terça-feira, 8 de novembro de 2022

Estado admite que bancos falsearam a concorrência com troca de dados.

Através do Governo, Portugal enviou observações ao Tribunal de Justiça da UE sobre o processo do “cartel da banca”. Posição dá força às conclusões da Autoridade da Concorrência.

Pedro Crisóstomo

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) recebeu no final de Agosto 18 páginas de observações enviadas pelo Governo, em representação da República portuguesa, sobre o “cartel da banca”, o processo em que os principais bancos portugueses recorrem de coimas de 225 milhões de euros aplicadas pela Autoridade da Concorrência (AdC) por terem trocado informação de forma concertada sobre crédito à habitação, ao consumo e às empresas durante mais de dez anos, de 2002 a 2013.

O caso está a ser julgado em Portugal no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, mas, neste momento, a instância judicial está suspensa enquanto o tribunal europeu responde a duas questões sobre a interpretação do direito da concorrência. Em Santarém, o tribunal nacional de primeira instância já fixou os factos provados — concluiu ter existido um conluio, em que os bancos trocaram informação sensível de forma bilateral e multilateral sem que isso se repercutisse no bem-estar dos consumidores. Mas antes de decidir se essa prática representa, ou não, uma violação das regras da concorrência, a juíza Mariana Gomes Machado accionou um mecanismo chamado “reenvio prejudicial” junto do Tribunal de Justiça da UE, para esclarecer duas questões prévias em relação às quais não haverá jurisprudência.

Nestes processos em que o TJUE intervém (sem decidir o caso, apenas respondendo às perguntas feitas por um tribunal nacional), um Estado-membro pode apresentar observações escritas. E foi o que Portugal fez, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), em nome do Estado.

Ao olharem para o processo no Tribunal da Concorrência, as agentes que representam a República não têm dúvidas de que os bancos “falsearam as condições de concorrência no mercado”. Ao definirem as condições comerciais, “puderam ter necessariamente em conta a informação trocada” e, se assim não fosse, essas decisões “não seriam as mesmas”. A posição do Estado vem dar força às conclusões da Autoridade da Concorrência, uma entidade administrativa independente do Governo a quem cabe zelar pelo princípio da economia de mercado e pelos interesses dos consumidores.

Independentemente desses efeitos, o que está em disputa neste caso — e é essa a questão central que o tribunal português quer ver esclarecida pelo tribunal europeu — é se a troca de informação, com as características que se verificaram neste caso, deve, ou não, ser qualificada com uma restrição da concorrência “por objecto”.

Em Portugal, o Tribunal da Concorrência já deu como provado que, durante mais de dez anos, os bancos partilhavam aos principais concorrentes informações de forma regular, por email e por telefone, sobre as condições comerciais que iam aplicar em breve (por exemplo, enviavam grelhas com os spreads a aplicar dias depois no crédito à habitação e forneciam informações sobre variáveis de risco), trocando dados que não eram públicos ou que os consumidores teriam dificuldade em encontrar da forma sistematizada como era trocada. E, além destes dados, partilhavam ainda informações desagregadas sobre os volumes do crédito concedido no mês anterior.

A concertação envolveu mais de uma dezena de bancos, entre eles a Caixa Geral de Depósitos, o BCP, o BES, o BPI, o Santander, o Montepio, o Banif, o Crédito Agrícola, o BBVA, o Barclays e o Deutsche Bank. A AdC aplicou coimas a 14 instituições financeiras; 12 recorreram para o tribunal e, neste momento, só há 11 em julgamento, porque os factos já foram dados como prescritos em relação a uma, o Deutsche Bank.

As trocas ocorreram de Maio de 2002 a Março de 2013, de forma bilateral e multilateral (por exemplo, há casos em que os funcionários do departamento de marketing ou de gestão de produto de um banco se correspondem com colegas da concorrência; e situações em que um trabalhador envia um email com dados comerciais em simultâneo para vários colegas concorrentes).

“Alinhar” e “ajustar”

O Estado frisa que o tribunal português provou que os dados não estavam disponíveis publicamente. Considera ainda que, sem essa partilha, as entidades financeiras não conseguiriam “aceder às informações” dos concorrentes e, num mercado em que a CGD, o BCP, o BES e o BPI representavam “mais de 70% da oferta de crédito a habitação”, a troca de informação tinha “um elevado potencial colusivo”.

Para o MNE, há uma “elevada susceptibilidade” de a troca ter criado “pontos focais de coordenação, nomeadamente sob a forma de aumentos de spreads e estabilidade de quotas de concessão de crédito”, além de poder ter facilitado “a manutenção de um equilíbrio colusivo” entre os bancos “ao reduzir o incentivo ao desvio”.

