sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Praça Greta Thunberg

Depois de nos despedirmos com um convencional Dia climático justo! chamo um Veículo Ambiental Resiliente de Transporte e sigo em direcção à Unidade de Erradicação da Memória dos Homens Brancos Mortos.


04 nov 2021, 00:19

Iniciou-se no domingo passado, em Glasgow, a Conferência da ONU sobre as Alterações Climáticas. Aí se reúnem os poderosos deste mundo para debaterem as estratégias a seguir com vista a contrariar o chamado “aquecimento global”. As discussões são acompanhadas, como é costume, por protestos, entre o puro e duro e o horrendo estilo “engraçado”, de vários grupos radicais que denunciam a retórica vazia dos líderes mundiais e a sua manifesta falta de vontade de encarar o problema na sua real dimensão apocalíptica. O que se seguirá às palavras dos líderes, afirmam, será nada, perfeitamente nada, pela milésima vez nada. Blá-blá-blá, só blá-blá-blá. “Estão-nos a roubar a nossa infância” dizem, inspirados por Greta Thunberg, alguns barbudos e outros adolescentes dos 7 aos 77 anos. “Podem enfiar a vossa crise climática pelo rabo acima”, disse a maluquinha em pessoa. Eis um espírito livre.

O problema não está, obviamente, na questão ecológica em si. O problema não está sequer na intrínseca falibilidade dos modelos utilizados para prever o futuro em matérias climáticas, assunto sobre o qual dispomos hoje em dia de uma vasta literatura razoavelmente esclarecedora. Tal falibilidade não deve justificar de forma alguma a indiferença perante os problemas ecológicos e funcionar como obstáculo a uma acção decidida, que tenha em conta os outros aspectos do bem-viver dos humanos e que contribua, na medida do possível, para a melhoria da saúde do planeta. O problema começa com a paixão pelos chamados worst-case scenarios, aquilo que um filósofo no seu tempo denominou “princípio do pior”, supostamente legitimados pelo princípio da precaução (se há a mais ínfima possibilidade de risco, devemos concentrar todas as nossas energias em evitá-lo). Tal paixão deu lugar, desde há várias décadas, às mais absurdas previsões, que tudo fizeram para ridicularizar legítimas preocupações. E o problema avoluma-se extraordinariamente com o fanatismo que essa paixão suscita e que o natural conformismo dos media amplifica com a sua consabida ligeireza. A retórica da “salvação” não engana. Se juntarmos esse particular fanatismo (e a sua ignorante amplificação mediática) a todos os outros fanatismos que por aí pululam, o panorama é deprimente para lá do dizível. E infiltra os espíritos, quer o queiram ou não. Não convém nunca subvalorizar a influência das ideias apaixonadas sobre a vida mental dos humanos, sobretudo quando estes gozam de um bem-estar que lhes permite não se concentrarem nos seus problemas mais imediatos e viverem, por antecipação, instalados no futuro. É uma velha e triste história, quase sempre com consequências danadas.

Talvez por causa de tudo isto, acordei ontem para um sonho. Não acordei, notem, de um sonho: acordei para um sonho. Acontece-me mais ou menos uma vez por ano, por razões que ainda estou para saber. Particular conjunção astral? Luminosos raios de inspiração divina? Algum queijo estragado? Um copo a mais? Não sei. Mas também não importa. O que é bom, o que é óptimo, o que é maravilhoso, deve ser aceite sem interrogação ou cepticismo. Apenas com agradecimento.

Acordei, portanto. Portugal era governado por uma coligação vasta e ecuménica e no Governo brilhava com inusitado fulgor o Ministério da Libertação Obrigatória (MLO), que promovia e implantava a ENINDU (Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não-Discriminação Universais). Os efeitos da aplicação da ENINDU sentiram-se imediatamente e sob todas as formas em todo o lado. Os costumes, sob uma aturada vigilância das autoridades – o MLO era todo-poderoso –, mudaram, e mudou igualmente a linguagem, que se passou a subordinar integralmente aos princípios da ENINDU. Quase da noite para o dia, o mundo tornou-se uma coisa completamente diferente.

