Há tantos argumentos contra como a favor…
Por Susana Valente
Uma francesa de 66 anos, condenada por “violação grave” por recusar ter relações sexuais com o marido, apresentou queixa do seu país no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. O caso divide a justiça de França.
Bárbara, assim identificada pela imprensa francesa, levou o seu caso ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, apresentando queixa contra França por ingerência na vida privada e atentado contra a integridade física.
A mulher de 66 anos está a ser ajudada no processo por duas associações feministas, o Collectif Féministe Contre Le Viole (Colectivo Feminista contra a Violação) e a Foundation dês Fembes (Fundação das Mulheres).
Actualmente, ela enfrenta “inúmeros problemas de saúde”, segundo o Le Parisien, depois de ter sido considerada culpada, num processo civil de divórcio litigioso, por “violação grave” do “dever” de fazer sexo com o marido.
O Tribunal de Versalhes sentenciou que por ter recusado manter qualquer contacto sexual com o marido, durante cerca de 8 anos, Bárbara violou o “contrato de casamento”.
A recusa constitui, segundo o acórdão de 2019, “uma violação grave e renovada dos deveres e obrigações matrimoniais, tornando intolerável a manutenção da vida em comum”.
Decisão que divide a justiça francesa
A decisão é tanto mais controversa porque divide a própria justiça francesa, pois parece haver um choque de posições entre os Códigos Civis e Criminais.
Assim, se Bárbara foi condenada numa decisão civil por recusar sexo ao marido, desde 1992, o Código Criminal francês considera que forçar relações sexuais, mesmo entre marido e mulher, é um crime de violação.
O Código Civil francês não determina, em parte nenhuma, que as relações sexuais entre cônjuges são obrigatórias, mas o artigo 212 refere que “os cônjuges devem um ao outro respeito, fidelidade, ajuda, assistência” e o artigo 215 acrescenta que “se obrigam mutuamente a uma comunidade de vida”.
Esta referência reporta para uma comunhão de vida na cama, de uma perspectiva social que ainda encara o casamento como um fim para a procriação, como destaca o Le Monde.
Portanto, o chamado dever conjugal “existe de facto porque os juízes decidiram interpretar [o Código Civil] à sua maneira”, como atesta a activista Emmanuelle Piet do Colectivo Feminista, em declarações ao Le Parisien.
“É uma justiça ainda patriarcal e arcaica que diz às mulheres: se és casada, abre as tuas pernas”, critica a mesma activista, salientando que a interpretação dada pelo Tribunal Civil “contradiz os textos sobre a violação conjugal”.
“Recusar ter relações sexuais no seio do casal é uma falha civil, mas obrigar a cônjuge é um crime de violação“, conclui.
A situação é apontada como “insuportável” pelo Colectivo Feminista que cita estatísticas francesas e refere que, em 47% das 94 mil violações e tentativas de violação registadas em França, todos os anos, o agressor é o companheiro ou ex-companheiro da vítima.
“Como é que as vítimas de violação conjugal vão fazer para registar uma queixa?”, questiona o Colectivo num comunicado conjunto com a Fundação das Mulheres.
Assim, as duas associações entendem que “França deve ser condenada de uma vez por todas para que esta noção de dever conjugal desapareça”.
Homem pagou 10 mil euros por não cumprir “dever conjugal”
A condenação de Bárbara foi possível devido à jurisprudência existente na matéria, uma vez que, nos últimos anos, houve sentenças semelhantes noutros casos.
O Le Parisien cita um acórdão de 2011 que condenou um homem a pagar 10 mil euros à esposa por “danos” causados por não ter cumprido o “dever conjugal” durante vários anos.
“As relações sexuais entre cônjuges são, em particular, a expressão do afecto que têm um pelo outro enquanto fazem parte da continuidade dos deveres decorrentes do casamento”, aponta o acórdão de 2011.
Uma sentença de outro Tribunal, datada de 2015, concluiu que a recusa de fazer sexo deve ser repetitiva e duradoura, por mais de oito anos, para ser considerada uma falha e “má conduta”.
Por outro lado, a culpa só pode ser determinada se as pessoas não tiverem qualquer incapacidade que as impeça de fazerem sexo.
“Uma condenação de outra época”
Em Setembro de 2020, Bárbara viu um recurso da sua condenação ser rejeitado e, por isso, leva agora o caso ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
“É uma condenação de uma outra época. Escandaliza-me. Vivo-a como uma negação de justiça”, lamenta a mulher citada pela imprensa francesa.
A sua advogada, Lilia Mhissen, reforça que estão em causa direitos humanos fundamentais, concluindo que o “casamento não pode ser escravidão sexual”.
“A ausência de relações íntimas, após trinta anos de casamento, não deve ser, em si, um motivo que torne a vida a dois impossível”, constata ainda a advogada.
Susana Valente, ZAP //
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