terça-feira, 12 de novembro de 2019

A lesbicazinha afrodescendentezinha da minha tia.

A minha tia descobriu agora que o sem-abrigo Joaquim não é um dos mais desfavorecidos da sociedade. “O menino sabia que o Joaquim é homem, heterossexual, cis e branco? Faz parte da classe opressora!”

Na minha família, as tias velhas têm pobres. Obviamente, as minhas tias não se referem a essas pessoas nestes termos, com um insensível “o meu pobre”. Usa-se, isso sim, um carinhoso “o meu pobrezinho”. Trata-se de um costume típico de uma certa classe social lisboeta, em que uma senhora patrocina um mendigo da freguesia, a quem dá algumas moedas de vez em quando, roupa velha do marido e dos filhos, um cabaz de víveres na Páscoa e outro no Natal. Em troca, o mendigo, vagueando pelo bairro com mais viço e vestido com roupas não andrajosas (e marcadas com as iniciais do antigo dono), mostra-se à vizinhança e proporciona prestígio à sua benemérita. O pobre é uma espécie de anúncio ambulante da bondade dela. Porque a minha tia – e as outras beatas como ela – sabem que a filantropia não é para publicitar directamente, como Nosso Senhor bem avisou ao pedir para a mão esquerda não saber o que a direita faz.

(Uma regra que a minha tia faz questão de cumprir escrupulosamente, pois é também com a mão direita que telefona às amigas para se gabar do bem que pratica. A mão esquerda nunca é incluída neste negócio).

Percebe-se a necessidade desta bazófia caridosa. Com o avanço económico e social dos últimos anos, sobram cada vez menos pobres. Há míngua de gente à míngua. Daí que manter um pobre em exclusividade seja uma virtude que tem de ser sinalizada. Há senhoras de sociedade que são forçadas a dividir pobres, coitadas.

Há dias, a minha tia anunciou que já não ajuda o Joaquim, o seu pobrezinho predilecto. Habitualmente, o prazo de validade de um mendigo destes varia entre 12 e 15 anos, de maneira que achei que o mais provável era o Joaquim ter sucumbido à cirrose. Foi assim que nos deixaram os outros pobrezinhos que a minha tia teve antes. Pelas minhas contas, o Joaquim é o terceiro que lhe conheço.

Mas fiquei em choque ao perceber que ele não morreu, ela é que o largou. Segundo a minha tia, ajudar o Joaquim, um mendigo que dorme num banco do Jardim da Parada (em cima, no Verão, por baixo, no Inverno), sobrevive de esmolas e cuja fortuna se resume a 10 kg de cartão, é o oposto da caridade cristã, que manda amparar os mais necessitados. É que a minha tia descobriu agora que o Joaquim não é um dos mais desfavorecidos da sociedade. Pelo contrário, é um privilegiado. O Joaquim, revelou-me ela, horrorizada, é um representante do heteropatriarcado branco. “O menino sabia que o Joaquim é homem, heterossexual, cis e branco? Faz parte da classe opressora!”

Não deixa de ter razão. Realmente, o Joaquim é: 1) homem, como testemunham os mais velhos do bairro, que ainda se lembram da fase em que ele expunha a sua virilidade na rua, até o Padre Zé o ter convencido a, pelo menos, usar cuecas; 2) heterossexual, uma vez que só se expunha a senhoras; 3) cis, pois, apesar de destituído, nunca aceitou as roupas velhas das minhas primas que a minha tia lhe tentou impingir, além de que nem sequer tem estudos suficientes para saber o que é cis e para achar que pode não o ser; 4) e branco, facto comprovado por todos lá em casa, desde o dia em que a minha tia o obrigou a tomar banho, via mangueirada no jardim, e se constatou que, debaixo do sarro, o Joaquim não só é caucasiano, como até lhe dá uns ares de nórdico.

Ou seja, ao ajudar aquele indigente, estava a perpetuar o status quo. Durante anos, revelou chorosa, ela protegeu um supremacista branco. E nunca se tinha apercebido. Sabe agora que sofria de sexismo internalizado. O que ela praticava era caridade tóxica com um homem que vivia à conta de explorar uma mulher. Aliás, acrescentou, o mundo da mendicância é machista: a maioria dos lugares foi açambarcado por homens. Falta diversidade.

