segunda-feira, 26 de outubro de 2020

620 mil dias.

O que todos de uma forma ou outra podemos constatar! Ou como eu já constatei, quando precisei, e as portas se me fecharam.


Miguel Sousa Tavares

“Como é óbvio, o país inteiro não fala e não pensa noutra coisa que não nesta malfadada pandemia que veio para nos roubar um ano de vida a todos, desgraçando a economia, as relações familiares e sociais e arruinando cada projecto pessoal. Acordamos com o sonho de uma vacina ou de uma solução à vista e adormecemos para o mesmo pesadelo sem fim. Mas, paralelamente e como se habitasse num mundo à parte, a classe política — ou, para ser mais preciso, a esquerda da nossa classe política — entretém-se há meses com um filme, visto e revisto, ensaiado e repetido até à náusea, que ameaça prolongar-se ainda por mais um mês e de cujo fastio apenas ela parece não se dar conta: o Orçamento do Estado. Todos os dias, e várias vezes ao dia, escutamos os mesmos actores repetirem o mesmo texto, tentando convocar-nos para o dramatismo de um filme que já ninguém consegue acompanhar. Lá vem Jerónimo de Sousa jurar que o Orçamento serve o “grande capital” — onde quer que essa mítica entidade hoje se esconda entre nós; lá vem Catarina Martins insistir em vírgulas e décimas — que, todavia, podem valer milhares de milhões lançados ao vento; lá vem Inês Sousa Real, do PAN, exigir hospitais veterinários públicos (enquanto há hospitais públicos para humanos que se mantêm fechados) e queixar-se, espantada, de que o Orçamento é “marcadamente do PS” — como se não fosse o PS que tivesse ganho as eleições; e lá vem o infatigável António Costa, numa estratégia de polvo — ora tentando assustar, ora fugindo, ora espalhando tinta, ora torcendo-se e retorcendo-se —, sem jamais largar a rocha a que está agarrado. E, no fim, dando a tudo isto o tom de filme cómico, ainda vem o escudeiro socia­lista José Luís Carneiro acusar Rui Rio — escorraçado por Costa de todo o processo — de esquecer o “interesse nacional”, quando ele, logicamente, anunciou o voto do PSD contra o Orçamento. Os meninos brincam à volta da fogueira, enquanto os velhos morrem nos lares, a epidemia cresce todos os dias e multiplicam-se os alertas sobre a situação no SNS.

Justamente, uma das reivindicações da extrema-esquerda para deixar passar o OE é o reforço do SNS, em dinheiro e em meios humanos. Parece uma exigência consensual, sobretudo nos tempos que correm. Consensual e já garantida: vão ser mais 450 milhões para o SNS e mais 4200 profissionais, entre médicos, enfermeiros e auxilia­res, fora os milhares que o Governo diz já ter acrescentado nos quatro anos anteriores. Não chega, diz o BE. Mas será verdade? Num artigo publicado no jornal “Público” do passado sábado, António Barreto, socorrendo-se de dados oficiais da Pordata, INE e Eurostat, diz: “Preparem-se para algumas surpresas”, ao analisar os números referentes ao corpo clínico e ao corpo docente português, que contrariam todo o discurso sindical e corporativo, que a imprensa e a esquerda adoptaram, sem questionar. Eis alguns dados que cita, referentes à situação na Saúde: na Europa a 27, Portugal ocupa o 8º lugar em termos de despesa com a Saúde relativamente ao PIB — gastamos 8%, nem sequer muito longe do país que mais gasta, a Alemanha, com 9,5%; em número de médicos, espantem-se, estamos em 3º lugar entre os 27 (e em 1º lugar em médicos de clínica geral), sendo o 1º lugar ocupado pela Grécia, o que parece indicar que não há uma relação directa entre a quantidade de médicos e a qualidade do serviço; e onde estamos pior, em 20º lugar, é no número de enfermeiros, porque os baixos salários os convidam à emigração.

Estes números, por si sós, deve­riam merecer uma reflexão séria e um mínimo de coragem política. Alguém — um partido, um deputado — deveria erguer-se tranquilamente e dizer: “Somos um país pobre e endividado que não se pode dar ao luxo de pagar necessidades que não tem. Não temos falta de meios nem de dinheiro na Saú­de pública; temos, portanto, falta de outras coisas que é preciso enfrentar: organização, planeamento, disciplina, empenho e dedicação.” Mas quem se atreverá a dizer isto?

