terça-feira, 12 de novembro de 2019
Stabat Mater depenadinha
A mãe de Sócrates faz lembrar a Virgem a sofrer pelo filho. A diferença é que Nossa Senhora sofria por Cristo à beira da cruz, enquanto Adelaide Pinto de Sousa sofre por Sócrates à beira do Multibanco.
O país está em choque com o caso do recém-nascido abandonado num contentor. Mas, apesar da forte censura social, tenho a certeza de que todos os portugueses sentem compaixão por aquela mãe. Quer dizer, todos, todos, não. Há uma portuguesa que o que sente pela mãe que abandonou o filho, não é compaixão, é inveja. Trata-se da mãe de José Sócrates. Neste momento, Maria Adelaide Pinto de Sousa deve estar a pensar porque é que não se lembrou de enjeitar o seu filho, mal o trouxe ao mundo. Devia ter percebido, quando o mini-Sócrates mamava um bocadinho mais do que era preciso, o abusador.
Tinha-se poupado a muitas agruras. Aliás, não ficava por aí em termos de poupanças: também poupava os 5 milhões de euros que, sabemos agora, José Sócrates lhe torrou em férias, quadros, restaurantes e amigas. De herdeira milionária de um milhão de contos, a mãe de Sócrates passou a pensionista remediada, sobrevivendo a pedinchar esmolas ao mesmo filho que lhe esbanjou a fortuna. Agora, sentada na sala do seu casinhoto de 70 m2 – o tamanho do closet, tão típico da classe média, onde José Sócrates guardava os seus fatos e sapatos, em Paris – Maria Adelaide Pinto de Sousa lamenta não ter tido a presença de espírito para se livrar da sanguessuga ingrata a que o resto do país se habituou a chamar Engenheiro Sócrates.
Se o tivesse feito, hoje teria uma vida mais confortável, a usufruir da herança que o seu pai lhe deixou. (Já nós, portugueses, de certeza que nos teríamos lixado de igual forma. Sócrates começaria por endrominar o sem-abrigo que o encontrasse no lixo, surripiando-lhe com o cartão todo, e ia arranjar maneira de chegar a primeiro-ministro, para cumprir o seu desígnio de intrujar Portugal).
José Sócrates é uma espécie de filho pródigo, mas sem a parte da redenção. Na parábola bíblica, o filho pede ao pai a herança adiantada e vai estourá-la. Já na penúria, regressa, humilde, para os braços de seu pai. Sócrates é ligeiramente diferente: também é perdulário com a herança que a mãe lhe adianta, mas, depois de tudo gasto, não aprende qualquer lição de humildade. Pelo contrário, enquanto Sócrates continua com a fanfarronice habitual, é a mãe, que o sustentou, que está mais humilde. Basta ler a transcrição das escutas telefónicas entre os dois, com a mãe a dizer que está “depenadinha” e a suplicar ajuda para comprar um agasalho e para conseguir ir de férias. Mais humilde que isto, só se cantasse “A minha casinha” ao telefone.
A mãe de Sócrates faz lembrar a Virgem Maria, desolada, a sofrer pelo filho. A diferença é que Nossa Senhora sofria por Cristo à beira da cruz, enquanto Adelaide Pinto de Sousa sofre por Sócrates, à beira da Caixa Multibanco, sem fundos para levantar, com o bonequinho no ecrã a encolher os ombros como quem diz “o teu filhou já esvaziou tudo”. Stabat mater dolorosa, uma, Stabat mater depenadinha, outra. Faz sentido a mãe de Sócrates dizer-se sem penas, já que caiu na conversa do filho que nem uma patinha.
É por isso que tantos socialistas continuam a admirar José Sócrates. Como bom homem de esquerda que odeia os ricos, Sócrates conseguiu esmifrar de tal forma uma milionária, que a pôs a viver como uma pessoa de classe média-baixa. Está bem que é a sua mãe, mas isso confere ainda mais valor ao processo de redistribuição de riqueza executado por Sócrates. Com o que Sócrates fez à mãe, Portugal ficou um país menos desigual.
domingo, 10 de novembro de 2019
A secretária que espiava a embaixada em Berlim e o diplomata que ia ser expulso. Como a Stasi vigiou e usou os portugueses até 1989
A polícia política da Ex-RDA recrutou informadores portugueses, infiltrou secretárias alemãs na embaixada e acusou um diplomata de transportar pessoas na mala do carro. Era mentira mas iam expulsá-lo.
“Havia um amigo com quem eu tinha um caso em Berlim Oriental. Era dentista. Pensei seriamente: como é que vou reagir se ele me pedir para o levar na mala do carro para Berlim Ocidental? Mas nunca ocorreu. Ele nunca chegou a pedir-me isso. Hoje, 40 anos depois, mantemos uma excelente relação. Ele já sabe que eu pensei isso sem nunca lhe ter dito. E ele nunca me pediu porque não quis pôr em risco a amizade comigo”.
Fernando Cesário Nunes de Almeida, adido de imprensa da embaixada de Portugal na RDA (República Democrática Alemã) desde 1974, intérprete, hoje com 70 anos e homossexual assumido, estranhou aquela manhã de 27 de Julho de 1979 em que chegou ao gabinete e a secretária lhe disse que o embaixador tinha sido chamado de urgência ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, com a indicação expressa de não ir com ele. O press-attaché inquietou-se porque era o único funcionário da representação portuguesa que falava alemão, pelo que acompanhava sempre o embaixador nos contactos com o governo da ex-RDA.
Percebeu logo que algo estava errado. Uns dias antes, Portugal tinha expulsado um adido de imprensa da RDA em Lisboa, por estar a incitar manobras subversivas contra a reforma agrária. Pensou que teria sido ele o escolhido pela ditadura comunista para retaliar — uma prática frequente entre diplomacias quando um país declara um cidadão estrangeiro como persona non grata.
E com que pretexto? Achou que talvez usassem um delito menor, com o qual já o tinham confrontado: o transporte de antiguidades e porcelanas da Alemanha de Leste para o lado ocidental, na mala do carro, sem a autorização burocrática oficial. (Ainda hoje tem algumas dessas peças a decorar a sua casa em Berlim, desde uns jarrões de estanho, a cristais e um candeeiro de tecto.)
O recado da secretária da embaixada não lhe soou bem e Fernando reagiu por instinto: “Vou embora daqui para fora. Há confusão, tem a ver com a história de Lisboa ter expulso o diplomata da RDA”.
Fernando-Cesário Nunes de Almeida, adido de imprensa (à esq.), ao lado de Rui Medina, primeiro embaixador de Potugal na RDA em 1975
A falsa acusação de transportar pessoas na mala do carro
Ainda o embaixador português se encontrava a ser recebido pelo ministro, quando Fernando Almeida formalizou um pedido de demissão e se pôs a caminho da fronteira para passar para o lado de Berlim Ocidental. “Sabia que ia ser declarado persona non grata, era muito arriscado esperar para falar com o embaixador”, recorda agora ao Observador. À noite, outro funcionário diplomático, Tadeu Soares, encontrou-se com ele já em Berlim Ocidental: “Tem a certeza que quer deixar a embaixada? Não quer que façamos mais nada?” Fernando Almeida já estava a pensar sair mais menos mês, já tinha acabado os seus estudos de Ciências Políticas e Romanísticas na Alemanha e tinha concorrido a um lugar de tradutor nas Nações Unidas. Não hesitou em deixar o lugar na embaixada e entregou ao colega as placas de matrícula do corpo diplomático.
Sem ele saber, nessa manhã, pelas 11h30, o embaixador português foi confrontado pelo governo da RDA com uma informação segundo a qual Fernando Almeida teria transportado pessoas na mala do carro de Berlim Leste para o lado ocidental. É pelo menos o que consta no documento conservado no arquivo da Stasi (a polícia política da ex-RDA) sobre a reunião entre o chefe do departamento da Europa Ocidental no MNE da Alemanha de Leste (“Comrade Dr. Herbert Plaschke”) e o embaixador Henrique Coelho Lopes. O resumo do encontro foi elaborado pelos alemães, pelo que não é possível indicar exatamente que partes da conversa estão descritas com rigor. Eis as principais linhas:
“O embaixador português foi informado de que o adido de imprensa Almeida, abusando dos seus privilégios de diplomata, tem actuado já há um longo período de forma criminosa contra a RDA e está a planear praticar crimes ainda mais graves”.
