A polícia política da Ex-RDA recrutou informadores portugueses, infiltrou secretárias alemãs na embaixada e acusou um diplomata de transportar pessoas na mala do carro. Era mentira mas iam expulsá-lo.
“Havia um amigo com quem eu tinha um caso em Berlim Oriental. Era dentista. Pensei seriamente: como é que vou reagir se ele me pedir para o levar na mala do carro para Berlim Ocidental? Mas nunca ocorreu. Ele nunca chegou a pedir-me isso. Hoje, 40 anos depois, mantemos uma excelente relação. Ele já sabe que eu pensei isso sem nunca lhe ter dito. E ele nunca me pediu porque não quis pôr em risco a amizade comigo”.
Fernando Cesário Nunes de Almeida, adido de imprensa da embaixada de Portugal na RDA (República Democrática Alemã) desde 1974, intérprete, hoje com 70 anos e homossexual assumido, estranhou aquela manhã de 27 de Julho de 1979 em que chegou ao gabinete e a secretária lhe disse que o embaixador tinha sido chamado de urgência ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, com a indicação expressa de não ir com ele. O press-attaché inquietou-se porque era o único funcionário da representação portuguesa que falava alemão, pelo que acompanhava sempre o embaixador nos contactos com o governo da ex-RDA.
Percebeu logo que algo estava errado. Uns dias antes, Portugal tinha expulsado um adido de imprensa da RDA em Lisboa, por estar a incitar manobras subversivas contra a reforma agrária. Pensou que teria sido ele o escolhido pela ditadura comunista para retaliar — uma prática frequente entre diplomacias quando um país declara um cidadão estrangeiro como persona non grata.
E com que pretexto? Achou que talvez usassem um delito menor, com o qual já o tinham confrontado: o transporte de antiguidades e porcelanas da Alemanha de Leste para o lado ocidental, na mala do carro, sem a autorização burocrática oficial. (Ainda hoje tem algumas dessas peças a decorar a sua casa em Berlim, desde uns jarrões de estanho, a cristais e um candeeiro de tecto.)
O recado da secretária da embaixada não lhe soou bem e Fernando reagiu por instinto: “Vou embora daqui para fora. Há confusão, tem a ver com a história de Lisboa ter expulso o diplomata da RDA”.
Fernando-Cesário Nunes de Almeida, adido de imprensa (à esq.), ao lado de Rui Medina, primeiro embaixador de Potugal na RDA em 1975
A falsa acusação de transportar pessoas na mala do carro
Ainda o embaixador português se encontrava a ser recebido pelo ministro, quando Fernando Almeida formalizou um pedido de demissão e se pôs a caminho da fronteira para passar para o lado de Berlim Ocidental. “Sabia que ia ser declarado persona non grata, era muito arriscado esperar para falar com o embaixador”, recorda agora ao Observador. À noite, outro funcionário diplomático, Tadeu Soares, encontrou-se com ele já em Berlim Ocidental: “Tem a certeza que quer deixar a embaixada? Não quer que façamos mais nada?” Fernando Almeida já estava a pensar sair mais menos mês, já tinha acabado os seus estudos de Ciências Políticas e Romanísticas na Alemanha e tinha concorrido a um lugar de tradutor nas Nações Unidas. Não hesitou em deixar o lugar na embaixada e entregou ao colega as placas de matrícula do corpo diplomático.
Sem ele saber, nessa manhã, pelas 11h30, o embaixador português foi confrontado pelo governo da RDA com uma informação segundo a qual Fernando Almeida teria transportado pessoas na mala do carro de Berlim Leste para o lado ocidental. É pelo menos o que consta no documento conservado no arquivo da Stasi (a polícia política da ex-RDA) sobre a reunião entre o chefe do departamento da Europa Ocidental no MNE da Alemanha de Leste (“Comrade Dr. Herbert Plaschke”) e o embaixador Henrique Coelho Lopes. O resumo do encontro foi elaborado pelos alemães, pelo que não é possível indicar exatamente que partes da conversa estão descritas com rigor. Eis as principais linhas:
“O embaixador português foi informado de que o adido de imprensa Almeida, abusando dos seus privilégios de diplomata, tem actuado já há um longo período de forma criminosa contra a RDA e está a planear praticar crimes ainda mais graves”.