Eu tinha acabado de sair do meu espaço habitacional inclusivo. Dirigi-me, subindo a rua Audériu (antiga rua Nossa Senhora de Fátima) a um templo cívico de abastecimento alimentar. Ao entrar, reparei mais uma vez no letreiro fixado à porta: “Atenção! Este estabelecimento contém ainda embalagens de plástico. Recomenda-se às pessoas sensíveis que não frequentem os corredores indicados com a tabuleta «Crime»”. Comprei o que precisava (por estes dias, precisa-se de pouco – até porque há pouco) e saí de novo para a rua, tendo o cuidado de não me afastar do passeio e de não pisar a zoovia. As zoovias foram uma grande invenção do MLO, fundadas no princípio de um são convívio entre humanos e animais. “As cidades são tanto deles como nossas”, lê-se em grandes cartazes colocados um pouco por todo lado, com a fotografia de uma jovem apresentadora de televisão a lamber o focinho de um leão. Descendo a rua cruzei-me com um crocodilo que, com o seu sorriso franco, me abanou a cauda, e continuei até à Praça Greta Thunberg (antiga Praça Mouzinho de Albuquerque, vulgo Rotunda da Boavista). Maravilhou-me (maravilha-me sempre) a gigantesca turbina eólica que substituiu no seu centro o Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular. Tapa um bocadinho a visão do edifício de Rem Koolhaas, rebaptizado Complexo dos Sons Outros/Casa da Alteridade, e do sempre imaculado imóvel do antigo Tabernáculo Baptista, hoje Habitação da Fé dos Seres Sencientes, mas é sem dúvida imponente e não contém qualquer referência ao passado, o que é obviamente fundamental.

Depois deste momento de contemplação e de uma breve incursão à Papelaria Lu (está tudo na mesma, como desde pelo menos 1970, até o nome, excepto que, na montra, Robin DiAngelo ombreia com Allan Kardec) e à antiga Casa S. Miguel (agora Casa ONU-Santo António) – o Talho da Boavista, ao lado, já não existe: transformou-se num Museu do Ódio Biológico –, atravessei a rua Audériu, em direcção à rua Blá-blá-blá. Parei num Espaço de Saúde, onde comprei uns medicamentos de que preciso para contrariar uma excepcionalidade negativa de vitalidade de que padeço e continuei em direcção ao grande edifício dos Roteiros do Empoderamento, outrora o primeiro centro comercial do Porto. O MLO organiza aí visitas guiadas pelos corredores vazios de lojas fechadas. Uma vez fui a uma. A guia, apontando as vitrinas desfeitas, explicava que a salvação do planeta exigia a morte do passado e que o efeito disso na alma humana era perfeito: ela própria não se lembrava de nada. “Foi assim, pelo esquecimento, que eu me empoderei”, concluiu, feliz. A ideia, de resto, encontra-se muito mais desenvolvida nos panfletos, de leitura obrigatória, do MLO sobre a ENINDU.

Mas, desta vez, não entrei. Limitei-me a apanhar um VART (Veículo Ambiental Resiliente de Transporte) em direcção à Unidade de Erradicação da Memória dos Homens Brancos Mortos, onde forneço o que agora se chama Episódios de Não-Transmissão Cognitiva. O livro de base dos meus Episódios é, como o de todos os outros colegas, a “Fragilidade Branca” de Robin DiAngelo, onde se expõe, com toda a clareza desejável, a tese do “racismo sistémico”. Depois, saí para o Momento Teatral. Qualquer que seja o curso, é, por decisão do MLO, imperativa a frequência dos Momentos Teatrais, num recinto próximo à Unidade. Os Momentos Teatrais constam de um diálogo entre dois actores. O diálogo é breve: “- És racista! – Não sou racista! – Dizeres que não és racista é a prova de que és racista! – Mas não sou! – És, mas não sabes! É o segredo do racismo sistémico!”. O diálogo – é só isto, mas repetido vezes sem conta – dura sempre uma hora, mas a saída dos Momentos Teatrais às vezes demora muito mais, porque só se pode sair depois de se admitir junto de um funcionário do MLO, estacionado à porta, que se é racista, e há sempre jovens que continuam a dizer que não são. Eu já sou velho e sou sempre o primeiro a dizer que sim.