“Devido às boas relações entre os dois países, o Ministério dos Negócios Estrangeiros preferia não ter de o declarar persona non grata. Mas espera que Almeida deixe a RDA imediatamente e que sejam devolvidos todos os documentos que o identificam como um diplomata acreditado na RDA”.
“Tenho a certeza de que colegas nossos (diplomatas) da América latina se deixavam aliciar por este tipo de propostas. Nas fronteiras, havia um raio x, e lembro-me que um colega do Egipto foi apanhado com gente na mala do carro."
Fernando Almeida, ex-adido de imprensa que a RDA quis declarar como persona non grata
Segundo o resumo alemão, o embaixador português terá agradecido a não declaração de persona non grata e lamentado o desrespeito de um funcionário da embaixada. Garantiu ainda desconhecer estes incidentes e manifestou esperança de que não perturbassem as relações entre os dois países.
A informação que suportou as alegações contra o diplomata português foi redigida dois dias antes, a 25 de Julho de 1979, e refere que “o Ministério para a Segurança do Estado da RDA encontrou indícios claros de que Fernando Almeida teria transportado um empregado de mesa na mala do seu Mercedes para Berlim Ocidental” e que já teria combinado transportar mais duas mulheres, mãe e filha, a troco de dinheiro, usando o estatuto diplomático que lhe permitia atravessar a fronteira sem ser fiscalizado.
Outra nota nos arquivos da Stasi dá conta de uma conversa sobre o tema entre o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Herbert Krolikowski, e um outro alto funcionário, na qual admitem a hipótese de o embaixador português rejeitar as acusações e combinam que teriam de declarar o adido de imprensa português como persona non grata — mas nesse caso a informação sobre as alegações de tráfico humano deveria ser completada com mais detalhes para ser tornada pública.
Fernando Almeida, ouvido pelo Observador 40 anos depois, não sabia que estas acusações se encontravam no arquivo da Stasi e desmente-as. “Não é verdade. São tudo calúnias. Só pode ter sido uma invenção para me colocarem numa situação difícil”, garante, recordando a necessidade da RDA de expulsar um português para responder à expulsão de Lisboa de um alemão do leste.
Como vivia em Berlim Ocidental com um carro de matricula diplomática da RDA, foi abordado umas 5 ou 6 vezes, por pessoas que diziam querer retirar familiares da Alemanha comunista. Chegaram a fazer-lhe uma proposta concreta de ir com o carro à garagem de um hotel, deixar a mala aberta para entrar alguém e atravessar a fronteira, a troco de 15 mil marcos.
“Tenho a certeza de que colegas nossos (diplomatas) da América latina se deixavam aliciar por este tipo de propostas. Nas fronteiras, havia um raio x, e lembro-me que um colega do Egipto foi apanhado com gente na mala do carro. Mas não havia qualquer necessidade disso: o transporte de pessoas à margem da lei a partir de Berlim Ocidental estava muito bem organizado.”
No arquivo da Stasi, há uma alegação parecida relacionada com outro funcionário da embaixada portuguesa, “provavelmente eletricista”. Um informador relatou que em Agosto de 1976 uma mulher divorciada tinha conseguido passar para o lado ocidental, depois de ter entrado na mala do carro do funcionário, a troco de 5 mil marcos.
Os relatórios sobre a vida íntima dos diplomatas portugueses na hora da saída
Outra informação elaborada já depois da saída de Fernando Almeida da RDA está cheia de informações íntimas e avaliações de caráter. Há documentos semelhantes no arquivo da Stasi elaborados sobre pelo menos outros três diplomatas depois de terem deixado o país, cheios de alegadas informações comprometedoras. Têm todos o mesmo título: “Informação sobre um diplomata da embaixada de Portugal, que acabou o seu trabalho na RDA”.
Seguem-se dados completos de identificação e residência, na Alemanha e em Portugal, data da primeira entrada no país, e alegados vícios ou outros comportamentos que pudessem ser vistos como censuráveis. Por exemplo, um dos diplomatas foi descrito assim: “Passado algum tempo a sua actividade profissional entrou em declínio. A razão era o consumo de álcool em excesso, que pode ter sido a razão para o fim do seu casamento. (…) Tinha muitos contactos sexuais na RDA”. Seguem-se os nomes de três parceiras sexuais, uma das quais seria sua noiva e teria pedido para viajar para países capitalistas, o que não foi autorizado.
Segundo o relatório da Stasi, um diplomata português estava a pagar a um informador que usava o nome de código “Feuerbach”. E teria mostrado disponibilidade para também trabalhar para a RDA, provavelmente colaborando com a polícia política. A Stasi encarou esta informação com cautela
Indicam-se vários internamentos hospitalares devido ao consumo de álcool, bem como situações em que apareceu alcoolizado na embaixada, nas ruas de Berlim e na Feira de Leipzig— e ainda acidentes rodoviários. O facto de este funcionário português ter participado algumas vezes o desaparecimento dos seus documentos diplomáticos levou a Stasi a desconfiar que ele estivesse a encobrir atividades subversivas.
Depois surge este detalhe insólito: “Feuerbach”, o nome de código de um dos muitos informadores da Stasi que espiavam a embaixada portuguesa, relatava que o alvo lhe estava a pagar mensalmente 200 marcos ocidentais para obter informações sobre a representação de um banco italiano na RDA, pedindo-lhe documentos originais, a serem entregues de forma secreta. Ou seja, se houver veracidade nesta informação, um diplomata português pagaria a um informador da Stasi. Ainda segundo “Feuerbach” o funcionário português mostrava-se receoso sobre o seu futuro e teria disponibilidade para também trabalhar para a RDA, provavelmente colaborando com a polícia política. A Stasi encarou esta informação com cautela: admitiu que o diplomata estivesse apenas a provocar o informador ou a querer provar que ele trabalhava para o Ministério da Segurança do Estado.
Numa informação semelhante sobre outra antiga diplomata da embaixada portuguesa, identificam-se homens com quem teve um contacto mais íntimo, e relata-se a alegada apreciação negativa que o embaixador faria do seu trabalho, por ser preguiçosa e intriguista.
Sobre um terceiro diplomata, identificado como “provável bissexual”, com ideias hostis à política da RDA, escreveu-se que “a bagageira do seu carro estava algumas vezes mais pesada quando ia a Berlim Ocidental”. A Stasi suspeitava que ele teria colaborado com os serviços secretos da Nato.
Uma vez que estavam de saída da RDA, não se percebe outro objetivo na elaboração desses relatórios que não fosse serem usados como eventual pressão ou chantagem sobre esses diplomatas, caso houvesse o objetivo ou necessidade de os recrutar para fornecerem informações no futuro, nos postos onde viessem a estar colocados.
Logo em 1975, a Stasi abordou a professora de alemão do embaixador Rui Medina, que lhe dava aulas na residência. Deu-lhe o nome de código “Gisela” e atribuiu-lhe a tarefa de provocar o embaixador durante as aulas para ver como ele reagia politicamente. A avaliação do seu trabalho era positiva, embora não se conheçam detalhes sobre os reais efeitos, pelo que o Ministério para a Segurança do Estado decidiu compensá-la com uma autorização para ir acampar em Prerow, uma estância balnear no Mar Báltico.
Mas pelo menos no caso do ex-adido de imprensa Fernando Almeida, não houve qualquer abordagem da Stasi. Aliás, mesmo durante os cinco anos em que trabalhou na RDA, que recorda como um “mundo cinzento, pouco iluminado, com muito uniforme na rua, uma vida prussiana de controlo”, não se lembra de nenhum contacto formal com aquela polícia: “Diretamente abordado pela Stasi não fui. Mas senti a sua presença. Havia sempre a sensação Big Brother. Tenho quase a certeza que os motoristas da embaixada eram todos da Stasi. Eram muito discretos. Tinham licença para vir connosco tratar de assuntos a Berlim Ocidental, e nunca nenhum fugiu.”
Outra forma de sentir a presença da polícia política era a quase impossibilidade de entrar em contacto com população local. “Eles tinham muito medo que nós solteiros tivéssemos acesso a mulheres com formação académica, porque se elas casassem poderiam sair do país e lá a RDA perdia mais uma cidadã que vinha para a parte ocidental. No intervalo da ópera, quando ia ao bar tomar um copo de vinho, vinha sempre alguém ter comigo para evitar que eu estabelecesse contacto com senhoras. Só havia meia dúzia de figuras expostas do sistema com que podíamos ter contacto.”
