Há pouca gente mais eficiente energeticamente do que uma pessoa com frio, que até respira mais devagar e por isso emite menos CO2. E não há mesmo ninguém carbonicamente mais neutro do que um defunto.
Um aspecto desagradável da paternidade é descobrir que faço exactamente as mesmas coisas irritantes que o meu pai fazia. Por exemplo, o meu pai andava furibundo pela casa a desligar interruptores e a perguntar “mas vocês acham que eu sou accionista da EDP?”, e eu dou por mim a fazer o mesmo, só que a dizer “mas vocês acham que eu desejo contribuir para a destruição do planeta?”
A avareza é a mesma. Mas, em minha defesa, a avareza que exibo acaba por ser moralmente superior, porque está embrulhada em preocupação climática. O meu pai não possuía o cinismo para disfarçar o facto de ser somítico. Já eu, sim. A consciência ambiental dá muito jeito para camuflar a ganância.
Como António Costa descobriu agora, a propósito do IVA da electricidade. O PM disse que a redução do IVA seria uma medida “ambientalmente irresponsável”, o que parte de dois pressupostos. O primeiro é que, com electricidade mais barata, as pessoas gastam à tripa-forra. Sempre que passam na cozinha ligam a torradeira, usam a máquina da roupa vazia só para se entreterem com o tambor a andar à roda ou vão para o OLX comprar lâmpadas antigas, das que gastam mais, só pelo estilo.
Estas pessoas pressupostas por Costa, refira-se, são os pobres. Para quem tem dinheiro, o IVA não aquece nem arrefece, para os pobres, sim. Literalmente. Portanto, Costa acha que, com diminuição do preço, não se pode confiar nos pobres. Como eu cá em casa, com as crianças e as bolachas: sei que quantos mais pacotes comprar, mais elas comem.
(Já em 2018 o Ministro do Ambiente tinha sugerido que, se quisessem poupar, os portugueses deviam diminuir a potência contratada, para não desperdiçarem electricidade. Estava a pensar naquelas famílias esbanjadoras que, depois do jantar, chegam a ligar a televisão e a máquina da loiça ao mesmo tempo. Quando podiam perfeitamente ver televisão enquanto lavam a loiça à mão – isso é possível uma vez que, por norma, vivem em casas com kitchenette).
O segundo pressuposto é que o aumento de consumo causado pela descida do IVA tem impacto efectivo no aumento de temperatura. Quer dizer, para ser rigoroso, até tem. Só que não é no aumento da temperatura do planeta, é no aumento da temperatura em casa das pessoas que têm dificuldade em pagar o aquecimento. Ora, se a China e a Índia continuam a emitir CO2 à bruta, não são as emissões de um país com 10 milhões que vão fazer qualquer tipo de diferença. Até porque uma redução de emissões por diminuição do consumo de electricidade acaba por ser compensada com aumento de emissões pela queima de lenha para as pessoas se aquecerem.
É óbvio que António Costa não acredita nisto. Nem que os pobres são perdulários, nem que Portugal tem um papel real na diminuição de emissões. Só que dá-lhe jeito fazer a conversa da responsabilidade ambiental, para evitar perder a receita do IVA. É uma desculpa para ganhar dinheiro. Aliás, o clima é muito útil ao Governo. Se há incêndios dramáticos, diz “não podemos fazer nada, são as alterações climáticas, está fora das nossas mãos”. Se é para baixar os impostos sobre a electricidade, “então e as alterações climáticas? Temos de fazer qualquer coisa, está nas nossas mãos”. É o pretexto ideal para trabalhar menos e ganhar mais.
Deixar o IVA como está não é ser só contra a iluminação, é ser contra o iluminismo. Usar menos electricidade por causa do clima é superstição, uma espécie de sacrifício para aplacar os elementos. Só não é o equivalente a auto-flagelação, porque a auto-flagelação ao menos aquece.
No fundo, o que o Governo diz é que a electricidade mais cara é para nosso bem-estar. O que não faz sentido. A electricidade é um bem essencial. Sem ela a vida é muito pior e os benefícios ultrapassam largamente os prejuízos. Foi com a ajuda da electricidade, por exemplo, que o Bloco de Esquerda pesquisou na Internet e descobriu que se morre de frio em Portugal e que o discurso de António Guterres, Greta Thunberg, Bernie Sanders e outros activistas (por coincidência, nunca são indigentes) quando se transforma em medidas com impacto na vida das pessoas, torna-as mais pobres.
A única ocasião em que dificultar o acesso à electricidade faz bem à saúde é quando a pessoa em questão é um condenado à cadeira eléctrica. De resto, a electricidade dá muito jeito, principalmente num país em que, apesar do clima ameno, se morre de frio com bastante frequência. Por causa da pobreza. Ou, como se diz agora, eficiência energética. Há pouca gente mais eficiente energeticamente do que uma pessoa com frio, que até respira mais devagar e por isso emite menos CO2. E não há mesmo ninguém carbonicamente mais neutro do que um defunto.
Se Abel Matos Santos sente mesmo necessidade de elogiar o Estado Novo e não quer ser criticado por isso, em vez de gabar a PIDE, deve louvar a consciência ambiental de Salazar, que mantinha os portugueses muito mais ambientalmente responsáveis.
José Diogo Quintela
Observador
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