“Devido às boas relações entre os dois países, o Ministério dos Negócios Estrangeiros preferia não ter de o declarar persona non grata. Mas espera que Almeida deixe a RDA imediatamente e que sejam devolvidos todos os documentos que o identificam como um diplomata acreditado na RDA”.
“Tenho a certeza de que colegas nossos (diplomatas) da América latina se deixavam aliciar por este tipo de propostas. Nas fronteiras, havia um raio x, e lembro-me que um colega do Egipto foi apanhado com gente na mala do carro."
Fernando Almeida, ex-adido de imprensa que a RDA quis declarar como persona non grata
Segundo o resumo alemão, o embaixador português terá agradecido a não declaração de persona non grata e lamentado o desrespeito de um funcionário da embaixada. Garantiu ainda desconhecer estes incidentes e manifestou esperança de que não perturbassem as relações entre os dois países.
A informação que suportou as alegações contra o diplomata português foi redigida dois dias antes, a 25 de Julho de 1979, e refere que “o Ministério para a Segurança do Estado da RDA encontrou indícios claros de que Fernando Almeida teria transportado um empregado de mesa na mala do seu Mercedes para Berlim Ocidental” e que já teria combinado transportar mais duas mulheres, mãe e filha, a troco de dinheiro, usando o estatuto diplomático que lhe permitia atravessar a fronteira sem ser fiscalizado.
Outra nota nos arquivos da Stasi dá conta de uma conversa sobre o tema entre o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Herbert Krolikowski, e um outro alto funcionário, na qual admitem a hipótese de o embaixador português rejeitar as acusações e combinam que teriam de declarar o adido de imprensa português como persona non grata — mas nesse caso a informação sobre as alegações de tráfico humano deveria ser completada com mais detalhes para ser tornada pública.
Fernando Almeida, ouvido pelo Observador 40 anos depois, não sabia que estas acusações se encontravam no arquivo da Stasi e desmente-as. “Não é verdade. São tudo calúnias. Só pode ter sido uma invenção para me colocarem numa situação difícil”, garante, recordando a necessidade da RDA de expulsar um português para responder à expulsão de Lisboa de um alemão do leste.
Como vivia em Berlim Ocidental com um carro de matricula diplomática da RDA, foi abordado umas 5 ou 6 vezes, por pessoas que diziam querer retirar familiares da Alemanha comunista. Chegaram a fazer-lhe uma proposta concreta de ir com o carro à garagem de um hotel, deixar a mala aberta para entrar alguém e atravessar a fronteira, a troco de 15 mil marcos.
“Tenho a certeza de que colegas nossos (diplomatas) da América latina se deixavam aliciar por este tipo de propostas. Nas fronteiras, havia um raio x, e lembro-me que um colega do Egipto foi apanhado com gente na mala do carro. Mas não havia qualquer necessidade disso: o transporte de pessoas à margem da lei a partir de Berlim Ocidental estava muito bem organizado.”
No arquivo da Stasi, há uma alegação parecida relacionada com outro funcionário da embaixada portuguesa, “provavelmente eletricista”. Um informador relatou que em Agosto de 1976 uma mulher divorciada tinha conseguido passar para o lado ocidental, depois de ter entrado na mala do carro do funcionário, a troco de 5 mil marcos.
Os relatórios sobre a vida íntima dos diplomatas portugueses na hora da saída
Outra informação elaborada já depois da saída de Fernando Almeida da RDA está cheia de informações íntimas e avaliações de caráter. Há documentos semelhantes no arquivo da Stasi elaborados sobre pelo menos outros três diplomatas depois de terem deixado o país, cheios de alegadas informações comprometedoras. Têm todos o mesmo título: “Informação sobre um diplomata da embaixada de Portugal, que acabou o seu trabalho na RDA”.
Seguem-se dados completos de identificação e residência, na Alemanha e em Portugal, data da primeira entrada no país, e alegados vícios ou outros comportamentos que pudessem ser vistos como censuráveis. Por exemplo, um dos diplomatas foi descrito assim: “Passado algum tempo a sua actividade profissional entrou em declínio. A razão era o consumo de álcool em excesso, que pode ter sido a razão para o fim do seu casamento. (…) Tinha muitos contactos sexuais na RDA”. Seguem-se os nomes de três parceiras sexuais, uma das quais seria sua noiva e teria pedido para viajar para países capitalistas, o que não foi autorizado.