Mas estas manobras para evitar casamentos não eram sempre eficazes. Um cônsul português viria a casar-se com uma cidadã da RDA que deixou o país pouco depois. Também o filho de um dos embaixadores se apaixonou por uma estudante bolseira da Alemanha oriental, com quem viria a casar-se.
Logo a seguir ao 25 de Abril, Portugal era louvado na imprensa da RDA, o líder comunista Álvaro Cunhal era recebido com honras de chefe de Estado, e o próprio pessoal diplomático passou a ser tratado de forma amiga: “Em vez de me chamarem senhor Almeida, tratavam-me por Camarada Almeida”, recorda o adido de imprensa. Mas mesmo assim, ninguém estava autorizado a sair de Berlim Oriental para outras localidades da RDA sem uma autorização formal do Ministério.
Os relatórios de “Eva”, a secretária infiltrada na embaixada portuguesa
Só depois da revolução, a 20 de Junho de 1974, é que Portugal e a RDA estabeleceram relações diplomáticas. A embaixada ficava no 5º. piso de um grande edifício na Otto Grotewohl Strasse, nº 3, juntamente com outras representações, incluindo a do Afeganistão e a da Síria. Já a residência do embaixador ficava na Stavangerstrasse, nº 19, num bairro com todas as casas iguais, entre a da Grécia e a da Tunísia, em frente à dos EUA e nas traseiras das da Áustria e da Finlândia.
A residência era descrita como um edifício com três pisos e um sótão, com jardim e garagem. Todas as dimensões da casa, os materiais usados na construção e os pontos de abastecimento de energia e água estavam identificados num relatório policial, onde os autores se queixavam que algumas árvores limitavam a visibilidade para vigiar o edifício nos meses de verão.
Estava em permanência vigiada por um agente à civil e dois carros policiais, armados com walkie talkies, uma pistola e um bastão. Também a lista dos carros que tinham acesso à embaixada e respetivos utilizadores era controlada pela Stasi: um BMW, três Mercedes (um deles do embaixador), quatro Volksewagen, dois Fiat, um Porsche, um Lada, um Chevrolet.
O pessoal português colocado na embaixada e respetivas famílias ascendia a 17 pessoas. Todas as movimentações aparentemente sem importância eram registadas, desde a saída do embaixador num carro com quatro malas, até aos exercícios de tiro do cozinheiro fora da residência. A chegada de uma máquina de lavar e dois aspiradores, numa viatura da Alemanha Ocidental, por não haver transporte disponível na RDA, levou o autor desse relatório a criticar a má imagem para o país provocada por essa situação.
Logo em 1975, a Stasi abordou a professora de alemão do embaixador Rui Medina, que lhe dava aulas na residência. Deu-lhe o nome de código “Gisela” e atribuiu-lhe a tarefa de provocar o embaixador durante as aulas para ver como ele reagia politicamente. A avaliação do seu trabalho era positiva, embora não se conheçam detalhes sobre os reais efeitos, pelo que o Ministério para a Segurança do Estado decidiu compensá-la com uma autorização para ir acampar em Prerow, uma estância balnear no Mar Báltico.
A vigilância permanente à embaixada portuguesa em Berlim foi-se intensificando e em 1983, quando Portugal era governado pelo Bloco Central liderado por Mário Soares, havia ao todo 13 informadores da Stasi a controlar os passos dos diplomatas portugueses.
A que fornecia informações mais preciosas era uma secretária alemã infiltrada dentro da embaixada. Nome de código:“Eva”. Tinha acesso a quase tudo. Num relatório que elaborou em 1985, conta que é ela que está a gerir a nova central telefónica instalada na embaixada. Além de atender e reencaminhar telefonemas, consegue ver quem mais está a usar telefones na embaixada e que chamadas chegam ou são feitas para o estrangeiro. Mas o aparelho, de fabrico búlgaro, tinha uma limitação importante para a informadora: não permitia que ela escutasse os telefonemas.
Antes, em 1982, foi ela que alertou a Stasi para uma ordem do cônsul português, para que fossem transmitidos de forma encriptada a um departamento da NATO os dados dos portugueses e dos cidadãos da RDA que pretendiam casar-se: identificação pessoal, residência e local de trabalho, eventuais conflitos com instituições da RDA e modus operandi para concretizarem o casamento. (Em 1979, por exemplo, houve cinco pedidos de portugueses para se casaram com cidadãos da RDA. Um foi recusado pelas autoridades alemãs).
Os primeiros encontros foram num miradouro, mas tiveram de ser alterados para um local a que deram o nome de código “Seerose”. Chegaram a oferecer-lhe uma garrafa de cognac como recompensa pelo seu trabalho como informador. Mas a frustração de quem redigia os relatórios ia crescendo: “Ainda não se convenceu o informador a ter contactos com outros responsáveis”; “Ele não mostra iniciativa para se encontrar com portugueses na embaixada”; “Tem potencial para se tornar mais valioso”.
No mesmo ano, informou que tinha sido colocado um cadeado com código secreto na porta que separava os gabinetes da embaixada dos gabinetes do consulado e outro cadeado na porta da sala dos telex. Mas não conseguiu indicar o tipo ou marca do cadeado.
Em 1987, foi também ela que informou, com base em conversas que ouviu do cônsul português, que vinha um novo embaixador a caminho de Berlim, referindo esta nomeação como um castigo, na sequência de um desentendimento com o ministro Português.
E em 1988 relatou o problema com o passaporte de um secretário da embaixada que andava de Porsche. Tinha a abreviatura dr. antes do nome, apesar de não ser médico — algo que era comum em Portugal para licenciados, mas provocou estranheza na RDA.
Tudo informações com relevância muito diferente, mas que eram canalizadas para a Stasi, que concentrava tudo e cruzava estes dados com os fornecidos por outros informadores.
Os dois portugueses recrutados pela Stasi como informadores
Para cumprir o objetivo de controlar ainda melhor a embaixada portuguesa em Berlim, poderia fazer toda a diferença recrutar informadores portugueses, com quem o pessoal diplomático pudesse ter um contacto mais fácil e de maiores confiança. Em pelo menos dois casos, a polícia política da RDA teve algum sucesso. O Observador conhece as suas identidades, mas não as vai expor, tendo em conta a complexidade das situações em que se viram envolvidos, e a possibilidade de adulteração da realidade por parte da Stasi nos documentos que escreveu sobre eles.
Um dos portugueses surge identificado pela polícia política com o nome de código “José”, funcionário de uma universidade. Ainda está vivo, mas o Observador não o conseguiu localizar até ao momento nem na Alemanha nem em Portugal. Na visão dos seus controleiros da Stasi, era sempre pontual e de confiança, nunca falhava os encontros de 3 em 3 semanas, mas avançava poucas informações relevantes. Era amigo de um alto funcionário da embaixada e “não se sentia bem pessoalmente por estar a dar informação sobre os amigos”. Contudo disse compreender a necessidade de um sistema de informações. Fez por isso um esforço para corresponder e tentava marcar encontros com o diplomata que conhecia antes de cada encontro com o responsável do Ministério para a Segurança do Estado a quem passava informações.
A frustração de quem redigia os relatórios ia crescendo: “Ainda não se convenceu o informador a ter contactos com outros responsáveis”; “Ele não mostra iniciativa para se encontrar com portugueses na embaixada”; “Tem potencial para se tornar mais valioso”.
Os primeiros encontros foram num miradouro, mas tiveram de ser alterados para um local a que deram o nome de código “Seerose”. Chegaram a oferecer-lhe uma garrafa de cognac como recompensa pelo seu trabalho como informador. Mas em 1983 o contacto foi interrompido, por ele ter poucas possibilidades operativas, muitas obrigações no trabalho e problemas de saúde.
