contracultura, de ter sido capaz de não estar na linha e de ter tido a coragem para escrever coisas que destoam do cânone e do "mainstream".

Este filme acaba aqui, mas garanto-vos uma sequela. Como ainda anda por aí muita roupa suja a precisar de ser lavada, vou continuar a centrifugar e inauguro na véspera de Natal uma nova lavandaria, num novo endereço:  lavandaria.blogs.sapo.pt.

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