terça-feira, 8 de novembro de 2022

GEOPOLÍTICA DA FOME

No seu livro Geopolítica da Fome, o professor Josué de Castro apresenta um dos aspectos mais prementes e, sem dúvida, o mais trágico desta geografia da alimentação, que é o capítulo inicial de toda geografia humana. Realmente, a importância de tais problemas não era desconhecida dos entendidos do assunto. Existe muito de humanidade profunda na obra de um E. Réclus ou de um Vidal de la Blache, para que não se tivesse deles uma clara consciência. Na verdade nossos antigos mestres não estavam enganados a respeito dos tabus que Josué de Castro denuncia. Todavia, ele tem muita razão quando afirmava que o comum dos geógrafos e, principalmente, o comum dos homens, preferiria nada dizer a propósito desse assunto. E muitos há que lançavam um véu discreto sobre essas feias perspectivas. Eis que, apesar disso, nós, civilizados, vimos levantar-se diante de nós o espectro horrível da fome. Coisa que não se imaginaria nos 20 anos passados, nós temos tido fome como nossos avós tiveram fome. Os quadros mais sombrios, nos quais estávamos inclinados a não encontrar senão na literatura, retomaram, a nossos olhos, cor e realidade. Viram os médicos o aparecimento, nos hospitais da Europa Ocidental, de moléstias estranhas, cujas causas mal se conheciam.

Ano de publicação: 2003

’’Quais são os factores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? Será por simples obra do acaso que o tema não tem atraído devidamente o interesse dos espíritos especulativos e criadores dos nossos tempos? Não cremos. O fenómeno é tão marcante e apresenta-se com tal regularidade que, longe de traduzir obra do acaso, parece condicionado às mesmas leis gerais que regulam as outras manifestações sociais de nossa cultura.

Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e económica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente’’.

Josué de Castro, Geografia da Fome

De todos os estudiosos sobre o fenómeno social, político e económico da fome, o mais importante continua sendo o brasileiro Josué de Castro. Resgatar esta literatura reflexiva em um momento grave como o presente é necessário para compreender as grandes transformações sistémicas actuais e o impacto sobre as pessoas comuns, a partir do tipo de sociedade imposta sobre boa parte do mundo nos últimos séculos, por uma classe dominante dos países ocidentais. O esgotamento do presente modelo económico, social e político ficou evidenciado durante a pandemia da Covid-19. No entanto, já existiam sinais anteriores de que a estratégia do ’’caos social’’ e de militarização de todas relações sociais, políticas e económicas do capitalismo encaminhavam o mundo para a catástrofe.

As crises migratórias oriundas das guerras da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na Iugoslávia, Iraque e Afeganistão resultaram em um espaço de três décadas no surgimento do maior grupo de pessoas refugiadas no mundo desde a Segunda Guerra Mundial. O neoliberalismo na América Latina e em países africanos apontava em uma direcção de instabilidade política geral em razão da ampliação da pobreza e da fome estrutural em níveis semelhantes ao século XIX. Mesmo nos países do grupo das sete principais economias do mundo (G7), a desigualdade social, a fome e outros problemas que até a década de 1980 eram muito mais presentes em países do Sul-Global passaram a estar presentes.

Nenhum dos problemas actuais nascem com o início da operação militar russa na Ucrânia a partir de 24 de Fevereiro de 2022. Culpar o governo russo de todos os males da Terra para ’’cancelá-lo’’ do sistema internacional é um subterfúgio confortável para os verdadeiros responsáveis do caos- alguns do quais também são responsáveis pela situação ucraniana. A grave crise de abastecimento de produtos básicos em andamento no mundo actual esteve também presente durante a pandemia na forma da negligência ocidental de vacinas e medicamentos para os países pobres.

Crédito: Popa Matumula/ Cartoon Movement.

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