A outra portuguesa escolheu o nome de código “Bárbara”.Era uma jovem estudante comunista e a Stasi escreveu um “Relatório sobre o recrutamento bem sucedido de uma informadora”. Foram combinadas cinco regras com a candidata:
- Os encontros futuros não decorreriam em espaços públicos
- A candidata compromete-se a ser honesta e rigorosa a trabalhar em conjunto com o Ministério para a Segurança do Estado e manterá sempre segredo
- Do lado da candidata e dos colegas membros da Stasi, está a ser combinado um encontro regular de 4 em 4 semanas
- A candidata vai trabalhar de forma contínua em informações sobre a embaixada portuguesa e os seus responsáveis. (…) Vai entrar em contacto com portugueses embaixada. Adicionalmente, a candidata vai ser usada para obter informação de pessoas interessantes do seu círculo de amizades
- Escolheu o nome de código Barbara para trabalhar connosco”.
Foi também traçado um plano para “Bárbara” receber “treino político-ideológico” para os problemas contemporâneos da política externa entre a RDA e Portugal, e também “treino adicional” para poder trabalhar oficialmente com o Ministério para a Segurança do Estado. Combinaram também traçar “um plano de vigilância”, no qual envolveriam outros três informadores, incluindo “Rita” e “Jose”.
A maior parte dos documentos mostra a relutância de “Bárbara” em colaborar, mas a Stasi argumentava que era necessário ter um instrumento como esta polícia política num estado socialista “para proteger as conquistas do socialismo contra qualquer meio de ataque à classe operária”. E que ela também tinha o “dever internacional de proteger o povo português face aos ataques do imperialismo e dos seus serviços secretos”. Concordaram que ela não enviaria relatórios por escrito, para não ficar vinculada a este papel para o resto da vida.
No seu ficheiro há um recibo assinado “Barbara”, segundo o qual terá recebido 250 marcos em Dezembro de 1978. Há relatos de encontros com o pessoal da Stasi num carro, avaliações psicológicas (ex: “Responde às perguntas sem duvidar, sem pensar muito, pode assumir-se que respondeu de forma honesta”), palavras de código para os pontos de encontro, e descrições da forma como se relacionava com alguns diplomatas portugueses: “Tratam-se por tu. E trocam beijos. O contacto com x está ao nível da amizade.”
A informadora deixou a RDA no início dos anos 80, pelo que os encontros terminaram aí e o seu processo foi fechado no arquivo secreto. Quase 40 anos depois, o Observador estabeleceu contacto com “Bárbara”, que ficou bastante incomodada. Disse que na altura nem sabia que estava a lidar com a Stasi, que começou por fazer pequenos trabalhos de tradução e só depois percebeu que afinal estavam era interessados em informações sobre os portugueses da sua rede de contactos. Garante que nunca teve estrutura psicológica nem interesse em ser espia. E dá a entender que terá sido chantageada, mas prefere não falar mais sobre este assunto.
Entre os outros informadores identificados, sobressai uma mulher alemã que usou o nome de código “Anne” e que foi funcionária da embaixada portuguesa. Recebeu 350 marcos e algumas lembranças para a compensar pelo seu trabalho. Também rejeitou enviar notas escritas, para que esses papéis não viessem a ser usados contra ela no futuro.
“Bernard” era o nome de código de outro informador alemão que trabalhou na embaixada. Dava informações sobre o aparecimento de um carro novo no edifício, os jornais recebidos na representação diplomática, ou a extensão dos telegramas que chegavam de Portugal, que chegaram a perfazer 2 metros. Queixava-se de alguma desorganização, devido à falta de uma empregada de limpeza.
“Egon” foi recrutado por estar a fazer um doutoramento em literatura portuguesa. O Ministério para a Segurança do Estado instruiu-o para pedir ajuda à embaixada para encontrar obras literárias portuguesas e assim estabelecer contacto com os diplomatas portugueses.
Este cerco permanente ao pessoal da embaixada permitia à Stasi vigiar as suas movimentações mas também saber com algum grau de detalhe o que pensavam e o que comunicavam ao governo português. Por exemplo, na sequência do XI congresso do SED, o Partido Socialista Unificado da Alemanha (que controlava o regime), o embaixador português informou o ministro dos Negócios Estrangeiros que via o poder do secretário-geral Erich Honecker a diminuir e admitia como possível uma mudança na liderança.
Nos anos 80, emergiu uma nova informadora infiltrada na embaixada, “Rita”, que chegou a rivalizar com “Eva” na quantidade e qualidade dos relatórios que enviava. Foi “Rita” que soube de um telegrama secreto e reservado enviado pelo MNE português em 1984, segundo o qual, apesar da Guerra Fria, os EUA estavam interessados em desenvolver relações económicas com países socialistas, incluindo a RDA. E Portugal devia ser um aliado dos americanos nessa estratégia.
“Rita” também reportou que o embaixador Lopes, em 1985, estava contra a visita do ministro dos Negócios Estrangeiros português à RDA por entender que a RDA não iria cumprir o que fosse acordado quanto às relações bilaterais.
E em 1986 foi novamente “Rita” que alertou a Stasi que o ministro dos Negócios Estrangeiros português (Pedro Pires de Miranda, no I Governo de Cavaco Silva) tinha aconselhado a embaixada a passar a conceder visto de apenas 4 dias, não renováveis, para os portadores de correio diplomático da RDA. E teriam de ser pedidos com 15 dias de antecedência.
Em Junho do mesmo ano, deu conta da intenção do embaixador Coelho Lopes de apertar o controlo sobre os cidadãos portugueses na RDA, tendo pedido fotocópias dos documentos de todos eles e informações sobre deslocações ao estrangeiro. Em 1980 havia 22 estudantes portugueses no país e mais 116 portugueses por outros motivos (além do pessoal da embaixada). A Stasi desconfiou que o objectivo era cruzar essas informações com os serviços secretos americanos ou portugueses, para melhor monitorizar eventuais passos suspeitos fora da Alemanha de Leste.
As visitas de portugueses também eram fortemente vigiadas. Em dezembro de 1979, uma delegação portuguesa que se deslocou a Berlim para negociações com o Governo da RDA ficou alojada no Interhotel “Metropol”. No quarto 936, a empregada de limpeza encontrou 20 páginas de documentos relacionados com as negociações, com notas preparatórias, que foram entregues à Stasi.
Álvaro Cunhal, líder comunista, foi recebido nas suas várias visitas à RDA por Erich Honecker, o secretário-geral do SED (Partido Socialista Unificado da Alemanha). Apesar dessa deferência, a Stasi também observava todas as visitas e anotava-as num relatório, mesmo as partes desinteressantes: “O dia continuou sem mais eventos de especial”.
Os quatro agentes infiltrados da Stasi em Portugal
Não foram localizados no arquivo da Stasi relatórios de informadores que estivessem em Portugal, mas isso não quer dizer que não tenham existido. Segundo um responsável pelo arquivo, quase todos os registos da antiga secção de espionagem no estrangeiro desapareceram.
Mesmo assim, um mero cruzamento entre a lista de pessoal diplomático da RDA acreditado em Lisboa com o arquivo da Stasi permite encontrar pelo menos quatro agentes infiltrados, que formalmente desempenhariam as funções de segundo secretário ou adido, mas na prática poderiam continuar a trabalhar para a polícia política do seu país. Tinham os nomes de código “Brenner”, “Jensen”, “Boden” e “Jochen”. Este último nome de código pertencia a Julian Hollender, que era informador da Stasi e se tornou o embaixador da RDA em Portugal a partir de 1985.
O muro de Berlim caiu em 1989, mas Portugal ainda seria cenário de um acontecimento relevante relacionado com a polícia política da Alemanha de Leste. O coronel Rainer Wiegand, da direcção de contraespionagem da Stasi, que estava em comunicação constante com o KGB, recrutou vários trabalhadores portugueses para projectos de construção em Berlim, mas a seguir à queda do muro, foi um dos primeiros a desertar e a passar segredos aos serviços secretos internacionais.
Foi graças a um destes interrogatórios que foram presos os terroristas líbios responsáveis pelo atentado numa discoteca de Berlim, em 1986. A 17 de Junho de 1996, pouco antes de ser chamado a depor em tribunal neste processo, Rainer Wiegand sofreu um acidente de carro em Portugal, segundo o livro “Stasi: The Untold Story Of The East German Secret Police”, de John O. Koehler. Estava em viagem de negócios com a esposa e há três versões diferentes sobre o acidente. Os seus bens pessoais nunca apareceram. As autoridades judiciais e os serviços de espionagem alemãs suspeitaram que ele tenha sido assassinado.
Pedro Jorge Castro – Observador
Um almoço com Pedro Passos Coelho.
