O mais interessante na polémica entre os dois Costas é aquilo que esse episódio revela da forma como o primeiro-ministro exerce o poder.
Esqueçam a árvore e olhem para a floresta. O mais interessante na polémica entre os dois Costas, a propósito do caso Isabel dos Santos, não está em saber quais as exactas palavras que saíram da boca de um ou de outro, mas aquilo que esse episódio revela da forma como o primeiro-ministro exerce o poder. Era a tese do meu último artigo: a devoção de António Costa às portas fechadas — a que ele chama “sentido de Estado” — deriva de uma opção fundamental pelo exercício informal do poder em detrimento do exercício institucional, uma prática que tem longa — e péssima — tradição na democracia portuguesa.
Foi sobre isso que prometi falar hoje, e começo por uma passagem significativa do livro de Luís Rosa, que José Manuel Fernandes lembrou na sua última newsletter. Após os primeiros contactos com o actual primeiro-ministro, o então governador do Banco de Portugal ficou convencido, segundo escreve Luís Rosa, de que tinha diante de si “uma personalidade política muito mais interventiva” do que Passos Coelho, “com um certo perfil autoritário”, que o predispunha a “uma espécie de subordinação de instituições independentes por natureza ao comando do poder político do Partido Socialista”.
Mesmo que os dois Costas gostem tanto um do outro como Touro Sentado gostava do general Custer, o retracto dificilmente pode ser considerado injusto, porque o currículo de António Costa está aí para o provar. António Costa recusou manter Joana Marques Vidal no cargo de procuradora-geral da República em 2018, quando ela tinha feito um trabalho extraordinário na recuperação do prestígio do Ministério Público, substituindo-a por uma PGR de perfil muito mais apagado e politicamente cauteloso. O mesmo, sem tirar nem pôr, aconteceu ao presidente do Tribunal de Contas Vítor Caldeira em 2020, substituído pelo bem mais avisado José Tavares. No Banco de Portugal, deu-se a homérica vergonha de Mário Centeno transitar directamente do Ministério das Finanças para a cadeira de governador. E não faltam exemplos de choques frontais com reguladores, como aconteceu nas telecomunicações, ou de nomeações políticas sem qualquer pudor, como no caso da energia.
Os nomes que António Costa apresentou para esses lugares não são súbditos ostensivos ou pessoas incompetentes. Mas são invariavelmente gente com “sentido de Estado”, ou seja, da sua confiança e com a justa “sensibilidade política” — aquela que Carlos Costa não teve. E isso mina as instituições que nos deveriam estar a proteger contra os abusos do poder. Sim, continua a existir alguma dose de independência na PGR, no Tribunal de Contas ou no Banco de Portugal. Mas é a dose certa. Não a excessiva. Não a incómoda. Não a dose que o país realmente precisava para as suas instituições ganharem músculo e o sistema de freios e contrapesos funcionar como devia.
É tudo gente que atende o telefone a António Costa, que escuta as suas irritações, as engole e dois anos depois não vai contar em livro. A isso ele chama “respeito institucional”. Mas não é. É apenas a institucionalização da informalidade — coisa que o primeiro-ministro adora, porque assim consolida o seu imenso poder. Problema: a diferença para uma autocracia light é apenas o carácter do primeiro-ministro e não os seus métodos. É nesse sentido que se pode dizer que a cultura socrática de domínio do Estado nunca chegou a ser desmantelada. Claro que António Costa não é José Sócrates. Mas não é porque não quer. Não é porque não possa.
João Miguel Tavares
O autor é colunista do PÚBLICO
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