quarta-feira, 19 de abril de 2023

TAPitô

Ficarei muito desgostoso se venderam a TAP à Lufthansa. Não me apetece nada ter de aprender alemão para poder assistir às peripécias da TAP nas comissões de inquérito do Bundestag.

José Diogo Quintela



Estou empolgado com ficção televisiva de qualidade! Fico sempre assim quando estreia a nova temporada de uma das minhas séries predilectas. E na semana passada estrearam logo duas: Succession, na HBO, e As aventuras da TAP, na ARTV. Uma é a saga da empresa milionária e das traições, maroscas, esbanjamento imoral e tolices de quem quer mandar nela; a outra é a história de Logan Roy e família.

Depois de assistir aos primeiros dois episódios de ambas, já decidi: vou dedicar o meu tempo à da TAP. Enquanto esta temporada de Succession é mais do mesmo, a da TAP, dedicada à Comissão Parlamentar de Inquérito à Tutela Política da Gestão da TAP, introduz personagens novos que trazem frescura à narrativa. Até porque vêm tão focados limpar a imagem do Governo, que parecem lixívia com aroma floral.

O episódio de estreia é a audição a António Ferreira dos Santos, Inspector-Geral das Finanças, responsável pela elaboração do relatório que concluiu que Christine Ourmières-Widener é a única culpada pela indemnização ilegítima que Alexandra Reis recebeu. O episódio começa com a apresentação de Ferreira dos Santos, que diz aos deputados: “Entendemos que era importante ouvir as pessoas envolvidas ou que havia indício que conheciam o processo. Optámos por ouvir Alexandra Reis, o chairman, também o CFO e o ex-Secretário de Estado, a ideia era que eram as pessoas que havia indícios suficientes que tinham envolvimento directo no processo. As restantes, achámos que bastava por escrito”. Ou seja, a CEO, que é quem manda na empresa, que está tão envolvida que até é a principal responsável, não é ouvida. Numa frase, fica apresentada a personagem do Inspector-Geral das Finanças, mistura de dois outros famosos inspectores do audiovisual: o Inspector Clouseau, pela trapalhice, e o Inspector Max, pela fidelidade ao superior hierárquico.

Ferreira dos Santos explica porque é que optou por não ouvir presencialmente a CEO: “A questão para nós foi o facto de estarmos a falar – talvez achem graça – línguas diferentes. Percebemos, da audição que a senhora teve aqui, que talvez isso tenha sido utilizado para não responder a questões colocadas por deputados”. Vê-se que o Inspector-Geral fez o trabalho de casa. Assistiu à audição que Christine Ourmières-Widener já tinha prestado na Assembleia da República e apercebeu-se que, muitas vezes, ela não respondia directamente às perguntas que lhes eram colocadas. E apercebeu-se bem. Pelos vistos, a finta a questões é uma atitude típica de responsáveis quando são inquiridos. Basta ver que, nem uma hora depois de Ferreira dos Santos ter dito isto, alguns dos deputados que lhe estavam a fazer perguntas queixaram-se ao Presidente da Comissão de que o Inspector-Geral não se estava a deixar inspeccionar. Disse Hugo Carneiro do PSD: “Quando os deputados colocam perguntas, as perguntas têm de ser respondidas. A não ser que o depoente, ao abrigo dos seus direitos fundamentais, invoque, por exemplo, alguma causa que o possa prejudicar na sua defesa própria. E, se quiser, até se pode fazer acompanhar por advogado. Portanto, era bom termos perfeitamente noção do que estamos aqui a fazer. Se eu coloquei uma questão que não foi respondida, independentemente do meu tempo ter terminado, tenho direito a que a resposta seja dada, a não ser que alguma das causas que referi seja invocada”. E, momentos depois, Filipe Melo do Chega: “Eu entendo que, por estarmos numa Comissão de Inquérito, todas as questões devem ser respondidas. O sr. Inspector-Geral tem-no feito, de alguma forma, sem receio das palavras. Mas de outras notamos que tem alguma resistência em responder concretamente ao que é solicitado”.

Ora, como Ferreira dos Santos não se esquivou em francês, conclui-se que, quando fala em “línguas diferentes” se deve estar a referir ao facto da CEO ter uma língua bífida, como as serpentes. Está a chamar-lhe ardilosa. Daí não ter querido encará-la pessoalmente, para não ser endrominado pelas sibilantes.

Como todos os bons primeiros episódios, a audição de Ferreira dos Santos termina com uma revelação bombástica: a TAP tem uma nova rota! Até agora, o voo mais longo da TAP era para São Francisco, mas, depois do depoimento do IGF, descobrimos que Fernando Medina foi transportado para um sítio ainda mais longínquo. Deve ser a Lua, porque Medina consegue estar mais afastado de qualquer responsabilidade na TAP do que eu, que o máximo prejuízo que dei à companhia foi ter ficado com os headphones num voo que fiz há 3 anos.

O segundo episódio também não desilude. Trata-se da audição do CFO da TAP, Gonçalo Pires. São quase cinco horas, todas passadas com Gonçalo Pires a afirmar, repetir, reiterar e repisar que não teve nada, absolutamente nada a ver com o processo da saída de Alexandra Reis, do qual, aliás, apenas teve vago conhecimento informal. Qualquer espectador com um mínimo de experiência a assistir a filmes de terror sabe que, se o realizador está a esforçar-se muito para mostrar que um túmulo está vazio, é óbvio que, quando achamos que a fita acabou, vai saltar lá de dentro um zombie. Neste caso, foi no pós-genérico: um dia depois da audição, a CNN publicou duas conversas de WhatsApp entre a CEO e o CFO, da altura em que se negociou a saída de Alexandra Reis. A primeira:

CEO: Acordo alcançado com a Alexandra.

CFO: Pensava que ia demorar mais tempo. Parabéns.

A segunda:

CEO: A Alexandra respondeu?

CFO: Não.

CEO: Liga-lhe, se fora necessário: Claro que tu não sabes de nada.

CFO: Claro.

Percebe-se que, afinal, Gonçalo Pires sabia do processo. Tanto que até tinha uma opinião sobre quanto tempo poderia demorar a ser alcançado. E participou nele, ao ponto de ter uma ordem da CEO para falar com Alexandra Reis, uma espécie de missão secreta sobre a qual deveria negar saber o que fosse. Ordem que, diga-se, cumpriu com excelência, como se comprovou pelas respostas que deu na audição.

Quanto à diferença que o CFO quis sublinhar entre conhecimento oficial e informal, fica uma bocado esbatida quando constatamos (também pela reportagem da CNN) que a informalidade das mensagens por telemóvel é a mesma que é usada nas comunicações entre a CEO e o Secretário de Estado da tutela a propósito das decisões do Ministro das Infraestruturas. Que, recorde-se, era Pedro Nuno Santos, outro que na altura também não sabia de nada. Logo, na TAP, o WhatsApp não é uma mera aplicação de telemóvel para combinar jogos de padel com os colegas, é uma ferramenta profissional utilizada ao mais alto nível. Gonçalo Pires está a fazer confusão entre “conversa informal” e “conserva em formol”. Só esta última permite a preservação.

Espero que nunca privatizem a TAP. Ficarei muito desgostoso se a venderam, especialmente se for à Lufthansa. Não me apetece nada ter de aprender alemão para poder assistir às peripécias da TAP nas comissões de inquérito do Bundestag. Já desliguei as legendas a ver uma série escandinava e não é nada divertido.

Observador

04-04-2023

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