Foi uma vergonha a virulência dos ataques à volta do artigo de opinião de um miúdo de 17 anos. Mas foi também um sinal de alarme: o espaço público está doente, mais intolerante e muito menos livre.
Algo está mal no espaço público quando este fica preenchido por discussões à volta de um artigo de opinião de um miúdo de 17 anos. E algo está ainda pior quando, a propósito desse artigo de opinião, o rapaz de 17 anos que o escreveu se vê alvo de sucessivas tentativas de humilhação, chacota, difamações (a si e à sua família), agressões verbais e bullying nas redes sociais. Foi o que aconteceu a Manuel Bourbon Ribeiro que, numa carta aberta ao país, partilhou a sua opinião sobre os desafios sociais e políticos do momento. Problema? É loiro, tem dois apelidos, parece um “beto” e defendeu o que, no jargão político, se chamaria de “visão conservadora” – algo que, no mundo enviesado do comentário político e das redes sociais, o faz ascender a caricatura da direita conservadora, uma heresia punível com ódio e apedrejamento virtual. Assim, sem perceber como, um miúdo de 17 anos pousou os dois pés num combate político radicalizado – e foi convertido em saco de pancada, não só por “anónimos” mas também por políticos, jornalistas ou humoristas.
Não creio que valha a pena discutir o conteúdo do artigo de opinião em causa. Por maior maturidade que tenha para a sua idade, um artigo de um miúdo de 17 anos estará inevitavelmente repleto de certezas, de generalizações, de frases feitas e de uma certa ingenuidade – e, por isso, acertará numas coisas e errará noutras (faz parte e é mesmo assim). Do mesmo modo, seria contraproducente rebater as violentas acusações de que o autor e a sua família foram alvo – e eu, que até sou amigo da família, sei o quão absurdo foi o teor desses ataques. Ora, pondo tudo isso de parte, o episódio tem algo na sua raiz que justifica uma reflexão sobre o estado do nosso espaço público: a discordância de opinião (e logo com a de um miúdo de 17 anos) justifica o que aconteceu – achincalhamento, agressões verbais, ostracização social? Obviamente que não. Mas, infelizmente, este caso tem cada vez menos algo de especial: o bullying virtual e a agressividade vigente nas redes sociais são a nova realidade, seja no dia-a-dia dos mais novos ou no próprio debate político.
Eis, portanto, o contributo do artigo de Manuel Bourbon Ribeiro. Fazer-nos constatar (novamente) que o espaço público está a ser corroído pelo mau uso das redes sociais, onde as discussões e trocas de opinião foram substituídas por intolerância à diferença e por pessoalização dos ataques. Lembrar-nos do perigo do desaparecimento do diálogo, na medida em que esse vazio abala o pressuposto de ter na discussão e na argumentação os instrumentos nobres para a obtenção das melhores soluções para a comunidade – é, de resto, precisamente essa a vocação de um parlamento: representar as várias visões presentes numa sociedade e pô-las em diálogo. Mostrar que uma sociedade assim, envenenada pelo tribalismo identitário, se fragmenta em grupos radicalizados onde o número faz a força das tiranias de uns que oprimem a liberdade de outros. E, por fim, revelar que esta intolerância tem origem, frequentemente, nos grupos sociais que se dizem mais “tolerantes” mas que, na prática, se alimentam da intimidação e do silenciamento daqueles que de si discordam. Repare-se: mais do que ao conteúdo do artigo, as críticas foram apontadas ao autor – ao seu nome, ao seu aspecto, à sua condição social, ao seu alegado privilégio – e vieram precisamente dos que, à esquerda e em nome de maior justiça social, censuram a perseguição das minorias sociais, rejeitam as avaliações baseadas em preconceitos sociais e pretendem abolir o predomínio da classe na ascensão social. Contra este miúdo de 17 anos, foi tudo isso que fizeram: a mais odiosa rejeição do “outro” surgiu destes “tolerantes”.
Houve um tempo (e não foi assim há tanto tempo) em que, argumentos trocados, se procuravam pontos comuns ou, no limite, acordava-se em discordar. Não é esse o ar deste novo tempo dominado pela imediatez das redes sociais. Já não se ouve o que os outros dizem, fala-se por cima. Já não se argumenta, ataca-se pessoalmente o adversário. Já não se recorre a factos, especula-se através do preconceito. Já não se forjam entendimentos, queimam-se pontes. Já não se formam debates, geram-se fóruns de humilhação. Já não se faz do discurso um nobre instrumento democrático, lançam-se acusações. Eis um espaço público propício à mentira e desinteressado da verdade, que vai aceleradamente corroendo os pilares de uma sociedade livre.
Portanto, após os milhares de cliques, leituras e partilhas do artigo, o que mais importa reter é isto. Sim, foi uma vergonha lamentável a virulência dos ataques à volta do artigo de opinião de um miúdo de 17 anos – ainda mais quando esses ataques foram personalizados no rapaz e vieram de políticos e jornalistas, pessoas que na sua vida profissional têm o dever de cuidar do debate público. Mas foi também um retracto do nosso tempo e um sinal de alarme que faríamos bem em escutar: o espaço público está doente, mais intolerante e muito menos livre.
Alexandre Homem Cristo
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