Presidente do Tribunal de Contas de saída: a história das decisões que não agradaram ao Governo
De imóveis que passaram da Segurança Social para a Câmara Municipal de Lisboa ao ensino superior, acabando na contratação pública em período de emergência, vários foram os choques entre o Governo de António Costa e o Tribunal de Contas. Agora que a entidade poderá receber uma nova incumbência - auditar o Novo Banco -, Vítor Caldeira não será reconduzido para um novo mandato. Noutro tempo, Cavaco chamava-lhe "força de bloqueio".
A pandemia está aí, os efeitos estão a ser muitos, mas a resposta de emergência não pode justificar gastos descontrolados. Aliás, as novas regras que o Governo quer impor para facilitar obras públicas abrem a porta à corrupção. Esta tem sido a argumentação do Tribunal de Contas (TdC) neste período pandémico, assumindo que terá um trabalho mais rigoroso e trabalhoso pela frente para controlar tais despesas.
Esta é uma farpa da entidade de fiscalização ao Executivo de António Costa, mas, mesmo antes disso, a relação do Governo com o órgão de fiscalização era tensa. Nem é preciso ir muito longe, já que um caminho por 2020 encontra vários casos de embate entre os ministros e o TdC.
E é neste contexto que Vítor Caldeira sairá da presidência do TdC, sem que o seu mandato seja renovado, como noticiou o Sol.
OS IMÓVEIS DA SEGURANÇA SOCIAL VENDIDOS À CML
O ano mal tinha começado e o Expresso noticiava que o Estado não sabe o valor de dois terços dos seus imóveis. Não era uma novidade esse desconhecimento, e a verdade é que foram outros os imóveis que causaram uma forte turbulência, quando janeiro ia a meio.
“Tribunal de Contas critica Segurança Social por perder milhões a vender imóveis sem concurso”. A auditoria da entidade ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social dizia que este alienou imóveis por ajuste direto, o que, para o Tribunal de Contas, não maximizava os montantes que podiam ter sido obtidos. E um dos negócios em que tal aconteceu, era ainda Vieira da Silva o ministro, foi com a Câmara Municipal de Lisboa, em 2018.
A entidade liderada por Vítor Caldeira, em funções desde 2016, defendia que o valor de venda foi em 3,5 milhões de euros inferior ao das avaliações existentes e, além disso, foi dada uma carência de 24 meses no pagamento de rendas, que significa uma perda de receita de 6,6 milhões.
Houve logo reações: o Governo garantia que o TdC tinha dado visto prévio, que houve um “longo processo negocial” que até se revelou rentável para a Segurança Social. Mas o TdC considerava que se privilegiou uma política de arrendamento acessível numa cidade, e não na receita e sustentabilidade da Segurança Social. Fernando Medina, o socialista que preside à Câmara Municipal de Lisboa, foi mais duro e classificou a avaliação do TdC como “absolutamente falsa”, e defendia que tudo tinha sido feito a preços de mercado (tal como o Governo de António Costa). “É um relatório lamentável a todos os títulos e é um relatório tecnicamente incompetente”, concluiu Medina.
As críticas foram de tal forma que o TdC sentiu necessidade de vir dizer que não houve contradição entre o visto prévio e o relatório então divulgado: primeiro, tinha feito a fiscalização prévia a um contrato de despesa da CML e, depois, uma auditoria alargada à gestão e venda de património da Segurança Social.
Foi nessa resposta que o TdC teve de frisar que é independente e imparcial do poder político. “O Tribunal reafirma que enquanto órgão independente atua em estrita conformidade com a Constituição e a Lei, com neutralidade política, isenção e imparcialidade”.
ENSINO SUPERIOR E CONCLUSÕES “INACEITÁVEIS”
Não passou muito tempo até um novo embate entre o Governo de António Costa e a entidade que tem como missão fiscalizar a execução da despesa pública. O TdC concluiu que as verbas atribuídas entre 2016 e 2019 às instituições de ensino superior não cumpriam a lei, nem resultavam num controlo efetivo sobre quais os resultados que eram alcançados por essas mesmas instituições. Não se premeia o mérito através das despesas atribuídas.
Mais uma vez, o Governo não gostou, considerando que estava a ser feita uma avaliação política. O ministro do Ensino Superior, Manuel Heitor, falou em conclusões “inaceitáveis”, disse ao TdC que devia corrigir várias partes do seu relatório, que considerava mal fundamentado, sendo uma versão “redutora, incompleta e desconhecedora das tendências internacionais”. Era um “elogio à burocracia e à ignorância”.
