terça-feira, 5 de maio de 2020

Apanhados pela gripe espanhola. CONTÁGIO PLANETÁRIO.

Nenhuma doença provocou tantos mortos em tão pouco tempo como a pneumónica de há um século. Os médicos foram surpreendidos por um vírus desconhecido que dizimou milhões de jovens adultos, sem que uma cura ou uma vacina fossem encontradas.

GUILLAUME APOLLINAIRE

O poeta francês morreu aos 38 anos em Paris, em Novembro de 1918

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MAX WEBER

O pai da sociologia não resistiu ao vírus. Faleceu em Munique, aos 56 anos, em Junho de 1920

O que é comunidade segundo Max Weber? - Quora

GUSTAV KLIMT

O pintor simbolista morreu em Viena, em Fevereiro de 1918. Tinha 55 anos

Gustav Klimt artista - Guia das Artes

RODRIGUES ALVES

O presidente eleito do Brasil não chegou a tomar posse. Faleceu aos 70 anos no Rio de Janeiro, em Janeiro de 1919

Rodrigues Alves – Wikipédia, a enciclopédia livre

AFONSO XIII

Infectado aos 32 anos, o Rei de Espanha deu ainda mais notoriedade à chamada gripe espanhola, da qual recuperou

Espanha

Num ano, entre Março de 1918 e Fevereiro de 1919, de 50 a 100 milhões de pessoas não resistiram ao vírus da gripe pneumónica, considerada até hoje a maior epidemia que atingiu o mundo desde a Peste Negra de meados do século XIV. A doença manifestou-se no final da I Guerra Mundial, quando milhares de soldados se movimentavam entre os Estados Unidos, a Europa, o norte de África e a Ásia ocidental, transformando os portos, estradas e caminhos-de-ferro em vias rápidas para a propagação. A segunda, e mais mortal vaga da pneumónica, coincidiu com a assinatura do armistício, em Novembro de 1918. A terceira fez-se sentir no final do Inverno de 1919, arrebatando ainda mais vidas. As investigações históricas mais sólidas indicam que a doença alastrou a partir dos Estados Unidos da América (EUA) para o resto do mundo. Aquele que seria hoje designado por «paciente zero» foi identificado a 4 de Março de 1918 em Camp Funston, um campo de instrução dos militares americanos, no Kansas. Um mês depois, o novo vírus tinha atravessado o Atlântico e iniciado a sua disseminação pela Europa, seguindo o rasto das tropas que participavam na ofensiva final da Grande Guerra. Mas o pior estava para vir. A segunda vaga dizimou milhões de pessoas na flor da idade entre Setembro e Novembro de 1918, nos dois lados do Atlântico e não só. O primeiro caso terá sido detectado a 22 de Agosto, em Brest, um importante porto de desembarque das tropas americanas em França. Na mesma semana, registaram-se focos da doença em Boston, nos EUA, e em Freetown, na Serra Leoa. Em Setembro, o vírus aportava na África do Sul, provocando cerca de 300 mil vítimas mortais, na maioria entre a população negra. O novo vírus da gripe matou muitas pessoas, e muito depressa. Entre 1918 e 1919 viriam a morrer cerca de 675 mil norte-americanos, mais do que nas duas guerras mundiais e nas guerra das Coreia e a do Vietname juntas. Com muitos médicos e enfermeiras mobilizados para a frente de batalha na Europa, grandes cidades como Saint Louis viram-se forçadas a parar e a isolar os doentes. Lojas e escolas encerraram (mas não as igrejas), eventos desportivos foram cancelados e até os cortejos fúnebres foram desincentivados, por medo do contágio. Em Nova Iorque criaram-se regulamentos que proibiam os cidadãos de espirrar, tossir ou cuspir na rua. Os eléctricos eram convertidos em carros funerários e os mortos enterrados em valas comuns, à falta de caixões em número suficiente. Segundo a revista The New Yorker, os cadáveres apodreciam nas morgues e os funcionários abriam as portas para ventilar o interior. Alfred Crosby escreve que poucos esquimós resistiram à epidemia no Alasca. Com a descida das temperaturas no Inverno, famílias inteiras morreram de frio porque as pessoas estavam tão doentes que nem conseguiam alimentar as lareiras. Pior ficaram as cidades que pouco ou nada fizeram para combater o vírus. Filadélfia perdeu cerca de 11 mil habitantes num único mês. Na sua esmagadora maioria, os infectados eram jovens adultos até então saudáveis. Cerca de três em cada quatro mortos tinha menos de 60 anos, e perto de metade menos de 15 anos – um padrão tristemente repetido em todos os países onde a doença se instalou. Frederick Trump, avô paterno do actual Presidente dos EUA, Donald Trump, foi uma das primeiras vítimas mortais nos EUA, em Março de 1918. Tinha 50 anos. Já o então Presidente, Woodrow Wilson, teve mais sorte: adoeceu no início de 1919, quando negociava o Tratado de Versalhes, mas sobreviveu. Máscaras feitas de gaze Sabe-se hoje que a propagação terá sido