Felizmente, a minha tia ainda vai a tempo de corrigir o seu erro e dirigir o seu altruísmo para auxiliar aqueles que são, verdadeiramente, os mais desamparados da comunidade. Agora, em vez do Joaquim, a minha tia patrocina a Danila. Em vez de um pobrezinho, a minha tia tem agora uma lesbicazinha afrodescendentezinha. É filantropia progressista.

Não foi a primeira escolha. Havia lá no bairro um anão bissexual cigano, mas alguém pegou nele primeiro. Literalmente. De maneira que a minha tia optou pela Danila. Mas está contentíssima com quem lhe calhou. Diz que, finalmente, dirige a sua compaixão católica para quem necessita mesmo. Não o mendigo privilegiado, mas a oprimida jovem universitária a preparar a sua tese de doutoramento em “Racismo sistémico nos anúncios de comida para cães – O discurso de ódio em Pedigree Pal”. Alguém a quem um vizinho já deixou fechar a porta do elevador da garagem na cara, apenas por ser lésbica e negra e estar a demorar algum tempo numa chamada telefónica para outra lésbica negra. Alguém que, quando se mudou para o condomínio, sentiu que a confundiram com a porteira. No fundo, alguém marcado pela exclusão a que a nossa sociedade remete os desvalidos.

Quando lhe perguntei se uma estudante com carro, que mora num condomínio com garagem e porteira, é mais desfavorecida que um sem-abrigo, a minha tia disse que já estava à espera da minha misoginia xenófoba a defender outro homem branco. E mandou-me calar. Contou-me que, entretanto, o Joaquim se revelara um opressor. Ao cruzar-se com a Danila (num render da guarda que eu achei mesquinho, mas que a minha tia considerou essencial como forma de reparação pelo que o povo de Danila sofreu), houve, segundo a minha tia, uma microagressão: “O menino acredita que o Joaquim lhe disse «Bom dia»? Assim, só. Foi incapaz de lhe pedir desculpa pelos Descobrimentos!”

Agora a minha tia pratica misericórdia inclusiva. É diferente, diz. Antigamente, um mendigo precisava de comida e de agasalho. Agora, um membro de uma minoria oprimida precisa que ouçam as suas queixas e lhe peçam desculpa muitas vezes. Mas é uma caridade muito mais recompensadora para quem a pratica. Ajudar a Danila é mais estimulante, porque ela é vítima por ser mulher, negra e LGBT. O Joaquim é-o apenas por ter fome. E a fome não intersecciona com nada, é pouco interessante. A minha tia diz que se está a habituar. Até já sabe ir ao Twitter fazer likes nos posts woke da Danila.

Apesar de ser mais moderna, esta caridade ainda tem alguns traços da antiga. A minha tia continua a dar conselhos paternalistas juntamente com a esmola. Só que, em vez de advertir o Joaquim para não gastar em vinho e cigarros na taberna, agora diz à Danila para não gastar em sandes e galões no Starbucks, por causa do glúten e da lactose. E continua a oferecer cabazes de Páscoa e Natal. Só não lhes chama isso, porque são festas cristãs, símbolos do imperialismo europeu. E também continua a retirar as pratas da sala, quando a visitam. Antes era por medo que o Joaquim caísse em tentação, agora é porque são relíquias que um antepassado trouxe da Índia e ela tem medo que a Danila se ofenda com a apropriação cultural.

Na semana passada, encontrei o Joaquim. Surpreendentemente, estava com bom ar. Pediu-me dinheiro. “Para comer?”, perguntei. “Não”, disse ele. “Para estrogénio”. O Joaquim está em processo de transição. Percebeu que, para ser desfavorecido, não chega ser miserável. Por isso, vai mudar de sexo. A fome até vai fazer bem, porque ele não quer ser “uma gaja gorda”. Perguntei-lhe se não se iria arrepender e ele acusou-me de estar a fazer mansplaining a uma pessoa trans. Percebi que se vai safar. Comprei-lhe duas ampolas de hormonas e desejei-lhe boa sorte.

José Diogo Quintela

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