Achei Pedro Passos Coelho um homem provavelmente justo e evidentemente decente. Mesmo as pessoas que obviamente despreza são por ele desprezadas com decência, e ridicularizadas com adjectivos justos.
Na quinta-feira, almocei com Pedro Passos Coelho. Nunca tinha falado com ele, o que talvez seja inacreditável para os avençados do PS. Os avençados do PS, que recebem favores ou salário para difamar terceiros, não compreendem que se elogie, estime ou admire um político apenas porque o julgamos merecedor do elogio, da estima ou da admiração. Há muito que, com ocasionais e no fundo ligeiras ressalvas, Pedro Passos Coelho me merece tudo isso, caso raríssimo numa pessoa do seu ofício. Claro que Pedro Passos Coelho dispensa os meus encómios, já que as suas virtudes foram e continuam a ser melhor exaltadas pela intensidade do ódio, ou medo, que lhe dedicam e pelo carácter dos que exibem esse ódio. Ou esse medo. No desolador meio da política, e no miserável meio da política nacional, Pedro Passos Coelho não é um homem comum.
Pedro Passos Coelho pareceu-me um homem comum, embora muito mais educado e muito mais sereno e muito mais resistente do que os homens comuns. Durante anos, os anos em que governou, aconteceu-me imaginar o modo como ele sentiria a fúria organizada e injusta que lhe dedicavam. Após duas ou três horas de conversa, sou capaz de apostar numa resignação suave e, logo a seguir, na indiferença. Estas coisas parecem estranhas à época em que um primeiro-ministro reage às críticas de transeuntes oferecendo-lhes porrada.
Até sob padrões menos radicalmente boçais, Pedro Passos Coelho é diferente: quando alguns dos portugueses lhe confiaram um país em ruínas, e alguns dos portugueses restantes fizeram o possível por manter as condições que determinaram as ruínas, Pedro Passos Coelho fez o impossível e, simples e genuinamente, não ligou aos insultos e às ameaças. Entre sucessivas sabotagens, seguiu o caminho que entendeu adequado à salvação de um pardieiro que não agradece salvamentos. Das vezes em que hesitou no caminho, ou em que mudou de direcção, ou em que falhou claramente, nenhuma terá sido por receio dos bonecos amestrados que berravam a “Grândola” onde calhava.
Sempre suspeitei e agora estou certo de que Pedro Passos Coelho possui o arcaboiço – ou o dom – necessário para conviver em sincera paz com a impopularidade, ainda que uma impopularidade fabricada. Em democracia, e para cúmulo uma democracia minada contra ele, não é uma proeza insignificante: é a matéria de que se compõem os estadistas a sério, por cá, e não só por cá, uma espécie próxima da extinção. Com ele, o exercício do poder não se confunde com a troca de cuecas na praia ou com visitas programadas a reboque do sentimentalismo canalha. Além disso, ao contrário de Sá Carneiro, que conheci em criança, Pedro Passos Coelho não transmite “carisma”. Ao contrário de Soares e Cavaco, que entrevistei há séculos, Pedro Passos Coelho não emana sobranceria nem rigidez, respectivamente. Ao contrário de quase todos os outros, Pedro Passos Coelho não inspira desconfiança, repulsa, depressão ou vergonha. O que se sente em Pedro Passos Coelho é calma.
Num dos erros mais espectaculares da minha infalível carreira de cronista, a princípio não tive qualquer esperança em Pedro Passos Coelho. Comecei o almoço por aí, pela asneira de ter tomado a calma, e a paciência e a polidez dele por tolerância para com os desastres do “eng.” Sócrates. O tempo deu-lhe razão e embaraçou-me devidamente. Também é verdade que a sua paciência com o “eng.” Sócrates não foi infinita, mas essa nem um santo a teria. Pedro Passos Coelho não é um santo, ou um asceta. Achei-o um sujeito com graça, que conta histórias com invulgar clareza e cuja técnica de demolir adversários implica apartes subtis e venenosos, embalados por um sorriso discreto. Achei-o, igualmente, um sujeito sem pingo de rancor. Mesmo as pessoas que obviamente despreza são por ele desprezadas com decência, e ridicularizadas com adjectivos justos. Achei Pedro Passos Coelho um homem provavelmente justo e evidentemente decente.
É plausível, se formos optimistas, que Pedro Passos Coelho não seja o único homem justo e decente da política nacional. É, sem dúvida, o único com estatuto suficiente para devolver um simulacro de civilidade a um regime afundado por brutos ou salteadores (isto se não acumularem). Não é uma mera opinião: é um facto atestado pelo ressentimento que desperta entre os pares que, hoje, claramente não tem. Na política e nas suas metástases, consegue-se criar uma escala da pulhice em que o grau aumenta de forma directamente proporcional à aversão a Pedro Passos Coelho. Sucede que ele dispensa a aversão dos pulhas para se distinguir.
Não lhe perguntei se tencionava regressar (e se perguntasse não diria aqui a resposta). Não sei se a progressiva degradação da nossa vida pública permitirá sequer o seu regresso. Com azar, imenso azar, a dignidade de Pedro Passos Coelho será um dia lembrada enquanto o último, e invulgar, vestígio de um mundo que entretanto se afundou. Aliás, está a afundar-se.
Alberto Gonçalves - Colunista do Observador
quinta-feira, 7 de novembro de 2019
A intolerância dos “tolerantes”
Foi uma vergonha a virulência dos ataques à volta do artigo de opinião de um miúdo de 17 anos. Mas foi também um sinal de alarme: o espaço público está doente, mais intolerante e muito menos livre.
Algo está mal no espaço público quando este fica preenchido por discussões à volta de um artigo de opinião de um miúdo de 17 anos. E algo está ainda pior quando, a propósito desse artigo de opinião, o rapaz de 17 anos que o escreveu se vê alvo de sucessivas tentativas de humilhação, chacota, difamações (a si e à sua família), agressões verbais e bullying nas redes sociais. Foi o que aconteceu a Manuel Bourbon Ribeiro que, numa carta aberta ao país, partilhou a sua opinião sobre os desafios sociais e políticos do momento. Problema? É loiro, tem dois apelidos, parece um “beto” e defendeu o que, no jargão político, se chamaria de “visão conservadora” – algo que, no mundo enviesado do comentário político e das redes sociais, o faz ascender a caricatura da direita conservadora, uma heresia punível com ódio e apedrejamento virtual. Assim, sem perceber como, um miúdo de 17 anos pousou os dois pés num combate político radicalizado – e foi convertido em saco de pancada, não só por “anónimos” mas também por políticos, jornalistas ou humoristas.
Não creio que valha a pena discutir o conteúdo do artigo de opinião em causa. Por maior maturidade que tenha para a sua idade, um artigo de um miúdo de 17 anos estará inevitavelmente repleto de certezas, de generalizações, de frases feitas e de uma certa ingenuidade – e, por isso, acertará numas coisas e errará noutras (faz parte e é mesmo assim). Do mesmo modo, seria contraproducente rebater as violentas acusações de que o autor e a sua família foram alvo – e eu, que até sou amigo da família, sei o quão absurdo foi o teor desses ataques. Ora, pondo tudo isso de parte, o episódio tem algo na sua raiz que justifica uma reflexão sobre o estado do nosso espaço público: a discordância de opinião (e logo com a de um miúdo de 17 anos) justifica o que aconteceu – achincalhamento, agressões verbais, ostracização social? Obviamente que não. Mas, infelizmente, este caso tem cada vez menos algo de especial: o bullying virtual e a agressividade vigente nas redes sociais são a nova realidade, seja no dia-a-dia dos mais novos ou no próprio debate político.