Segundo o relatório da Stasi, um diplomata português estava a pagar a um informador que usava o nome de código “Feuerbach”. E teria mostrado disponibilidade para também trabalhar para a RDA, provavelmente colaborando com a polícia política. A Stasi encarou esta informação com cautela
Indicam-se vários internamentos hospitalares devido ao consumo de álcool, bem como situações em que apareceu alcoolizado na embaixada, nas ruas de Berlim e na Feira de Leipzig— e ainda acidentes rodoviários. O facto de este funcionário português ter participado algumas vezes o desaparecimento dos seus documentos diplomáticos levou a Stasi a desconfiar que ele estivesse a encobrir atividades subversivas.
Depois surge este detalhe insólito: “Feuerbach”, o nome de código de um dos muitos informadores da Stasi que espiavam a embaixada portuguesa, relatava que o alvo lhe estava a pagar mensalmente 200 marcos ocidentais para obter informações sobre a representação de um banco italiano na RDA, pedindo-lhe documentos originais, a serem entregues de forma secreta. Ou seja, se houver veracidade nesta informação, um diplomata português pagaria a um informador da Stasi. Ainda segundo “Feuerbach” o funcionário português mostrava-se receoso sobre o seu futuro e teria disponibilidade para também trabalhar para a RDA, provavelmente colaborando com a polícia política. A Stasi encarou esta informação com cautela: admitiu que o diplomata estivesse apenas a provocar o informador ou a querer provar que ele trabalhava para o Ministério da Segurança do Estado.
Numa informação semelhante sobre outra antiga diplomata da embaixada portuguesa, identificam-se homens com quem teve um contacto mais íntimo, e relata-se a alegada apreciação negativa que o embaixador faria do seu trabalho, por ser preguiçosa e intriguista.
Sobre um terceiro diplomata, identificado como “provável bissexual”, com ideias hostis à política da RDA, escreveu-se que “a bagageira do seu carro estava algumas vezes mais pesada quando ia a Berlim Ocidental”. A Stasi suspeitava que ele teria colaborado com os serviços secretos da Nato.
Uma vez que estavam de saída da RDA, não se percebe outro objetivo na elaboração desses relatórios que não fosse serem usados como eventual pressão ou chantagem sobre esses diplomatas, caso houvesse o objetivo ou necessidade de os recrutar para fornecerem informações no futuro, nos postos onde viessem a estar colocados.
Logo em 1975, a Stasi abordou a professora de alemão do embaixador Rui Medina, que lhe dava aulas na residência. Deu-lhe o nome de código “Gisela” e atribuiu-lhe a tarefa de provocar o embaixador durante as aulas para ver como ele reagia politicamente. A avaliação do seu trabalho era positiva, embora não se conheçam detalhes sobre os reais efeitos, pelo que o Ministério para a Segurança do Estado decidiu compensá-la com uma autorização para ir acampar em Prerow, uma estância balnear no Mar Báltico.
Mas pelo menos no caso do ex-adido de imprensa Fernando Almeida, não houve qualquer abordagem da Stasi. Aliás, mesmo durante os cinco anos em que trabalhou na RDA, que recorda como um “mundo cinzento, pouco iluminado, com muito uniforme na rua, uma vida prussiana de controlo”, não se lembra de nenhum contacto formal com aquela polícia: “Diretamente abordado pela Stasi não fui. Mas senti a sua presença. Havia sempre a sensação Big Brother. Tenho quase a certeza que os motoristas da embaixada eram todos da Stasi. Eram muito discretos. Tinham licença para vir connosco tratar de assuntos a Berlim Ocidental, e nunca nenhum fugiu.”
Outra forma de sentir a presença da polícia política era a quase impossibilidade de entrar em contacto com população local. “Eles tinham muito medo que nós solteiros tivéssemos acesso a mulheres com formação académica, porque se elas casassem poderiam sair do país e lá a RDA perdia mais uma cidadã que vinha para a parte ocidental. No intervalo da ópera, quando ia ao bar tomar um copo de vinho, vinha sempre alguém ter comigo para evitar que eu estabelecesse contacto com senhoras. Só havia meia dúzia de figuras expostas do sistema com que podíamos ter contacto.”