Durante meses, vivemos com a doce fábula do notável êxito do SNS no combate à pandemia na Primavera passada, aquando do seu primeiro assalto. Hoje sabemos que esse suposto êxito se ficou a dever a dois factores essenciais: ao confinamento voluntário e maciço a que os portugueses se entregaram muito antes de ele ser obrigatório e ao abandono a que o SNS votou os doentes não-covid. Esse abandono, em parte, foi também voluntário: houve doentes que tiveram medo de ir aos hospitais ou Centros de Saúde; mas os doentes graves não podiam evitar ir. E a grande maioria, que se sentia realmente doente, que precisava de consultas urgentes, que tinha cirurgias marcadas e algumas inadiáveis sem graves riscos para a sua saúde, não encontrou uma porta aberta nem sequer quem lhe atendesse o telefone. Claro que eu sei de médicos que deram tudo à luta contra a covid, alguns até voluntariando-se; mas também sei de outros que estiveram meses sem pôr um pé no hospital e sei de serviços que fecharam e mandaram os doentes para casa a pretexto da covid, da qual nunca viriam a ocupar-se. Uns, de facto, estiveram lá para fazer frente ao novo inimigo; outros fugiram. Foi assim e foi por isto que 1 milhão e 200 mil consultas e 230 mil cirurgias ficaram por fazer entre Março e Agosto. Não há volta a dar a esta verdade terrível, não há palavrinhas mansas para suavizar o que se passou: para atender a uma minoria de doentes covid, o SNS abandonou a esmagadora maioria dos seus doentes, sem nenhuma justificação razoável para tal. E o balanço final — que não se pode afirmar com segurança absoluta que seja resultado disso, mas cuja probabilidade de o ser é imensa — são 6 mil mortos a mais do que em igual período do ano passado.

Tudo isto é doloroso de dizer, mas pior ainda é tentar escondê-lo ou fingir que nada de grave se passou. Um estudo encomendado pela Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) a uma consultora externa e divulgado esta semana quis perceber se havia uma relação directa entre o número de consultas e cirurgias que ficaram por fazer e o absentismo anormal verificado no mesmo período (Março a Agosto) no SNS. Os resultados foram avassaladores: em seis meses de uma crise de Saúde pública, quando os portugueses mais precisavam dos seus serviços, os profissionais do SNS faltaram 64% mais do que em igual período de 2019. Todas as justificações tiveram um acréscimo, incluindo as faltas não justificadas, mas o grosso dos motivos invocados foi… doença. No total, foram mais 467 mil dias de faltas por doença ou 620 mil juntando todos os motivos. Mas, ao mesmo tempo que dizia que era preciso uma “investigação aprofundada” para encontrar uma “explicação para um aumento tão significativo do absentismo por doença”, a APAH foi adiantando algumas explicações habituais, tais como o burnout ou “exaustão e sobrecarga”. Exaustão e sobrecarga? Mas como, se o horário no SNS, e em todo o funcionalismo público, passou de 40 para 35 horas com este Governo? Como, se o absentismo no sector já é dos maiores em toda a Função Pública? Como, se sobejam médicos? Como, se as faltas ao serviço aumentaram 64%, deixando mais de 1 milhão de consultas e mais de 200 mil cirurgias por fazer? Como, se, felizmente, nunca vivemos nada que se parecesse com a situação dramática vivida nos hospitais de Espanha, Itália, França, Inglaterra, Brasil, Estados Unidos?

Na semana passada, ao escutar a ministra da Saúde afastar veementemente o recurso aos hospitais privados no tratamento de doenças não-covid, em caso de saturação do SNS, julguei que a movia apenas um preconceito ideológico contra a medicina privada. E, embora eu também não goste nada de ver dinheiros públicos a financiar negócios privados, entendo que aqui se sobrepõe o dever do Estado de assegurar a cobertura da saúde a todos os portugueses. Mas agora que li este estudo percebo a resistência de Marta Temido. É que o SNS não está saturado, nem exausto, nem sobrecarregado. Com os meios e o dinheiro (8 mil milhões de euros por ano) que os contribuintes põem à sua disposição, tem perfeita capacidade e estrita obrigação de não deixar ninguém para trás. Portanto, o que está errado no discurso de Marta Temido, o que lhe falta dizer — a ela e a todos os políticos que tenham coragem para tal — é a outra parte do discurso: que o SNS tem de cumprir o seu dever sem esperar pela ajuda dos privados.

As proclamações grandiloquentes, as juras de amor ao SNS, as palmas às janelas… tudo isso é muito bonito, mas não apaga o resto: as insuportáveis listas de espera por consultas e cirurgias que podiam e deviam estar em dia, as vergonhosas filas de velhinhos e doentes na rua para serem atendidos ou vacinados, os telefonemas que ninguém atende, as indignas condições que perduram nos hospitais civis, a soberba indiferença perante o sofrimento com que tantos são tratados. Tudo isso, apesar das louváveis excepções, existe ainda no nosso tão louvado SNS. E, 8 mil milhões depois, tudo isso é demasiado feio e injustificável.”


Expresso – 24-10-2020 - Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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