favorecida pela movimentação dos soldados, concentração de pessoas em feiras e migração de trabalhadores rurais. Mas nada terá favorecido mais a elevada mortandade como a falta de preparação dos médicos, quando confrontados com um vírus desconhecido, e a ausência de medidas sanitárias adequadas. A pneumónica chegou sem avisar, e o mundo foi apanhado desprevenido. Para fazer face à pandemia, muitos países adoptaram o uso de máscaras de gaze para proteger boca e nariz das pessoas e, assim, diminuir o perigo de contágio. Em São Francisco, a Cruz Vermelha distribuiu máscaras fabricadas pela marca de calças de ganga Levi Strauss & Co, que colocou a sua linha de produção ao serviço da luta contra a epidemia. Usadas por polícias e funcionários dos serviços, em tempos de doença e miséria eram também procuradas por assaltantes de bancos e outros criminosos que se faziam passar por médicos e farmacêuticos para burlar os incautos. O dia do armistício, 11 de Novembro, foi celebrado nas ruas das principais cidades da Califórnia por multidões de rosto coberto por máscaras enquanto cantavam e dançavam de alegria. O vírus devastou a Europa em poucas semanas. A partir de Espanha, o primeiro país onde a ausência de censura permitiu a publicação de notícias sobre a doença – resultando daí o nome, impróprio, de «gripe espanhola» –, disseminou-se rapidamente por Portugal e atravessou os Pirenéus, propagando-se com uma extraordinária velocidade entre o Atlântico e os Urais. Na Noruega, os lapões, sem defesas imunitárias contra o novo vírus, foram o grupo de habitantes a registar mais vítimas mortais. Entre os não europeus, os mais afectados foram os índios americanos e os indígenas das ilhas do Pacífico, como a Samoa Ocidental, que perdeu cerca de 20% da população. Na Nova Zelândia, a mortandade entre os maoris foi sete vezes mais elevada. Na Austrália, o vírus matou mais de 14 mil pessoas em poucos meses, apesar da resposta rápida das autoridades sanitárias. Em África, os quase 2,4 milhões de óbitos fizeram da doença território fértil para as cerimónias religiosas de veneração dos deuses milenares. À Índia, a jóia da coroa britânica, o vírus chegou por mar e espalhou-se através das estradas e das linhas férreas. Os números reportados apontam para cerca de 18,5 milhões de vítimas mortais, fazendo do país um dos mais atingidos. Uma das maiores companhias de seguros da Índia reportou que «a virulência da epidemia foi de tal ordem que os pedidos de indemnização por morte mais do que duplicaram». A gripe pneumónica era de declaração obrigatória em todos os territórios do Império Britânico, o que permitiu maior rigor na contagem dos mortos. Em Inglaterra, terão sido 200 mil. Só em Londres, os óbitos declarados em Outubro de 1918 somaram 4500 por semana, com a capacidade dos hospitais esgotada e sem os médicos saberem como tratar os pacientes: tanto prescreviam álcool e ópio, como quinino e aspirina, entre outras receitas. Sempre sem resultados. No fim da epidemia foi criado o Ministério da Saúde, tendo a Inglaterra sido um dos primeiros países da Europa a fazê-lo. O vírus desconhecido Em Espanha, um dos países mais atingidos, as três vagas (Primavera e Outono de 1918 e início de 1919) causaram 270 mil mortos. O país ficou à margem da I Guerra Mundial, mas a crise política, económica e social estava instalada. As condições sanitárias da população eram muito deficientes, o que contribuiu para o avanço da doença. A primeira vaga causou inúmeros óbitos em Madrid, mas a segunda foi a que mais matou no resto do território. As medidas profilácticas passaram pelo isolamento dos doentes, reforço da assistência médica em casa e nos hospitais, criação de cordões sanitários (um dos quais na fronteira com Portugal), encerramento dos locais mais frequentados, desinfecção de pessoas, mercadorias e espaços físicos, assim como pelo uso de máscaras no rosto. Tranquilizar a população era o objectivo principal, mas as medidas foram insuficientes para travar a epidemia. Os espanhóis inquietaram-se e exigiram respostas das autoridades em geral e da classe médica em particular, tendo esta apostado no estudo e preparação de vacinas. Tal como em França e Inglaterra, a esperança residia nas vacinas mistas ou nas vacinas pneumocócicas puras contra os vírus já conhecidos das anteriores gripes sazonais. Quando muito, ajudavam a tratar as complicações broncopulmonares da nova doença, conclui Maria Isabel Porras Gallo, na comunicação «Uma vacina ‘específica’ para combater a gripe de 1918-19 em Espanha». Mas este vírus era novo, distinguindo-se do bacilo de Pfeiffer, causador de doenças anteriores. Em