quarta-feira, 13 de novembro de 2019

A condição humana

Por: Fernando Pinto do Amaral
Escritor e professor universitário
Vindima foi o único romance publicado por Miguel Torga, em 1945. A sua leitura constitui hoje um bom meio de contactarmos com a escrita de um autor que um dia se Definiu como “homem de trocas com a natureza” e cuja prosa viva e dinâmica manifesta uma profunda ligação à paisagem portuguesa, com epicentro na região do Douro Vinhateiro. É essa relação com os elementos naturais a estar aqui em jogo, bem como um desejo de integridade  e de justiça — uma integridade  e uma justiça sempre difíceis de concretizar perante a iniquidade  e a ganância dos homens. Este livro conta-nos a história muito dura e agreste de uma “roga”, palavra que então se usava para descrever um conjunto de vindimadores, neste caso oriundos de Penaguião e contratados para trabalhar numa quinta do Douro em condições desumanas. O modo como nos é apresentado esse terrível quotidiano leva a que Vindima se aproxime da atmosfera neo-realista de meados do século XX, em que sobressaem as mais flagrantes injustiças económicas e sociais: “O tracto reles, as jornas miseráveis, a promiscuidade, eram explicados de todas as maneiras: crises sucessivas nos mercados, pragas terríveis, anos de colheitas más. Simplesmente tudo isso não justificava uma escravidão de que não havia paralelo em todo o país.” Todo o romance se mostra denso e complexo, não havendo aqui espaço para uma análise da sua ampla teia de personagens, em que se destacam duas famílias rivais e algumas relações amorosas e de poder que entretanto se criam no seio de um ambiente impiedoso, em que a sobrevivência dos mais fracos depende da vontade dos mais fortes, sob condições muito cruéis. Sobre tais condições escreveria Torga mais tarde, em 1988: “Cingido à realidade humana do momento, romanceei um Doiro atribulado, de classes, injustiças, suor e miséria. E esse Doiro, felizmente, está em vias de mudar. […] Desapareceram os patrões tirânicos, as cardenhas degradantes, os salários de fome.” Se é verdade que os tempos mudaram e que essa dureza se atenuou, não é menos certo que em 2019 continuamos a viver num mundo onde a desenfreada competição entre os humanos os leva a cometer as maiores barbaridades, na sua ânsia de explorar até ao âmago as riquezas da terra, num ambiente darwiniano em que só parece contar a lei do mais forte, do mais rico, do mais poderoso, sem piedade pelos mais débeis, pelos mais pobres ou pelos mais fracos. Nesse sentido, um livro como este mantém-se infelizmente actual, ao retractar uma condição humana em que tudo parece resumir-se a uma dor que renasce com a mesma pontualidade do sol de cada dia, como lemos num poema ironicamente intitulado Alvorada: “Amanhece…/ E amanhece o desespero…/ […] / Angústias a oprimir o coração, / Seguidas como os dias da semana. // Mais vinte e quatro horas/ De negrura.”

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