Por: Germano de Sousa
Bastonário da Ordem dos Médicos (1999-2004)
Quando, em fins de 1960, chego a Coimbra para cursar Medicina, já Miguel Torga era um autor consagrado na poesia e literatura portuguesas. Em Janeiro fora proposto para o Prémio Nobel. Confesso que, para o caloiro que eu era, isso pouco me importava. Vindo da pacatez dos meus Açores, estava mais virado para rapidamente me integrar na vida académica da Coimbra “encantada e fantástica” de então. Na que seria a minha República, a Real República dos Corsários das Ilhas, que eu frequentava como se repúblico já fosse, aguardando vaga que se daria no ano seguinte, um dos repúblicos, o Zé Bretão, então terceiranista de Direito, mas, pela intrincada praxe coimbrã, “doutor” com “direitos” sobre os caloiros, pergunta-me com ar catedrático: “Sabe quem é o dr. Adolfo Correia da Rocha?”. Claro que não sabia. O que me valeu um: “A caloiral figura não passa de um ignorante!!!”. Meteu-me nas mãos um livro com o título Cântico do Homem, que vi ser de Miguel Torga, e deu-me um ultimato: “O caloiro tem um dia para decorar o poema Dies Irae. Se o recitar bem, voto pela sua entrada no próximo ano. Senão…” Agarrei-me ao livro e ao poema. No dia seguinte recitava-o de olhos fechados e lera e relera, seduzido, os outros poemas do livro. Naturalmente quis ler e saber mais sobre Torga, ficando a admirá-lo ainda mais quando o soube médico. Em 1967, nas comemorações da abolição da pena de morte em Portugal, o Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra apresentou no Teatro Avenida o Grande Teatro do Mundo de Calderon, encenado pelo argentino Victor Garcia. Eu era o Mundo, um dos personagens fundamentais. No dia do espectáculo acordei quase afónico. Fiquei em pânico. Sem falar não havia peça! Já não sei quem, acalmou-me: “Vai já ali ao Torga, que ajuda sempre nestas ocasiões.” Num ápice cheguei ao Largo da Portagem, subi ao consultório no 1.º andar do edifício que hoje é do Montepio e Miguel Torga, perdão, o dr. Adolfo Rocha, após observação e terapêutica convenientes, garantiu-me que à noite estaria bem. Ciciando, agradeci e quis dizer-lhe da admiração que tinha por ele. Com um sorriso não me deixou continuar: “Só logo à noite é que fala. E boa sorte. Lá estarei a ver-vos. Vai tudo correr bem!” E, tal como o dr. Adolfo Rocha tinha previsto tudo correu pelo melhor. A minha voz e o espectáculo. Voltei a subir ao 1.º andar do edifício do Largo da Portagem muitos, muitos anos depois. É que o laboratório de Patologia Clínica que tenho em Coimbra ocupa o espaço que antes fora de Torga! Coincidências…!
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