Quem também não gostou foi o TdC: “O Tribunal tem o máximo respeito pela opinião dos auditados. Todavia, a afirmação de que o relatório da auditoria se limita a uma ‘avaliação de índole política’ carece de fundamento, não sendo por isso aceitável”.
O AVISO DE QUE A EMERGÊNCIA NÃO PERMITE TUDO
Entretanto, veio a pandemia e a certeza de que o Estado tem de atuar para conter os efeitos nefastos na economia. A necessidade de rapidez na compra de bens e serviços existe, mas Vítor Caldeira deu uma entrevista ao Expresso com destinatários: os gestores públicos. “Há uma emergência, mas não se pode fazer tudo. Não vale tudo!”
“Enquanto instituição superior de controlo financeiro, auditor externo da República e órgão de soberania, o Tribunal tem um dever mesmo neste contexto de pandemia. Vamos ver quem adjudica a quem e se são sempre as mesmas empresas a contratar com determinadas entidades. Essas tendências poderão indiciar, ou não, uma preocupação que conduza o Tribunal a investigar se há ali um favorecimento ou conflito de interesses”, explicou-se.
Não foi preciso muito tempo e, em julho, o TdC já dizia que havia insuficiências nas divulgações dos contratos públicos de compra de produtos.
CONTRAPARTIDAS DOS AVIÕES
Passou mais um mês de 2020 e veio mais uma farpa ao Governo de Costa, ainda que, aqui, com partilha de responsabilidades com o PSD. Tanto socialistas como sociais-democratas lesaram o Estado na compra de aviões C-295 da Força Aérea, segundo o TdC. As críticas passavam pelo contrato de contrapartidas dos aviões, em 2012, apanhando o ministro da Economia Álvaro Santos Pereira, bem como pela renegociação feita pelo ministro socialista João Gomes Cravinho, com agravamento dos custos para o Estado.
Desta vez, o Governo de Costa reagiu mais calmamente, dizendo que andou a “correr atrás do prejuízo” criado anos antes, pelo Executivo PSD e CDS. Álvaro Santos Pereira contestou e atacou completamente o relatório do TdC - até ameaçou processar o tribunal -, dizendo até que este tipo de documento diminuía a sua “fé em instituições que devem ser independentes em Portugal”.
A BUROCRACIA ELIMINADA QUE ABRE A PORTA À CORRUPÇÃO
Entretanto, o tema da contratação pública por conta da pandemia criou um novo choque entre TdC e Governo português. António Costa apresentou em junho uma proposta que visa eliminar a burocracia, para acelerar os projetos que o Executivo considera prioritários. Várias entidades revelam receio com as potenciais consequências, como a Inspeção-Geral de Finanças e a Ordem dos Arquitetos. Mas o tribunal de Vítor Caldeira é o mais audível.
Podem crescer, com as regras que o Governo quer implementar, “práticas ilícitas de conluio, cartelização e até mesmo de corrupção”. E o que não vai faltar é a entrada de fundos europeus para a recuperação da economia. Muito dinheiro, com estas entidades a temer uma redução da fiscalização e da capacidade de escrutínio.
A NÃO RECONDUÇÃO E UM NOVO TRABALHO PELA FRENTE CHAMADO NOVO BANCO?
Na semana em que é conhecido este parecer do tribunal liderado por Vítor Caldeira, sabe-se, pelo jornal Sol, que o Governo de António Costa não pensa reconduzi-lo – ideia que levantou dúvidas a parte da oposição, com destaque para CDS e Iniciativa Liberal.
Vítor Caldeira é o presidente do Tribunal de Contas desde que foi proposto pelo atual Governo em 2016 e nomeado em outubro desse ano para o cargo por Marcelo Rebelo de Sousa. O mandato de quatro anos está a terminar, e a sua saída ocorre depois de o Tribunal ter dito que poderia fazer uma auditoria ao Novo Banco, se para isso fosse incumbido pelo Parlamento.
Ora, o Bloco de Esquerda lançou, na entrevista da coordenadora, Catarina Martins, ao Expresso, esse tema: devia haver uma auditoria tripartida, entre Banco de Portugal, IGF e TdC ao Novo Banco. O tribunal foi o único que disse que tinha competência para tal, mas não se comprometeu com prazos: “Este tipo de auditoria deve levar o tempo que for necessário, tendo em conta os respetivos objetivos e âmbito, para recolher evidência que permita exprimir conclusões sólidas e fundamentadas”.
O PSD, entretanto, juntou-se a uma ideia próxima, ainda que focada unicamente no TdC: pedir em janeiro uma auditoria que aquele órgão de fiscalização fizesse à instituição financeira que continua a sorver recursos públicos.
Será uma tarefa para o Tribunal de Contas? Se sim, ficará para o sucessor de Vítor Caldeira.
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