Eis, portanto, o contributo do artigo de Manuel Bourbon Ribeiro. Fazer-nos constatar (novamente) que o espaço público está a ser corroído pelo mau uso das redes sociais, onde as discussões e trocas de opinião foram substituídas por intolerância à diferença e por pessoalização dos ataques. Lembrar-nos do perigo do desaparecimento do diálogo, na medida em que esse vazio abala o pressuposto de ter na discussão e na argumentação os instrumentos nobres para a obtenção das melhores soluções para a comunidade – é, de resto, precisamente essa a vocação de um parlamento: representar as várias visões presentes numa sociedade e pô-las em diálogo. Mostrar que uma sociedade assim, envenenada pelo tribalismo identitário, se fragmenta em grupos radicalizados onde o número faz a força das tiranias de uns que oprimem a liberdade de outros. E, por fim, revelar que esta intolerância tem origem, frequentemente, nos grupos sociais que se dizem mais “tolerantes” mas que, na prática, se alimentam da intimidação e do silenciamento daqueles que de si discordam. Repare-se: mais do que ao conteúdo do artigo, as críticas foram apontadas ao autor – ao seu nome, ao seu aspecto, à sua condição social, ao seu alegado privilégio – e vieram precisamente dos que, à esquerda e em nome de maior justiça social, censuram a perseguição das minorias sociais, rejeitam as avaliações baseadas em preconceitos sociais e pretendem abolir o predomínio da classe na ascensão social. Contra este miúdo de 17 anos, foi tudo isso que fizeram: a mais odiosa rejeição do “outro” surgiu destes “tolerantes”.
Houve um tempo (e não foi assim há tanto tempo) em que, argumentos trocados, se procuravam pontos comuns ou, no limite, acordava-se em discordar. Não é esse o ar deste novo tempo dominado pela imediatez das redes sociais. Já não se ouve o que os outros dizem, fala-se por cima. Já não se argumenta, ataca-se pessoalmente o adversário. Já não se recorre a factos, especula-se através do preconceito. Já não se forjam entendimentos, queimam-se pontes. Já não se formam debates, geram-se fóruns de humilhação. Já não se faz do discurso um nobre instrumento democrático, lançam-se acusações. Eis um espaço público propício à mentira e desinteressado da verdade, que vai aceleradamente corroendo os pilares de uma sociedade livre.
Portanto, após os milhares de cliques, leituras e partilhas do artigo, o que mais importa reter é isto. Sim, foi uma vergonha lamentável a virulência dos ataques à volta do artigo de opinião de um miúdo de 17 anos – ainda mais quando esses ataques foram personalizados no rapaz e vieram de políticos e jornalistas, pessoas que na sua vida profissional têm o dever de cuidar do debate público. Mas foi também um retracto do nosso tempo e um sinal de alarme que faríamos bem em escutar: o espaço público está doente, mais intolerante e muito menos livre.
Alexandre Homem Cristo
Para que serve a escola?
A escola não é uma indústria. Considerando a forma como as crianças pensam, não é justo para a escola que se crie a ideia que, hoje, se aprende cada vez mais cedo, mais depressa e… melhor.
Todos concordamos que a escola se transformou numa “indústria” e parece assumir-se como uma “linha de montagem” de “produtos normalizados” ou de “jovens tecnocratas de sucesso”. Mas ninguém parece exigir que se pergunte o que é que queremos das crianças e para que serve a escola*. E até que ponto, ao funcionar assim, ela não estará a comprometer competências e recursos. E não estraga, por vezes, as crianças. Mais do que devia.
Todos concordamos que — seja por causa dos rankings, dos indicadores internacionais de sucesso educativo, dos quadros de honra, de mérito, de excelência ou de valor — a escola se transformou numa “feira de vaidades”. Onde os melhores alunos merecem mais cuidados (na forma como se organizam as turmas, se escolhem os professores ou se acarinham desempenhos) que os alunos com “necessidades educativas especiais”. Mas ninguém parece ter a coragem de questionar as equipas de explicadores a trabalhar para as notas das crianças, e os quadros de honra e os rankings dos exames como elementos de um marketing de consumo rápido que limita a escola, mais do que a favorece. Enquanto isso, fala-se na atenção que as retenções devem merecer e fica claro que elas deviam deixar de existir. Por mais que não se esclareça como. E por mais que, desde há muito, a formação dos professores não seja um preocupação da própria escola. E que os serviços de psicologia não correspondam, na opinião dos pais e dos professores*, aquilo que eles deviam ser.
Toda concordamos que as escolas têm, hoje, mais autonomia. Mas ninguém parece falar da forma como as metas curriculares, os programas e os conteúdos e a forma como a escola se burocratizou não poderão representar, no seu conjunto, uma forma de dar a autonomia, como uma mão, e de a tirar, com a outra.
Todos concordamos que as crianças passam tempo demais na escola* e tempo demais na sala de aula. Mas, quando confrontados com isso, os pais consideram que o tempo em que as crianças estão na escola adequado*. A desculpa passa por se considerar a escola um sítio seguro e que essa é uma alternativa equilibrada aos riscos das crianças ficarem na rua. Por mais que o espaço das escolas não estique e elas não tenham recreios adequados, pessoal auxiliar em número aceitável, e muitos utensílios desportivos estejam enferrujados, com falta de condições e a fazer parte da “arqueologia escolar”. Mas ninguém parece querer falar da forma como precisamos de encontrar alternativas para que não se exija à escola aquilo que são compromissos dos pais e aquilo que deviam ser os compromissos do país para com os cidadãos que, trabalhando, não desistem de ser pais.
Todos concordamos que as crianças trabalham demais. Que, regra geral — entre aulas, actividades extra-curriculares, ateliers de tempos livres e explicações — trabalham das 8 às 8. E que, na maioria das vezes, têm recreios de 5 ou de 10 minutos. Quando não ficam, de castigo, muitas vezes, sem eles. Mas, ainda assim, 90% dos professores passa trabalhos de casa várias vezes por semana ou todos os dias*. E pais e professores entendam — mesmo com estas condicionantes — que eles são um complemento importante ao sucesso da aprendizagem*. Mas ninguém parece sentir necessidade que se defina uma linha que separa a “escola como direito indispensável” da “escola como trabalho infantil”.
Todos concordamos que a percentagem de alunos com explicações no ensino secundário (60%)* obrigaria a escola a perguntar se estará a cumprir a sua missão. E obrigaria a perguntar-se se as explicações servirão para colmatar lacunas educativas ou para “alavancar” resultados escolares. Mas ninguém parece perguntar se a escola, esbate ou acentua desigualdades sociais e desigualdades de oportunidades. E era urgente que isso se fizesse.
Todos concordamos que a escola se preocupa mais com as notas exames do que com as aprendizagens*. E que, ao contrário do que devia ser, considera as notas nos exames como a sua “imagem de marca”. E parece ir aceitando, ao contrário do que devia, que a escolaridade obrigatória serve para entrar na universidade. Mas ninguém parece preocupar-se com aquilo que se passa com os estudantes depois de lá entrarem. Com a taxa de reprovação nos primeiros anos dos seus cursos. Com as muitas mudanças de cursos e com a percentagem inquietante de abandono de estudos. E com a verdade das taxas de empregabilidade e com o sucesso formativo que a universidade lhes oferece.
Aquilo que, hoje, se estranha não é tanto que a escola ainda conheça mal os nossos filhos e os imagine a aprender todos “do zero”, à mesma velocidade e da mesma maneira. É que ela se deslumbre com os tablets e com as novas tecnologias, e não se questione acerca da função do contar pelos dedos, do desenhar as letras e dos livros físicos como experiências materiais indispensáveis que facilitam o conhecimento e a capacidade de aprender.
Aquilo que, hoje, se estranha não é tanto que a missão da escola vista pelos pais e pelos professores seja diferente*. Afinal, promover o conhecimento — como os pais acham que ela, sobretudo, serve — e a formação cívica — como privilegiam os professores para a escola — não serão pontos de vista tão incompatíveis e tão inconciliáveis. Aquilo que se estranha é que não acordem sobre a missão da escola. E, em função disso, que não se acertem acerca do tempo mínimo indispensável para que as crianças estejam na escola com o propósito de aprenderem; sobre o tempo razoável de uma aula expositiva; sobre o tempo de um recreio para que ele promova o sucesso educativo; do número das actividades extra-curriculares para que elas representem um ganho para a aprendizagem e não a comprometam; sobre a “linha” que separa a sensatez de uma explicação e a sua “toxicidade”; e sobre as formas como o direito à escola e o direito à infância não são inconciliáveis. Sendo certo que, para que as crianças cresçam amigas da escola, precisam de brincar, livremente, duas horas; todos os dias.
