domingo, 14 de junho de 2020

O carro-vassoura

Utilidade Marginal

JOÃO SILVESTRE

Nos anos da contagem decrescente para o nascimento da moeda única, a analogia com o ciclismo era recorrente: o grande desígnio de Portugal era garantir um lugar no pelotão da frente da União Económica e Monetária. A imagem nunca mais se perdeu e tem servido, desde então, para usar em tudo o que são avanços na construção europeia e também, claro está, na convergência das economias. Só que a corrida não nos tem saído bem. O PIB per capita tem estado sucessivamente a perder lugares e está hoje, duas décadas volvidas do nascimento do euro, muito longe da cabeça do pelotão. Os dados mais recentes colocam Portugal na 19ª posição na União Europeia numa altura em que a Europa (e o mundo) enfrenta uma das mais graves recessões da sua história. E em que, também na resposta à pandemia, Portugal está na cauda do pelotão. Com tudo o que isso tem de bom e de mau.

Lembra-se como foi 2009? O Lehman Brothers tinha estourado nos EUA em setembro do ano anterior, os mercados financeiros entraram em pânico, os bancos centrais reagiram energicamente e os governos decidiram preparar uma resposta orçamental à altura. Na Europa, o ‘vírus’ da austeridade ainda não tinha infetados e a ordem era para gastar. Claro que, como em tudo, houve quem levasse a mensagem demasiado à letra. Foi o caso do Governo português e do primeiro-ministro, José Sócrates: o défice desse ano ficou perto de 10% e foi o quarto mais alto da zona euro. Era uma espécie de keynesianismo em versão tonificada, que levou a dívida pública a novos máximos. Na resposta à atual crise, pelo contrário, Portugal tem sido bastante mais contido e o défice previsto para este ano é apenas o quinto maior a contar do fim (e os 6,3% previstos incluem quase mil milhões de euros para a TAP). Curiosamente, tem novamente a seu lado a Irlanda e a Grécia. Não é coincidência. A crise das dívidas na zona euro escaldou muita gente e os países que, há dez anos, estiveram na linha da frente do embate estão agora bastante mais cautelosos. E há razões para isso. A começar na dívida pública portuguesa, que saltou de 71% do PIB em 2008 para 117% no ano passado.

A alteração do Orçamento do Estado para 2020 apresentada esta semana é, de resto, a imagem desta contenção e do legado que Mário Centeno deixa na política orçamental portuguesa e que permitiu ao PS mudar a imagem de “partido que levou Portugal à bancarrota” para “partido das contas certas”. O défice não só é dos mais baixos da zona euro como a maior parte da subida não tem a ver com medidas efetivamente adotadas para combater a crise (e os seus efeitos). São apenas os estabilizadores automáticos, ou seja, menos receita e mais despesa por causa da queda do PIB. Aliás, uma parte significativa do programa de estabilização económica e social é financiada pela União Europeia.

Toda esta contenção paga-se na generosidade dos apoios às empresas e famílias. É verdade que, perante uma recessão que no imediato resulta mais de um choque de oferta do que de um problema de procura, como bem avisava Luís Aguiar-Conraria esta semana no Expresso online, o impacto de estímulos keynesianos no relançamento da economia é limitado. Mas, no plano social, há perdas de rendimento que poderiam ser aliviadas de outra forma se a margem orçamental fosse maior.

Vale-nos o Banco Central Europeu, que já reforçou a ‘bazuca’ para €1,35 biliões (com que irá cobrir as necessidades de financiamento adicionais que o Estado português vai ter este ano por causa da covid-19) e que está, segundo a imprensa internacional, a estudar a criação de um banco ‘mau’ para retirar o crédito malparado do balanço dos bancos que inevitavelmente irá aumentar com a crise. E vale-nos também a Alemanha que, apesar dos eventuais efeitos na concorrência, lidera no estímulo orçamental este ano que ajudará a dar um importante impulso à zona euro. Porque, no pelotão do keynesianismo, desta vez Portugal é praticamente o carro-vassoura.


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