sábado, 6 de novembro de 2021

“Você é médica? Eu é que sei!”: violência obstétrica em Portugal origina movimento.

Manifestação marcada para este sábado, em várias cidades portuguesas. Ordem dos Médicos assegurou que não há violência obstétrica em Portugal. ZAP falou com uma das participantes neste movimento.

Violência obstétrica: todo e qualquer acto que é executado na mulher sem a sua permissão, sem o seu conhecimento e/ou sem o seu consentimento; toda a violência física ou verbal que pode acontecer durante a gravidez, o parto ou no pós-parto.

Esta é a definição trazida ao ZAP por Carla Santos, uma das mulheres envolvidas no recente movimento que tenta alertar para as más práticas em partos realizados em Portugal.

Este movimento, sem hierarquias, começou no Instagram e tem quase 4 mil seguidores; recebeu perto de 200 relatos de violência obstétrica em menos de duas semanas.

“E algumas mulheres não conseguiram escrever porque não conseguem reviver o trauma. A violência obstétrica é algo sistémico, já é ensinado desta forma, é normalizada uma certa violência, é transversal. E acontece há muito tempo”, avisou Carla, que recordou o testemunho de uma mulher que passou por momentos dolorosos há 39 anos – e entretanto “era suposto ter havido uma melhoria, mas não houve”.

Práticas e justificações

Métodos não aconselháveis, práticas dolorosas para a mulher e perigosas para mãe e bébé, forçar a saída do pai da sala de parto, episiotomias (corte no períneo) desnecessárias, apertar a barriga da mulher durante 20 minutos seguidos para a placenta sair, comprimidos que a mulher não conhece, injecções que não são explicadas… Os relatos trazem estes e muitos outros casos, em Portugal.

Questionada sobre os motivos que poderão originar estes métodos, do lado dos profissionais da saúde, Carla disse que acha que isso “é tão normalizado que nem se pensa”.

E deixou uma frase que o movimento recebeu, proveniente de um homem: “Ele escreveu que «As mulheres têm de assumir que parir é traumático!». E só essa frase demonstra a falta de empatia que existe com o nascimento”.

“Claro que todas sabemos que parir é realmente um desafio, mas isso não significa que as pessoas tenham de ser mal-educadas e não significa que as pessoas tenham de ser tratadas com indiferença ou que tenham de ser manejadas – ou porque é preciso acelerar o processo da equipa, ou porque há falta de profissionais de saúde, ou porque há falta de condições… A mulher, que está no centro dos cuidados, não deveria sofrer o impacto da falta de formação, ou da falta de actualização“, lamentou.

Relacionada com a actualização de processos, Carla Santos deixou um exemplo: a episiotomia, que deixou de ser ensinada no Brasil e que tem sido abandonada em vários países, “porque não traz qualquer benefício comprovado, mas pode trazer vários malefícios”. No entanto, em Portugal a percentagem de episiotomias ronda os 73%: “É algo que está protocolado, é feito porque sim”.

Na preparação para o parto, as consultas de 20 minutos no Serviço Nacional de Saúde são “muito curtas” e, no geral, os cursos de preparação para o parto “preparam as mulheres para os protocolos do hospital em causa, para não haver contestação“.

Muitas mulheres chegam ao momento do parto com pouca ou nenhuma informação. E, por isso, aceitam qualquer indicação dos médicos. Quando fazem perguntas, podem ouvir outra pergunta na resposta: “Há mães que sentem que não percebem nada do que está a acontecer e, quando perguntam, ouvem a resposta «Você é médica? Eu é que sei como isto é que vai ser feito, por isso não faça perguntas». É um exercício de poder”.

Ordem dos Médicos nega esta ideia

O movimento surgiu há cerca de duas semanas, como reacção a um comunicado da Ordem dos Médicos, mais concretamente do colégio da especialidade de ginecologia/obstetrícia, no qual se lê que “não se deu como provada nenhuma situação de violência obstétrica praticada por médicos em Portugal” e que não há “práticas de intervenções sem indicação médica ou sem consentimento informado”.

Carla lembra que a Ordem dos Médicos deveria “seguir o juramento e defender a mulher” e confessa que tem dificuldades em encontrar justificação para este parecer: “Ninguém consegue perceber. Talvez por causa daquela ideia de que «eles defendem-se uns aos outros», deve ser isso que está a acontecer”.

Assim, este movimento organizou uma manifestação para este sábado, 6 de Novembro, em frente às sedes da Ordem dos Médicos em Lisboa, Porto e Coimbra, sendo que também haverá manifestações no Funchal e nas Caldas da Rainha: “É muito natural que mulheres não estejam presentes porque não querem recordar o trauma. Mas já temos os testemunhos por escrito”.

“O que queremos é visibilidade para um problema que tem de ser combatido, independentemente do número de pessoas que estejam presentes. O nosso objectivo principal é reunir testemunhos, que serão entregues pessoalmente à Ordem dos Médicos. Nunca houve diálogo directo com a Ordem. Houve tentativas de mulheres, que enviaram reclamações, mas nenhuma teve resposta”.

Em relação à postura oficial da Ordem dos Enfermeiros: só silêncio, até agora.

Mudança de paradigma?

Apesar de o cenário geral ser preocupante, a consciencialização tem vindo a aumentar e, acredita Carla, há cada vez mais mulheres mais bem preparadas para o parto. Procuram informação por iniciativa própria e procuram informação por causa dos relatos que já ouviram.

Mas ainda há poucos locais em Portugal que se tenham virado para um parto mais cuidado, mais humanizado: um hospital privado “que abandonou” as boas práticas, o hospital da Póvoa de Varzim “que também está ligeiramente a abandonar, talvez por indicação da Ordem dos Médicos” e sobra o hospital Garcia da Orta, que tem sido o “mais consistente” e o melhor exemplo neste assunto.

ZAP

NUNO TEIXEIRA

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