Mas estas manobras para evitar casamentos não eram sempre eficazes. Um cônsul português viria a casar-se com uma cidadã da RDA que deixou o país pouco depois. Também o filho de um dos embaixadores se apaixonou por uma estudante bolseira da Alemanha oriental, com quem viria a casar-se.
Logo a seguir ao 25 de Abril, Portugal era louvado na imprensa da RDA, o líder comunista Álvaro Cunhal era recebido com honras de chefe de Estado, e o próprio pessoal diplomático passou a ser tratado de forma amiga: “Em vez de me chamarem senhor Almeida, tratavam-me por Camarada Almeida”, recorda o adido de imprensa. Mas mesmo assim, ninguém estava autorizado a sair de Berlim Oriental para outras localidades da RDA sem uma autorização formal do Ministério.
Os relatórios de “Eva”, a secretária infiltrada na embaixada portuguesa
Só depois da revolução, a 20 de Junho de 1974, é que Portugal e a RDA estabeleceram relações diplomáticas. A embaixada ficava no 5º. piso de um grande edifício na Otto Grotewohl Strasse, nº 3, juntamente com outras representações, incluindo a do Afeganistão e a da Síria. Já a residência do embaixador ficava na Stavangerstrasse, nº 19, num bairro com todas as casas iguais, entre a da Grécia e a da Tunísia, em frente à dos EUA e nas traseiras das da Áustria e da Finlândia.
A residência era descrita como um edifício com três pisos e um sótão, com jardim e garagem. Todas as dimensões da casa, os materiais usados na construção e os pontos de abastecimento de energia e água estavam identificados num relatório policial, onde os autores se queixavam que algumas árvores limitavam a visibilidade para vigiar o edifício nos meses de verão.
Estava em permanência vigiada por um agente à civil e dois carros policiais, armados com walkie talkies, uma pistola e um bastão. Também a lista dos carros que tinham acesso à embaixada e respetivos utilizadores era controlada pela Stasi: um BMW, três Mercedes (um deles do embaixador), quatro Volksewagen, dois Fiat, um Porsche, um Lada, um Chevrolet.
O pessoal português colocado na embaixada e respetivas famílias ascendia a 17 pessoas. Todas as movimentações aparentemente sem importância eram registadas, desde a saída do embaixador num carro com quatro malas, até aos exercícios de tiro do cozinheiro fora da residência. A chegada de uma máquina de lavar e dois aspiradores, numa viatura da Alemanha Ocidental, por não haver transporte disponível na RDA, levou o autor desse relatório a criticar a má imagem para o país provocada por essa situação.
Logo em 1975, a Stasi abordou a professora de alemão do embaixador Rui Medina, que lhe dava aulas na residência. Deu-lhe o nome de código “Gisela” e atribuiu-lhe a tarefa de provocar o embaixador durante as aulas para ver como ele reagia politicamente. A avaliação do seu trabalho era positiva, embora não se conheçam detalhes sobre os reais efeitos, pelo que o Ministério para a Segurança do Estado decidiu compensá-la com uma autorização para ir acampar em Prerow, uma estância balnear no Mar Báltico.
A vigilância permanente à embaixada portuguesa em Berlim foi-se intensificando e em 1983, quando Portugal era governado pelo Bloco Central liderado por Mário Soares, havia ao todo 13 informadores da Stasi a controlar os passos dos diplomatas portugueses.
A que fornecia informações mais preciosas era uma secretária alemã infiltrada dentro da embaixada. Nome de código:“Eva”. Tinha acesso a quase tudo. Num relatório que elaborou em 1985, conta que é ela que está a gerir a nova central telefónica instalada na embaixada. Além de atender e reencaminhar telefonemas, consegue ver quem mais está a usar telefones na embaixada e que chamadas chegam ou são feitas para o estrangeiro. Mas o aparelho, de fabrico búlgaro, tinha uma limitação importante para a informadora: não permitia que ela escutasse os telefonemas.
