quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Para que serve a escola?

A escola não é uma indústria. Considerando a forma como as crianças pensam, não é justo para a escola que se crie a ideia que, hoje, se aprende cada vez mais cedo, mais depressa e… melhor.

Todos concordamos que a escola se transformou numa “indústria” e parece assumir-se como uma “linha de montagem” de “produtos normalizados” ou de “jovens tecnocratas de sucesso”. Mas ninguém parece exigir que se pergunte o que é que queremos das crianças e para que serve a escola*. E até que ponto, ao funcionar assim, ela não estará a comprometer competências e recursos. E não estraga, por vezes, as crianças. Mais do que devia.

Todos concordamos que — seja por causa dos rankings, dos indicadores internacionais de sucesso educativo, dos quadros de honra, de mérito, de excelência ou de valor — a escola se transformou numa “feira de vaidades”. Onde os melhores alunos merecem mais cuidados (na forma como se organizam as turmas, se escolhem os professores ou se acarinham desempenhos) que os alunos com “necessidades educativas especiais”. Mas ninguém parece ter a coragem de questionar as equipas de explicadores a trabalhar para as notas das crianças, e os quadros de honra e os rankings dos exames como elementos de um marketing de consumo rápido que limita a escola, mais do que a favorece. Enquanto isso, fala-se na atenção que as retenções devem merecer e fica claro que elas deviam deixar de existir. Por mais que não se esclareça como. E por mais que, desde há muito, a formação dos professores não seja um preocupação da própria escola. E que os serviços de psicologia não correspondam, na opinião dos pais e dos professores*, aquilo que eles deviam ser.

Toda concordamos que as escolas têm, hoje, mais autonomia. Mas ninguém parece falar da forma como as metas curriculares, os programas e os conteúdos e a forma como a escola se burocratizou não poderão representar, no seu conjunto, uma forma de dar a autonomia, como uma mão, e de a tirar, com a outra.

Todos concordamos que as crianças passam tempo demais na escola* e tempo demais na sala de aula. Mas, quando confrontados com isso, os pais consideram que o tempo em que as crianças estão na escola adequado*. A desculpa passa por se considerar a escola um sítio seguro e que essa é uma alternativa equilibrada aos riscos das crianças ficarem na rua. Por mais que o espaço das escolas não estique e elas não tenham recreios adequados, pessoal auxiliar em número aceitável, e muitos utensílios desportivos estejam enferrujados, com falta de condições e a fazer parte da “arqueologia escolar”. Mas ninguém parece querer falar da forma como precisamos de encontrar alternativas para que não se exija  à escola aquilo que são compromissos dos pais e aquilo que deviam ser os compromissos do país para com os cidadãos que, trabalhando, não desistem de ser pais.

Todos concordamos que as crianças trabalham demais. Que, regra geral — entre aulas, actividades extra-curriculares, ateliers de tempos livres e explicações — trabalham das 8 às 8. E que, na maioria das vezes, têm recreios de 5 ou de 10 minutos. Quando não ficam, de castigo, muitas vezes, sem eles. Mas, ainda assim, 90% dos professores passa trabalhos de casa várias vezes por semana ou todos os dias*. E pais e professores entendam — mesmo com estas condicionantes — que eles são um complemento importante ao sucesso da aprendizagem*. Mas ninguém parece sentir necessidade que se defina uma linha que separa a “escola como direito indispensável” da “escola como trabalho infantil”.

Todos concordamos que a percentagem de alunos com explicações no ensino secundário (60%)* obrigaria a escola a perguntar se estará a cumprir a sua missão. E obrigaria a perguntar-se se as explicações servirão para colmatar lacunas educativas ou para “alavancar” resultados escolares. Mas ninguém parece  perguntar se a escola, esbate ou acentua desigualdades sociais e desigualdades de oportunidades. E era urgente que isso se fizesse.

Todos concordamos que a escola se preocupa mais com as notas exames do que com as aprendizagens*. E que, ao contrário do que devia ser, considera as notas nos exames como a sua “imagem de marca”. E parece ir aceitando, ao contrário do que devia, que a escolaridade obrigatória serve para entrar na universidade. Mas ninguém parece preocupar-se com aquilo que se passa com os estudantes depois de lá entrarem. Com a taxa de reprovação nos primeiros anos dos seus cursos. Com as muitas mudanças de cursos e com a percentagem inquietante de abandono de estudos. E com a verdade das taxas de empregabilidade e com o sucesso formativo que a universidade lhes oferece.

Aquilo que, hoje, se estranha não é tanto que a escola ainda conheça mal os nossos filhos e os imagine a aprender todos “do zero”, à mesma velocidade e da mesma maneira. É que ela se deslumbre com os tablets e com as novas tecnologias, e não se questione acerca da função do contar pelos dedos, do desenhar as letras e dos livros físicos como experiências materiais indispensáveis que facilitam o conhecimento e a capacidade de aprender.

Aquilo que, hoje, se estranha não é tanto que a missão da escola vista pelos pais e pelos professores seja diferente*. Afinal, promover o conhecimento — como os pais acham que ela, sobretudo, serve — e a formação cívica — como privilegiam os professores para a escola — não serão pontos de vista tão incompatíveis e tão inconciliáveis. Aquilo que se estranha é que não acordem sobre a missão da escola. E, em função disso, que não se acertem acerca do tempo mínimo indispensável para que as crianças estejam na escola com o propósito de aprenderem; sobre o tempo razoável de uma aula expositiva; sobre o tempo de um recreio para que ele promova o sucesso educativo; do número das actividades extra-curriculares para que elas representem um ganho para a aprendizagem e não a comprometam; sobre a “linha” que separa a sensatez de uma explicação e a sua “toxicidade”; e sobre as formas como o direito à escola e o direito à infância não são inconciliáveis. Sendo certo que, para que as crianças cresçam amigas da escola, precisam de brincar, livremente, duas horas; todos os dias.

A escola não é uma indústria. Não pode ser. Ao contrário daquilo que vamos aceitando, de forma passiva, todos precisamos de tempo — de muito tempo! — para crescer. Considerando a forma como as crianças pensam, não é justo para a escola que se crie a ideia que, hoje, se aprende cada vez mais cedo, mais depressa e… melhor. Mesmo quando as crianças não reúnem os recursos que as leve a compreender aquilo que reproduzem e que repetem. E quando continuamos a insistir que elas, hoje, são mais inteligentes e mais precoces! Fazer da escola um lugar onde se ensina todas as crianças a serem singulares, e a saberem, cada uma por si, pensar pela sua cabeça será, ontem como hoje, o desafio da escola. Ensinando-as a aprender juntas e umas com as outras. A conhecer, a pensar, a discorrer em abstracto, a simbolizar, a escrever e a falar. Logo, de cada vez que ela produz “crianças de aviário”, devia “fechar”. Para reflexão e para balanço. E, a bem da verdade, para se reinventar. Para o bem de todos.

* Estudo da Universidade Católica / ESCOLA AMIGA DA CRIANÇA para a Leya/Educação e a CONFAP sobre A MISSÃO DA ESCOLA. Confira em escolaamiga.pt

Eduardo Sá

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