Maio de 1918, quando foram conhecidos os primeiros casos em Madrid, os cientistas não conseguiram chegar a um consenso. A dúvida instalou-se entre os médicos, em nada contribuindo para travar a propagação. Antes de serem determinadas as características do vírus, a gripe espanhola desapareceu ao fim de três vagas mortais. O vírus, sabe-se agora, era o H1N1, altamente contagioso e capaz de se disseminar com grande rapidez em locais frequentados por muitas pessoas. O seu período de incubação era muito curto e as pessoas morriam em poucos dias, por vezes em plena rua. De Dacar para o Brasil O Brasil contou cerca de 180 mil óbitos causados pela epidemia. A doença foi detectada entre militares brasileiros estacionados em Dacar, daí ter sido chamada «peste de Dacar». Em Setembro de 1918, o vírus seria descoberto em solo brasileiro, julga-se que transportado por navios com destino ao Nordeste e ao Rio de Janeiro. O Recife terá sido o primeiro porto afectado, com a chegada, a 15 de Setembro, dos 562 passageiros do Demerara, originário da cidade inglesa de Liverpool com escalas em Lisboa e Dacar. Das cinco mortes entre os passageiros, apenas uma foi atribuída à gripe espanhola. Da cidade pernambucana seguiu viagem para o Rio, onde a doença se fez notar no espaço de pouco dias. Pouco preparados, os serviços médicos brasileiros acreditavam estar a lidar com «simples casos de gripe», considerados «muito naturais no actual período do ano». A 9 de Outubro, o inspector de saúde do porto do Rio Grande, no Rio Grande do Sul, informou que o paquete Itajubá se encontrava de quarentena com 38 tripulantes contagiados pelo vírus da gripe, mas que este era «de carácter benigno». De seguida, autorizou o desembarque sem isolar os passageiros que já apresentavam sintomas da doença e sem ter ordenado a desinfecção da embarcação. Os próprios médicos questionavam se a maleita que tinha atacado em Dacar teria sido causada pelo vírus da gripe espanhola, «porque não mata desta maneira». O discurso só mudou com os primeiros mortos em solo brasileiro, relata Anny Jackeline Torres Silveira, na comunicação «Uma crónica da influenza espanhola no Brasil». E eis que, de repente, tudo se alterou. Na primeira quinzena de Outubro, sumiram-se os empregados nas lojas e nos serviços públicos, encerraram-se escolas, cinemas, parques e museus, suspenderam-se comboios e carros eléctricos e os preços dos bens essenciais entraram numa espiral de subida. Os cadáveres contavam-se às centenas e as funerárias não davam vazão aos enterros. Com os coveiros também doentes, a prefeitura de São Paulo aumentou os salários em cinco vezes para atrair substitutos. Um cemitério do Rio recorreu aos prisioneiros para cavar as sepulturas. O historiador Cláudio Bertolli Filho, autor da História da Saúde Pública no Brasil, relatou que «quando o serviço de transporte de cadáveres deparava com um morto que já há bastante tempo esperava sepultamento, fazia um acordo com a família enlutada, deixando na residência um cadáver que expirara há poucas horas, levando aquele que falecera há mais tempo». Depois do encerramento dos cafés e bares, o aspecto do Rio de Janeiro era o de «uma cidade morta e sem vida», onde «apenas a tosse quebra o silêncio circunstante», segundo a descrição de um cronista da imprensa carioca. Enquanto a cidade parecia suspensa, as farmácias, os hospitais e os postos de socorro atraíam pessoas em desespero. A negação, e a seguir a impotência das autoridades sanitárias brasileiras só foi compensada, em parte, pelo auxílio da sociedade civil às vítimas da pneumónica. Confrontados com a enormidade da tragédia da guerra, da fome e da doença, muitos viam a gripe como o verdadeiro apocalipse, um castigo divino pela alegada falta de religiosidade e o materialismo da sociedade brasileira. O medo só passou com a descida de novos casos de contágio no início de 1919, quando até os blocos de Carnaval se atreveram a brincar com a epidemia do ano anterior, cantando versos como estes: «Durante o ano passado/ ninguém do bloco comia/ tudo era bem guardado/ pra fazer economia/ até que veio a espanhola/ vestida de epidemia/ de facão e castanhola/ fazendo sua arrelia/ […] Com as migalhas do povo/ muita gente entrou na linha/ levando só por um ovo/ o valor de uma galinha/ […] Se é para frente é que se anda/ vou seguir caminho reto/ Vou pedir a Dona Gripe/ que me forme por decreto/ Avante menino/ avante rapaz/ quem toma quinino/ não anda para trás.» Em Janeiro de 1920, era finalmente criado o Departamento Nacional de Saúde Pública no Brasil.

Por Clara Teixeira

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