Antes, em 1982, foi ela que alertou a Stasi para uma ordem do cônsul português, para que fossem transmitidos de forma encriptada a um departamento da NATO os dados dos portugueses e dos cidadãos da RDA que pretendiam casar-se: identificação pessoal, residência e local de trabalho, eventuais conflitos com instituições da RDA e modus operandi para concretizarem o casamento. (Em 1979, por exemplo, houve cinco pedidos de portugueses para se casaram com cidadãos da RDA. Um foi recusado pelas autoridades alemãs).
Os primeiros encontros foram num miradouro, mas tiveram de ser alterados para um local a que deram o nome de código “Seerose”. Chegaram a oferecer-lhe uma garrafa de cognac como recompensa pelo seu trabalho como informador. Mas a frustração de quem redigia os relatórios ia crescendo: “Ainda não se convenceu o informador a ter contactos com outros responsáveis”; “Ele não mostra iniciativa para se encontrar com portugueses na embaixada”; “Tem potencial para se tornar mais valioso”.
No mesmo ano, informou que tinha sido colocado um cadeado com código secreto na porta que separava os gabinetes da embaixada dos gabinetes do consulado e outro cadeado na porta da sala dos telex. Mas não conseguiu indicar o tipo ou marca do cadeado.
Em 1987, foi também ela que informou, com base em conversas que ouviu do cônsul português, que vinha um novo embaixador a caminho de Berlim, referindo esta nomeação como um castigo, na sequência de um desentendimento com o ministro Português.
E em 1988 relatou o problema com o passaporte de um secretário da embaixada que andava de Porsche. Tinha a abreviatura dr. antes do nome, apesar de não ser médico — algo que era comum em Portugal para licenciados, mas provocou estranheza na RDA.
Tudo informações com relevância muito diferente, mas que eram canalizadas para a Stasi, que concentrava tudo e cruzava estes dados com os fornecidos por outros informadores.
Os dois portugueses recrutados pela Stasi como informadores
Para cumprir o objetivo de controlar ainda melhor a embaixada portuguesa em Berlim, poderia fazer toda a diferença recrutar informadores portugueses, com quem o pessoal diplomático pudesse ter um contacto mais fácil e de maiores confiança. Em pelo menos dois casos, a polícia política da RDA teve algum sucesso. O Observador conhece as suas identidades, mas não as vai expor, tendo em conta a complexidade das situações em que se viram envolvidos, e a possibilidade de adulteração da realidade por parte da Stasi nos documentos que escreveu sobre eles.
Um dos portugueses surge identificado pela polícia política com o nome de código “José”, funcionário de uma universidade. Ainda está vivo, mas o Observador não o conseguiu localizar até ao momento nem na Alemanha nem em Portugal. Na visão dos seus controleiros da Stasi, era sempre pontual e de confiança, nunca falhava os encontros de 3 em 3 semanas, mas avançava poucas informações relevantes. Era amigo de um alto funcionário da embaixada e “não se sentia bem pessoalmente por estar a dar informação sobre os amigos”. Contudo disse compreender a necessidade de um sistema de informações. Fez por isso um esforço para corresponder e tentava marcar encontros com o diplomata que conhecia antes de cada encontro com o responsável do Ministério para a Segurança do Estado a quem passava informações.
A frustração de quem redigia os relatórios ia crescendo: “Ainda não se convenceu o informador a ter contactos com outros responsáveis”; “Ele não mostra iniciativa para se encontrar com portugueses na embaixada”; “Tem potencial para se tornar mais valioso”.
Os primeiros encontros foram num miradouro, mas tiveram de ser alterados para um local a que deram o nome de código “Seerose”. Chegaram a oferecer-lhe uma garrafa de cognac como recompensa pelo seu trabalho como informador. Mas em 1983 o contacto foi interrompido, por ele ter poucas possibilidades operativas, muitas obrigações no trabalho e problemas de saúde.
