Não estou a pôr em causa o pedigree classes C e D do novo secretário-geral. Mas eu também apanhei muita batata na quinta do meu avô, e isso não faz de mim camponês.
Parecia um fim-de-semana dos tempos do PREC, tantas foram as vezes que ouvimos a palavra “operário”. PÚBLICO: “Paulo Raimundo, ‘operário’ como Jerónimo em versão mais jovem, é o senhor que se segue no PCP”. CNN Portugal: “Paulo Raimundo, o operário que, de forma inesperada, surge como sucessor de Jerónimo”. Wikipédia: “Paulo Alexandre Raimundo (Cascais, 1976) é um carpinteiro, padeiro, operário e político comunista português, actual secretário-geral do PCP.”
Operário? Carpinteiro? Padeiro? A sério? A esquerda woke inventou a expressão “apropriação cultural” para denunciar a usurpação ilegítima de elementos de culturas alheias e para criticar aqueles que tomam como seu o que pertence a outros. Agora, o PCP inventou o conceito de “apropriação laboral”: Paulo Raimundo, o novo e até agora desconhecido secretário-geral do partido, foi carpinteiro, foi padeiro, foi operário, e segundo a biografia disponibilizada pelo PCP, até chegou a acompanhar a mãe “na apanha do marisco”, o que possivelmente faz dele também pescador.
A sua biografia oficial parece arrancada de um romance neo-realista de Alves Redol, e só tem mesmo um pequeno problema: quando nos pomos a fazer as contas, ela não faz sentido algum. Paulo Raimundo nasceu em 1976 e aderiu à Juventude Comunista Portuguesa em 1991. Idade: 15 anos. Em 1995, passou ao quadro de funcionários da JCP. Idade: 19 anos. Em 1996, Paulo Raimundo foi eleito membro do comité central. Idade: 20 anos. Em 2000, foi escolhido para o núcleo mais restrito da comissão política. Idade: 24 anos. Em 2004, passou a ser funcionário do partido. Idade: 28 anos.
Não sei exactamente quando é que Paulo Raimundo foi operário, carpinteiro, padeiro ou pescador, mas deve ter sido numa idade mesmo muito tenra, porque aos 15 já não pactuava com o trabalho infantil, aos 19 era funcionário da Juventude Comunista e aos 20 estava no comité central. Note-se que não estou a pôr em causa o pedigree classes C e D do novo secretário-geral, nem a sua capacidade para montar uma porta ou cozer uma carcaça. Mas, quando era novo eu também apanhei muita batata na quinta do meu avô, e isso não faz de mim nem camponês nem agricultor.
Paulo Raimundo é funcionário do PCP vai para 30 anos. É essa a sua profissão. A maior parte das pessoas esforça-se por enriquecer os seus currículos — o PCP prefere proletarizá-los. Há pormenores deliciosos na biografia que colocou à disposição da comunicação social. Como o novo secretário-geral teve o azar de nascer em Cascais, que soa a coisa demasiado fina, o texto oficial logo trata de informar que ele “é filho de trabalhadores naturais do concelho de Beja” (quem sabe, até descendente de Catarina Eufémia).
Dir-me-ão: mas isto tem alguma importância? Tem e não é pequena. Não por o departamento de comunicação do PCP ser uma fábrica de produção de operários, mas por aquilo que essa necessidade revela. O Partido Comunista Português é hoje um partido de funcionários políticos, que dá emprego a mais de 95% do seu comité central. As consequências dessa dependência vêem-se em casos como o da invasão da Ucrânia: ao contrário do que aconteceu nos anos 1990, após a queda da União Soviética, desta vez não se ouviu uma única voz dissonante oriunda do interior do PCP. Como, aliás, não se ouviu agora, apesar da surpresa que foi a escolha de Paulo Raimundo. Este monolitismo não cai do céu. A melhor forma de estar toda a gente alinhada é manter toda a gente dependente.
O autor é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico
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