Já muita gente escreveu e falou sobre a contradição entre Costa primeiro-ministro e Costa secretário-geral do PS, no que respeita ao encerramento da refinaria da GALP em Matosinhos. Há quem, erradamente, tome isto por política. Mas não é. E o pior não foi ter dito uma coisa hoje e outra ontem. O pior é o conceito que demonstra ter dos poderes do Estado
Quase ninguém, salvo os seus apoiantes indefectíveis, gostou do que António Costa disse sobre a refinaria de Matosinhos. O que era um exemplo, há quatro meses, transformou-se num disparate, numa asneira, numa insensibilidade, numa irresponsabilidade. Tudo isto a precisar de uma ‘lição’ (seja lá o que isso for, além de parecer uma frase digna de um Perón, Salazar, Trump, Bolsonaro ou qualquer outro populista ou totalitário, ou as duas coisas).
Podemos perdoar o calor eleitoral para aceitar que possam existir excessos e frases destas. Mas a verdade é que não há qualquer calor eleitoral; mais – salvo os políticos e os politico-dependentes – quase ninguém se lembra que há eleições no domingo. No entanto, o que Costa disse – e não na parte em que se contradisse – é muito pior do que tem sido analisado; é algo de inimaginável, sobretudo quando passa quase sem reparo.
E o que fez o primeiro-ministro de grave? Apelou a que se desse uma lição à GALP, o que já de si é de bastante mau-gosto, porque nos Estados de Direito não se dá lições. E, não contente com isto, explicou como seria a lição a dar: utilizar todos os mecanismos legais que as leis do ordenamento do território colocam nas mãos do município, para garantir que naqueles terrenos só se fará o que o município de Matosinhos autorizar, e só autorizará o que for para bem do progresso desta região.
Ou seja, o primeiro-ministro colocaria a hipótese de não se aplicar a lei, ou não se fazer o que fosse melhor para o Município, se a GALP se comportasse como ele gosta?
A lei e o melhor para as comunidades só são um imperativo quando se trata de penalizar alguém, seja empresa, sociedade ou pessoa?
As empresas que se portam bem ficam isentas desses contratempos que a lei sempre exige?
As empresas amigas do Governo podem agir de forma privilegiada em relação àquelas que não são tão amigas?
Enfim, há um sem-número de questões que Costa seria obrigado a responder, acaso alguém lhe perguntasse.
Por cima de tudo isto, há ainda, as meias-verdades, que são, obrigatoriamente, meias-mentiras: a GALP não abandonou os terrenos contaminados pela refinaria, e vem tendo reuniões com o Governo e seus representantes bem como com a autarquia, para encontrar uma solução.
Existe, ainda, a meia-mentira de dar a entender que a GALP despediu toda a gente da refinaria, 1500 trabalhadores, quando se sabe que há negociações em curso com parte deles.
Há, também, o cinismo de nada ter dito, nada ter respondido, nada ter ouvido dos representantes dos trabalhadores (que sempre foram contra o fecho da refinaria) para, agora, numa caça ao voto despudorada, vir falar do assunto. Não espanta que todas as organizações de trabalhadores e sindicatos acusassem o secretário-geral do PS e primeiro-ministro de cinismo.
Por último, nesta história, há um problema estrutural enorme que ainda ninguém – nem cá, nem na Europa, nem no mundo – sabe prever e menos resolver: qual o custo económico, mas sobretudo social, da descarbonização? É que a necessidade de o fazer, aliada à progressão da Inteligência Artificial e da robotização, está a criar um mundo diferente. Ter a consciência de que a estes problemas não se responde com fórmulas antiquadas, é absolutamente necessário. Também não foi disso que António Costa falou. Apenas quis mostrar que é uma espécie de dono ou reizinho do país, que põe e dispõe, com o seu famoso PRR, como antes os monarcas distribuíam dinheiro pelos súbditos.
Quem viu o programa de Ricardo Araújo Pereira no domingo passado, além do enorme humor e gozo que disfrutou, sentiu inevitavelmente uma certa vergonha pelo que acontece neste país.
PS - Depois de ter escrito este artigo li, no 'Público' uma explicação de António Costa acerca das suas palavras em Matosinhos. Além de me parecer, um pouco, desculpa de mau pagador, há, pelo menos, uma conclusão: ou o primeiro-ministro caiu em si; ou alguém lhe disse que não podia falar daquele modo. Seja como for, é uma boa notícia.
Ex-Director; Colaborador Expresso.
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