A outra portuguesa escolheu o nome de código “Bárbara”.Era uma jovem estudante comunista e a Stasi escreveu um “Relatório sobre o recrutamento bem sucedido de uma informadora”. Foram combinadas cinco regras com a candidata:
- Os encontros futuros não decorreriam em espaços públicos
- A candidata compromete-se a ser honesta e rigorosa a trabalhar em conjunto com o Ministério para a Segurança do Estado e manterá sempre segredo
- Do lado da candidata e dos colegas membros da Stasi, está a ser combinado um encontro regular de 4 em 4 semanas
- A candidata vai trabalhar de forma contínua em informações sobre a embaixada portuguesa e os seus responsáveis. (…) Vai entrar em contacto com portugueses embaixada. Adicionalmente, a candidata vai ser usada para obter informação de pessoas interessantes do seu círculo de amizades
- Escolheu o nome de código Barbara para trabalhar connosco”.
Foi também traçado um plano para “Bárbara” receber “treino político-ideológico” para os problemas contemporâneos da política externa entre a RDA e Portugal, e também “treino adicional” para poder trabalhar oficialmente com o Ministério para a Segurança do Estado. Combinaram também traçar “um plano de vigilância”, no qual envolveriam outros três informadores, incluindo “Rita” e “Jose”.
A maior parte dos documentos mostra a relutância de “Bárbara” em colaborar, mas a Stasi argumentava que era necessário ter um instrumento como esta polícia política num estado socialista “para proteger as conquistas do socialismo contra qualquer meio de ataque à classe operária”. E que ela também tinha o “dever internacional de proteger o povo português face aos ataques do imperialismo e dos seus serviços secretos”. Concordaram que ela não enviaria relatórios por escrito, para não ficar vinculada a este papel para o resto da vida.
No seu ficheiro há um recibo assinado “Barbara”, segundo o qual terá recebido 250 marcos em Dezembro de 1978. Há relatos de encontros com o pessoal da Stasi num carro, avaliações psicológicas (ex: “Responde às perguntas sem duvidar, sem pensar muito, pode assumir-se que respondeu de forma honesta”), palavras de código para os pontos de encontro, e descrições da forma como se relacionava com alguns diplomatas portugueses: “Tratam-se por tu. E trocam beijos. O contacto com x está ao nível da amizade.”
A informadora deixou a RDA no início dos anos 80, pelo que os encontros terminaram aí e o seu processo foi fechado no arquivo secreto. Quase 40 anos depois, o Observador estabeleceu contacto com “Bárbara”, que ficou bastante incomodada. Disse que na altura nem sabia que estava a lidar com a Stasi, que começou por fazer pequenos trabalhos de tradução e só depois percebeu que afinal estavam era interessados em informações sobre os portugueses da sua rede de contactos. Garante que nunca teve estrutura psicológica nem interesse em ser espia. E dá a entender que terá sido chantageada, mas prefere não falar mais sobre este assunto.
Entre os outros informadores identificados, sobressai uma mulher alemã que usou o nome de código “Anne” e que foi funcionária da embaixada portuguesa. Recebeu 350 marcos e algumas lembranças para a compensar pelo seu trabalho. Também rejeitou enviar notas escritas, para que esses papéis não viessem a ser usados contra ela no futuro.
“Bernard” era o nome de código de outro informador alemão que trabalhou na embaixada. Dava informações sobre o aparecimento de um carro novo no edifício, os jornais recebidos na representação diplomática, ou a extensão dos telegramas que chegavam de Portugal, que chegaram a perfazer 2 metros. Queixava-se de alguma desorganização, devido à falta de uma empregada de limpeza.
“Egon” foi recrutado por estar a fazer um doutoramento em literatura portuguesa. O Ministério para a Segurança do Estado instruiu-o para pedir ajuda à embaixada para encontrar obras literárias portuguesas e assim estabelecer contacto com os diplomatas portugueses.
Este cerco permanente ao pessoal da embaixada permitia à Stasi vigiar as suas movimentações mas também saber com algum grau de detalhe o que pensavam e o que comunicavam ao governo português. Por exemplo, na sequência do XI congresso do SED, o Partido Socialista Unificado da Alemanha (que controlava o regime), o embaixador português informou o ministro dos Negócios Estrangeiros que via o poder do secretário-geral Erich Honecker a diminuir e admitia como possível uma mudança na liderança.