E digo-o ainda mais depressa quando tenho medo de chegar atrasado a um jantar combinado com um ente comunicativo positivo, como agora se diz. A dona do espaço de alimentação sustentável anda macambúzia e quase chora quando nos traz a comida. Proibiram-na de cozinhar todos os pratos que dantes fazia e está inconsolável. Os pratos agora não têm nome e são todos iguais. As conversas com o ente comunicativo positivo também se tornaram quase todas iguais. Falamos das grandes vantagens das zoovias, cada vez mais largas. “Dantes eram feitas para esquilos!”, diz ele. “Precisamos de zoovias para elefantes!”, respondo eu.

Depois de nos despedirmos, com um convencional “Dia climático justo!”, chamei um VART para voltar à rua Audériu. Na Avenida Roubaram-me a Infância, não longe da Praça Greta Thunberg, no cruzamento com a rua Roubaram-me o Futuro, aconteceu, no entanto, algo que se tem tornado vulgar, embora a comunicação social (excepção feita à CMTV, verdade seja dita) tenda a ocultá-lo. Saído da zoovia, um tigre siberiano atravessou-se em frente ao carro, provocando uma travagem brusca. O condutor, lívido, seguiu as instruções do MLO, minuciosamente detalhadas nos documentos da ENINDU. Saiu do carro e dirigiu-se ao tigre. Eu fugi a correr para o passeio e consegui escapar, no meio de rugidos e gritos, só com uns pingos de sangue do motorista na roupa. Continuei a correr pela Avenida Roubaram-me a Infância, atravessei a Praça Greta Thunberg o mais depressa que pude e consegui chegar são e salvo ao meu espaço habitacional inclusivo.

Os animais têm dias, pensei – é como nós, não é? Reli, na cama, mais umas páginas de Robin DiAngelo, a reflectir: o que é que se pode acrescentar a isto? Já a tresler, com o sono, as verdades da “Fragilidade Branca”, ainda arranjei espaço para um “momento de esperança”, como manda o MLO: “Isto está melhor, muito melhor, e amanhã melhor estará. As zoovias serão mais largas, os Roteiros do Empoderamento mais vistos, o esquecimento mais perfeito…”.

Foi um sonho? Foi uma premonição? Hoje de manhã, embora ainda estivesse escuro, lá consegui ver, na Rotunda da Boavista, o Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular. Nunca gostei tanto de o ter ali. Bebi dois cafés e voltei a espreitar: confirmado! O universo, subitamente, desbravou-se. Ainda posso ir ao Pingo Doce e comprar fruta à Dona Rosália, imprimir e fotocopiar papéis na loja do Sr. Mário no Brasília, almoçar ou jantar com amigos na Cozinha da Amélia e só falar de Robin DiAngelo se me apetecer. Uf! O mundo não é tão mau assim.

Mas o que me alegrou mais foi saber que, mesmo que o sonho fosse verdadeiro, tenho a certeza que, aqui na minha aldeia, a Dona Rosália, da Casa S. Miguel, continuaria a fazer tudo como fez até agora; que o Sr. Mário, idem aspas, limitando-se a mudar o nome da loja para “Copy & Company – Roteiros do Empoderamento”; e que a Amélia continuaria a servir o óptimo rabo de boi – às claras. A coragem do bom-senso é cada vez mais necessária contra as paixões apocalípticas. O meu único problema é comigo e com os meus colegas por esse país (e por esse mundo) fora: francamente, não sei. É que os livros, às vezes, como alguém há muito lembrou, dão fortes pancadas na cabeça. E é fácil, se a pancada for mesmo forte, encontrar nas mais inverosímeis doutrinas todos os sinais de uma verdade absoluta e inquestionável. Duvidam? Olhem para o passado. Ou, até é mais simples – olhem à vossa volta.


PS. Espero que a Greta em Glasgow, ou o Paddy da Web Summit em Lisboa, não anunciem a sua desfiliação do CDS. Isso sim, isso é que seria grave, excessivamente grave, como dizia o outro. E aí é que eu deixava definitivamente de ver televisão.


Paulo Tunhas.

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