A escola não é uma indústria. Não pode ser. Ao contrário daquilo que vamos aceitando, de forma passiva, todos precisamos de tempo — de muito tempo! — para crescer. Considerando a forma como as crianças pensam, não é justo para a escola que se crie a ideia que, hoje, se aprende cada vez mais cedo, mais depressa e… melhor. Mesmo quando as crianças não reúnem os recursos que as leve a compreender aquilo que reproduzem e que repetem. E quando continuamos a insistir que elas, hoje, são mais inteligentes e mais precoces! Fazer da escola um lugar onde se ensina todas as crianças a serem singulares, e a saberem, cada uma por si, pensar pela sua cabeça será, ontem como hoje, o desafio da escola. Ensinando-as a aprender juntas e umas com as outras. A conhecer, a pensar, a discorrer em abstracto, a simbolizar, a escrever e a falar. Logo, de cada vez que ela produz “crianças de aviário”, devia “fechar”. Para reflexão e para balanço. E, a bem da verdade, para se reinventar. Para o bem de todos.
* Estudo da Universidade Católica / ESCOLA AMIGA DA CRIANÇA para a Leya/Educação e a CONFAP sobre A MISSÃO DA ESCOLA. Confira em escolaamiga.pt
Eduardo Sá
terça-feira, 5 de novembro de 2019
Fábula muito actual.
"Então foi assim que tudo aconteceu:
Um dia fui jogar golfe e quando estava a escolher o taco, notei que havia uma rã perto de mim.
Para meu espanto a rã disse-me:
- Croc-croc! Taco de ferro, número nove!
Eu achei graça e resolvi provar que a rã estava errada.
Peguei no taco que ela sugeriu e bati na bola. Para minha surpresa a bola parou a um metro do buraco!
- Boa!! - gritei eu, virando-me para a rã - Se calhar és a minha rã da sorte!
E resolvi levá-la comigo até ao próximo buraco.
- O que é que achas, rã da sorte?
- Croc-croc! Taco de madeira, número três!
Peguei no taco 3 e bati. Bum! Directa ao buraco!
Dali em diante, acertei todas as tacadas e acabei por fazer a melhor pontuação da minha vida! Resolvi levar a rã para casa mas no caminho, ela voltou a falar:
- Croc-croc! Las Vegas !
Nem hesitei! Fui directo para o aeroporto, comprei um bilhete para Las Vegas e nem avisei ninguém!
Chegados a Las Vegas a rã disse:
- Croc-croc! Casino, roleta!
Evidentemente obedeci à rã que logo sugeriu:
- Croc-croc! 10 mil dólares, preto 21, três vezes seguidas.
Era uma loucura fazer aquela aposta, mas não hesitei.A rã já tinha ganho toda a credibilidade.
Coloquei todas as minhas fichas no 21 três vezes seguidas e ganhei milhões!
Peguei naquela massa toda e fui para a recepção do hotel, onde exigi uma suite presidencial.
Tirei a rã do bolso, coloquei-a sobre os lençóis de cetim e disse:
- Rãzinha querida! Não sei como te pagar todos estes favores! Fizeste-me ganhar tanto dinheiro que vou ser-te grato para sempre!
E a rã:
- Croc-croc! Dê-me um beijo! Mas tem que ser na boca!
Tive um pouco de nojo, mas pensei em tudo o que ela me tinha dado e acabei por lhe dar o beijo na boca!
No momento em que a beijei, a rã transformou-se numa linda ninfa de 21 anos, completamente nua, sentada na minha cama que me foi empurrando, devagarinho, para a banheira de espuma. Mas não vou contar agora mais pormenores sobre esta parte…
E juro que foi assim que consegui toda a minha fortuna!”
Declarações de José Sócrates ao Juiz de Instrução no Processo Marquês.
Nevou em Beja!
Texto de um autor desconhecido que espero vir a poder identificar de tão bem que ele retracta a sociedade que temos hoje. Tal e qual.
Para reflectir.
8:00 horas : fiz um boneco de neve…
8:15 Uma feminista passou e perguntou-me porque não fiz uma mulher de neve.
8:20 Fiz uma mulher de neve…
8:25 A minha vizinha feminista reclamou pelo perfil voluptuoso da mulher de neve, dizendo que ela ofende as mulheres da em todos os lugares.
8:30 O casal gay que mora nas proximidades, teve um ataque de raiva e protestou porque poderiam ter sido dois homens de neve.
8:35 Um transgénero da outra rua perguntou-me porque não fazia um boneco com partes removíveis.
8:40 Os vegans no final da rua queixaram-se do nariz de cenoura, já que os vegetais são comida e não bonecos para decorar.
8:45 O cavalheiro muçulmano do outro lado da rua exige aos berros que a mulher da neve use uma burca.
8:50 A polícia chega dizendo que há uma denúncia anónima contra mim, de alguém que foi ofendido pelo meu racismo e discriminação, porque "os bonecos" são totalmente brancos.
8:55 A vizinha feminista reclamou novamente que a vassoura da mulher da neve deveria ser removida porque ela representa as mulheres num papel doméstico de submissão.
9:00 Um procurador chegou e ameaçou processar-me se eu não pedir desculpas públicas, pelo maldito boneco de neve.
9:05 Uma equipa de jornalismo da TV apareceu. Perguntaram-me se sabia a diferença entre bonecos de neve e mulheres de neve. Respondi "as bolas de neve" e agora chamam-me sexista.
9:10 Estou no noticiário como um suspeito, terrorista, racista, delinquente, com tendências homofóbicas, determinado a causar problemas durante o mau tempo. Estou a passar por tudo isso por causa dos malditos bonecos de neve!
9:15 Quem mandou fazer a merda dos bonecos de neve ?... Estão a perguntar se tenho um cúmplice ou se alguma organização me incentivou a fazer os bonecos, nas redes sociais.
9:20 Os manifestantes da extrema-esquerda e da extrema-direita, ofendidos por tudo, estão a marchar pelas ruas exigindo que me decapitem.
9:25 Os comunistas marcham em frente à minha casa acusando-me de ser neonazi.
9:30 As feministas insultam-me e escrevem na fachada da minha casa a palavra “machista”.
9:45 Organizações ambientalistas acusam-me de poluir a neve.
Moral da história :
Não há ! É apenas o mundo em que vivemos hoje - e vai piorar.
O que foi aqui narrado pode ocorrer, e muitas destas coisas já estão acontecendo.
De tudo isso, a coisa mais difícil de acontecer é nevar em Beja."
Quando se gera legitima desconfiança nos cidadãos abrem-se (escancaradas)portas aos "Bolsonaros"....
António Lobo Antunes
Agora sol na rua a fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com a vida.Passa uma senhora de saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda compramos coisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento.Isto é internacional, meu caro, internacional e nós, estúpidos, culpamos logo os governos.
Quem nos dá este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem, a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos.
Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes generosos, que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho não estendem a mão à caridade.O senhor Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade as vezes é hereditário, dúzias deles.Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam gratos, sejam honestos, reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão.
O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros. E nós, por pura maldade, teimamos em não entender. Claro que há povos ainda piores do que o nosso: os islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em tribunal.
Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de respeito.
Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto, com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a ver:- Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro
- Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima
- Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo
que é o mínimo que se pode fazer por esses Padres Américos, pela nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores, que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no coração. E melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos dos banquetes de bem-aventuranças da Eternidade.As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas passaremos sem dificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente. Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente, indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos.Vale e Azevedo para os Jerónimos, já!
Loureiro para o Panteão já!
Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já!
Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia.
Para a Batalha. Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros de História nos enganaram. Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito.
Estátuas equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão presos como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis.
Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair.
Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar do D.José que, aliás, era um pateta. Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tirano. Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos. Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por favor deixem de pecar.
Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso. Agradeçam este solzinho.
Agradeçam a Linha Branca.
Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar.
Abaixo o Bem-Estar.Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval.Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes, cortejos, berros. Proíbam-se os lamentos injustos.
Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa.
Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os Ex-ministros a tomarem conta disto.
Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar?O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os processos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e beijando-nos uns aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa obrigação, felizes.António Lobo Antunes
A Terra Inabitável.
Como vão ser os incêndios no pós-aquecimento global da Terra.
A Terra Inabitável, do jornalista norte-americano David Wallace-Wells, chega hoje às livrarias numa tradução para português da editora Lua de Papel.
E o que é que vem aí? Muito mais fogo, e com muito mais frequência, e a queimar muito mais terra.Ikea planeia nova loja na margem Sul, mas ainda pensa em Lisboa.
Grupo de mobiliário quer ter “tão cedo quanto possível” uma loja na margem Sul do Tejo. Terrenos que a Fidelidade comprou em Entrecampos ainda podem vir a ter a marca Ikea numa unidade.