Nos anos 80, emergiu uma nova informadora infiltrada na embaixada, “Rita”, que chegou a rivalizar com “Eva” na quantidade e qualidade dos relatórios que enviava. Foi “Rita” que soube de um telegrama secreto e reservado enviado pelo MNE português em 1984, segundo o qual, apesar da Guerra Fria, os EUA estavam interessados em desenvolver relações económicas com países socialistas, incluindo a RDA. E Portugal devia ser um aliado dos americanos nessa estratégia.
“Rita” também reportou que o embaixador Lopes, em 1985, estava contra a visita do ministro dos Negócios Estrangeiros português à RDA por entender que a RDA não iria cumprir o que fosse acordado quanto às relações bilaterais.
E em 1986 foi novamente “Rita” que alertou a Stasi que o ministro dos Negócios Estrangeiros português (Pedro Pires de Miranda, no I Governo de Cavaco Silva) tinha aconselhado a embaixada a passar a conceder visto de apenas 4 dias, não renováveis, para os portadores de correio diplomático da RDA. E teriam de ser pedidos com 15 dias de antecedência.
Em Junho do mesmo ano, deu conta da intenção do embaixador Coelho Lopes de apertar o controlo sobre os cidadãos portugueses na RDA, tendo pedido fotocópias dos documentos de todos eles e informações sobre deslocações ao estrangeiro. Em 1980 havia 22 estudantes portugueses no país e mais 116 portugueses por outros motivos (além do pessoal da embaixada). A Stasi desconfiou que o objectivo era cruzar essas informações com os serviços secretos americanos ou portugueses, para melhor monitorizar eventuais passos suspeitos fora da Alemanha de Leste.
As visitas de portugueses também eram fortemente vigiadas. Em dezembro de 1979, uma delegação portuguesa que se deslocou a Berlim para negociações com o Governo da RDA ficou alojada no Interhotel “Metropol”. No quarto 936, a empregada de limpeza encontrou 20 páginas de documentos relacionados com as negociações, com notas preparatórias, que foram entregues à Stasi.
Álvaro Cunhal, líder comunista, foi recebido nas suas várias visitas à RDA por Erich Honecker, o secretário-geral do SED (Partido Socialista Unificado da Alemanha). Apesar dessa deferência, a Stasi também observava todas as visitas e anotava-as num relatório, mesmo as partes desinteressantes: “O dia continuou sem mais eventos de especial”.
Os quatro agentes infiltrados da Stasi em Portugal
Não foram localizados no arquivo da Stasi relatórios de informadores que estivessem em Portugal, mas isso não quer dizer que não tenham existido. Segundo um responsável pelo arquivo, quase todos os registos da antiga secção de espionagem no estrangeiro desapareceram.
Mesmo assim, um mero cruzamento entre a lista de pessoal diplomático da RDA acreditado em Lisboa com o arquivo da Stasi permite encontrar pelo menos quatro agentes infiltrados, que formalmente desempenhariam as funções de segundo secretário ou adido, mas na prática poderiam continuar a trabalhar para a polícia política do seu país. Tinham os nomes de código “Brenner”, “Jensen”, “Boden” e “Jochen”. Este último nome de código pertencia a Julian Hollender, que era informador da Stasi e se tornou o embaixador da RDA em Portugal a partir de 1985.
O muro de Berlim caiu em 1989, mas Portugal ainda seria cenário de um acontecimento relevante relacionado com a polícia política da Alemanha de Leste. O coronel Rainer Wiegand, da direcção de contraespionagem da Stasi, que estava em comunicação constante com o KGB, recrutou vários trabalhadores portugueses para projectos de construção em Berlim, mas a seguir à queda do muro, foi um dos primeiros a desertar e a passar segredos aos serviços secretos internacionais.
Foi graças a um destes interrogatórios que foram presos os terroristas líbios responsáveis pelo atentado numa discoteca de Berlim, em 1986. A 17 de Junho de 1996, pouco antes de ser chamado a depor em tribunal neste processo, Rainer Wiegand sofreu um acidente de carro em Portugal, segundo o livro “Stasi: The Untold Story Of The East German Secret Police”, de John O. Koehler. Estava em viagem de negócios com a esposa e há três versões diferentes sobre o acidente. Os seus bens pessoais nunca apareceram. As autoridades judiciais e os serviços de espionagem alemãs suspeitaram que ele tenha sido assassinado.
Pedro Jorge Castro – Observador
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