O MNE, através da Direcção-geral dos Assuntos Europeus, sublinha o facto de o tribunal português ter considerado que a informação era usada pelas instituições para estas definirem a política comercial, uma vez que os bancos conheciam a oferta dos concorrentes, ficavam a par das suas estratégias comerciais e conheciam “a posição rigorosa no mercado dos seus concorrentes”, o que lhes permitia “alinhar e ajustar permanentemente os seus comportamentos”.

O tipo de informação trocada e “os termos” em que tal aconteceu “permitiu não só atenuar o grau de incerteza quanto ao funcionamento do mercado, como também falsear a concorrência” entre os bancos, argumenta a República.

Para o MNE, essa questão coloca-se a montante, independentemente das consequências. Segundo o Estado português, a partilha da informação tinha, à partida, “um objecto anticoncorrencial”, pelo que, no próprio processo em julgamento, “não seria necessária uma análise detalhada dos efeitos restritivos sobre a concorrência”, tendo em conta que a própria Comissão Europeia considera, nas suas orientações sobre concorrência, que um intercâmbio de informações estratégicas pode dar origem a uma prática anticoncorrencial, não sendo porém preciso verificar esses efeitos restritivos para se considerar existir uma prática nociva.

Em todo o caso, o tribunal português já concluiu que não se identificaram “eficiências” a favor do bem-estar dos consumidores — com preços mais baixos e uma oferta mais diversificada ou de maior qualidade.

Com base em jurisprudência do próprio Tribunal de Justiça, Portugal diz que “não releva saber se todas” as instituições financeiras que recorrem das coimas da Autoridade da Concorrência usaram ou conformaram “o seu comportamento de acordo com a informação recebida”.

Em síntese, Portugal entende que os bancos “substituíram, em boa medida, o risco da concorrência por uma cooperação prática” que deve ser considerada uma “restrição por objecto à luz das linhas de orientação da Comissão [Europeia] sobre cooperação horizontal” entre empresas e à luz “da jurisprudência do Tribunal de Justiça”. É essa a questão que deverá ser apreciada no Luxemburgo antes do desfecho do processo em tribunal.

Procurador concorda

O Ministério Público (MP) português concordou com a posição da República portuguesa. Nas observações que fez chegar ao Luxemburgo, o procurador que acompanha o julgamento no Tribunal da Concorrência, Paulo Vieira, afirma que o MP “acompanha integralmente as razões e os fundamentos” apresentados pela República — e não apresentou qualquer outra informação complementar à descrita pelo MNE.

Os bancos contestam que os factos sejam uma restrição da concorrência “por objecto”, considerando que a partilha não foi suficientemente gravosa ao ponto de restringir a concorrência.

O tribunal português recorreu ao TJUE justificando não haver jurisprudência europeia sobre os conceitos de restrição da concorrência “por objecto e por efeitos” para situações em que a troca de informação acontece de forma isolada entre concorrentes (como sucedeu neste caso) e invocou ainda o facto de não haver “subsídios directos” para a situação em análise, em que a coordenação foi “informal”.

Nas suas observações, a República portuguesa sublinha que “os sistemas de troca de informação podem integrar um acordo de cartel mais amplo e nesses casos o enquadramento por objecto é consensual”, mas, aqui, a dúvida “coloca-se sobretudo para as denominadas trocas de informação isoladas (standalone) entre concorrentes”.

Tal como a AdC e o Ministério Público, os bancos enviaram observações escritas ao TJUE a defender as suas posições. Só o BES, o BBVA e o Barclays decidiram não o fazer.

Por exemplo, o BPI alega que não houve uma infracção por objecto, argumentando que, “fora dos casos” em que a troca de informação esteja associada a uma “coordenação de preços ou de comportamento no mercado”, o Tratado sobre o Funcionamento da UE não classifica como restrição da concorrência por objecto uma troca de informação “quando essas informações não incluem informação futura ou incluem informação que, ainda que seja comunicada antes de se tornar pública, não é susceptível” de permitir às empresas alterar o comportamento “em reacção à informação recebida de modo a reduzir a pressão concorrencial”.

O TJUE não vai decidir se os bancos têm razão, vai apenas pronunciar-se sobre o que o tribunal nacional lhe perguntou. Mas a interpretação poderá ser decisiva. Depois, cabe ao Tribunal da Concorrência decidir se os bancos são condenados ou absolvidos nesta primeira instância.

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