“Acredito que dentro de dez anos podemos perfeitamente duplicar o volume de negócios [em Portugal] e alcançar mil milhões de euros” Helen Duphorn Directora-geral da Ikea Portugal
“Estamos interessados em explorar possibilidades para pontos de contacto de menor dimensão em Lisboa” Helen Duphorn Directora-geral da Ikea Portugal
números:
478 milhões de euros foi o valor das vendas realizadas pela Ikea Portugal, do grupo Ingka, no último ano fiscal, terminado em Agosto, uma subida de 4,5%
100% é a ambição de crescimento, em vendas, para a próxima década da Ikea em Portugal, atingindo mil milhões de euros, na estimativa de Helen Duphorn
7000 é o número médio de refeições diárias que a Ikea serve nas suas cinco lojas em Portugal. No último ano, foram servidos 13 milhões de almôndegas
69 GWh foi a electricidade gerada por energia renovável (parque eólico de Pisco) pela Ingka em Portugal, no último ano, equivalente a fornecer 19.017 lares
0% é o valor da diferença salarial entre mulheres e homens com as mesmas funções na empresa. Na gestão, a distribuição por género tem que ser 50%-50%
PERGUNTAS E RESPOSTAS a Helen Duphorn Directora-geral da Ikea Portugal
Na cidade de Lisboa — não na área metropolitana — não têm nenhuma loja, porque ela situa-se na Amadora. Houve, recentemente, uma cimeira em Copenhaga, em que o presidente da Câmara de Lisboa se encontrou com representantes do grupo Ikea. Estão a debater abrir uma loja na cidade de Lisboa? E tem essa possibilidade alguma coisa que ver com os terrenos de Entrecampos? Porque a Fidelidade comprou os terrenos, mas é desconhecido se têm algum acordo convosco para lá ter uma unidade Ikea menor.
- Não temos nenhum acordo [com a Fidelidade]. Estamos interessados em explorar possibilidades para pontos de contacto de menor dimensão em Lisboa. Não discutimos isso recentemente, especificamente. Pelo menos, não sob um tema específico com o gabinete do presidente da câmara. Mas tentamos manter um bom fluxo de comunicação com o gabinete do presidente da Câmara [de Lisboa] e temos com eles relações muito boas. Sobre o local que menciona, não estou a excluir que possa ser interessante para nós ter algum tipo…
Ainda?
- Sim, não uma loja Ikea necessariamente, mas algum tipo de ponto de contacto. Isto está ainda numa fase muito inicial para nós, porque tem levado algum tempo a materializar o que irá acontecer nesses terrenos. Mas esta é uma localização interessante, claro. Mas há outras localizações igualmente interessantes. Temos também outros tópicos — não só com o presidente da câmara, como com outros parceiros na sociedade: estamos muito entusiasmados com Lisboa ser a Capital Verde Europeia no próximo ano. A Ikea tomou medidas muito significativas para ser energeticamente neutra. O próximo passo é
trabalhar sobre a nossa pegada de carbono. Somos um dos poucos países em todo o mundo Ikea que têm tomado passos significativos no que toca a investimento solar e parques eólicos. Os nossos parques eólicos a norte estão a produzir energia equivalente ao que a Ikea consome em Portugal e Espanha — achamos isso engraçado.
Ao tema da energia em Portugal é dedicado um capítulo no seu relatório anual. É lá mencionado que no último ano fiscal adquiriram um parque eólico – é o do Pisco? O que fazem com a energia?
- Sim, é. Revendemos ao mercado [a energia produzida]. Estamos a produzir muito mais energia renovável do que a que estamos a consumir. Na realidade, cobre o uso médio de 30 lojas Ikea [o grupo tem cinco em Portugal]. E o nosso próximo grande tema é a pegada carbónica, sob diversos aspectos — e veremos como é que podemos apoiar Lisboa a corresponder às expectativas no próximo ano. E avançar. No grupo Ikea, temos um compromisso de avançar no que toca a “last mile services” [entrega] — de serem veículos eléctricos até 2025. E isso é onde nós, como país de retalho, poderemos ter o maior impacto positivo. Estamos há muito tempo a trabalhar na eficiência sustentável da nossa operação. Mas uma grande oportunidade que temos é trabalhar com o transporte em Portugal. O que requer colaboração com parceiros de transporte. Na energia renovável, prevê mais alguns investimentos na energia eólica em Portugal? E na floresta? Na energia eólica não sei, mas não está na agenda neste momento. Não há nenhuma razão pela qual não o faríamos, se fosse adequado e desejado. A Ikea, internamente, está hoje a produzir mais energia renovável do que a que usamos. Penso que não há nenhuma razão por que não o faríamos se houvesse necessidade.
E floresta?
- Sendo muito franca, desconheço.
Porquê fazer uma joint-venture com o Lidl [para ter um supermercado junto da loja Ikea de Loures]?
- Não é uma joint-venture, é uma parceria de negócios. Não estamos a integrá-los na loja. Eles arrendam um espaço e achamos que é bom para ambos e que é prático para os nossos clientes, que podem, claro, comprar nos dois sítios, ao mesmo tempo. É uma boa companhia para termos como inquilino, e vemos que os clientes estão apreciar.
E vêem [a parceria] ser replicada noutras lojas?
- Ainda não temos planos para isso. Mas não há absolutamente nada que nos possa parar — nós temos o espaço, eles têm a vontade. Achámos que era uma boa combinação. Vemos que os clientes circulam entre os dois.
Têm actualmente 2.500 trabalhadores, como é que o número evoluiu no último ano?
- É mais ou menos o mesmo. Com as novas unidades, iremos, claro, empregar mais pessoas. Quer sejam pontos de planificação ou entrega... se conseguirmos abrir uma loja na margem Sul, aí veremos uma subida no número [de trabalhadores em Portugal]. Mas de certeza que iremos empregar mais pessoas com o tempo.
A bandeira da Web Summit
Não vale a pena pensar que uma feira de ideias e ponto de encontro de investidores e criadores é uma qualquer solução mágica para resolver os problemas do empreendedorismo. Mesmo que muitos responsáveis políticos nos tenham tentado dar essa ideia, proclamando a vitória da modernidade debaixo das luzes da Web Summit, a verdade é que as fragilidades intrínsecas do tecido económico nacional continuam a manter esse sonho a voar baixinho. A realidade ainda é mais feita de atrasos e adiamentos, como é simbolicamente o do Hub do Beato, do que de unicórnios cintilantes a conquistar o universo digital. Mesmo que seja compreensível o encantamento e empenho num evento desta dimensão — Paddy Cosgrave salienta em entrevista como isso foi determinante para ficar por cá —, a verdade é que quem aposta na permanência desta montra por mais dez anos tem de ter algum produto para exibir. Mas no “ecossistema” do empreendedorismo nacional continua a faltar a seiva essencial: capital. Sim, é claro que somos pobres, que tivemos cá a troika, que a dívida continua a pesar. Mas é indigesto pensar que, depois do esforço que foi preciso fazer para a resgatar, a banca está tão longe de cumprir o seu papel de animador da economia, emprestando, investindo, arriscando. Como avisava Ricardo Cabral na semana passada, só falta mesmo vê-los, sentados em cima do cofre do dinheiro como o Tio Patinhas, a alterarem a base do seu negócio, da concessão de crédito para a cobrança de comissões. E quando os privados não arriscam, maiores responsabilidades caem sobre o sector público. Num país de bancos amorfos, sem bolsa de valores, sobra o investimento público para fazer diferença e inverter o marasmo. Investimento com políticas e com capital, como, apontava ontem Teresa de Sousa, acontece em França, que, graças à tenacidade de Emmanuel Macron, cresce, enquanto a Alemanha, que se recusa a investir o seu excedente orçamental, definha. Contas certas é bom, mas ter acrescentado Transição Digital ao nome do Ministério da Economia, sem uma política activa de reanimação da economia, é nada. Basta ver o que resta das promessas do “banco de fomento”, a Instituição de Desenvolvimento Financeiro, que é suposto ser investidor de risco do Estado, para perceber que não vale de muito acreditar nas promessas em português que sejam feitas na Web Summit. A revolução digital continua, como se verá por estes dias, mas em Portugal falta quem pegue na bandeira. david.pontes@publico.p